Natal na aldeia

Todos os anos, pelo Natal, venho à aldeia. É uma das muitas visitas que faço sempre que a vida profissional me permite. Não é, no meu caso, uma fuga burguesa. Não é, também, uma atitude conotadamente intelectual, própria de gente letrada. Estar na aldeia é, para mim, beijar a face da vida. Longe da civilização, liberto de todas as artificialidades, eu venho ao encontro das raízes da minha identidade. É sentir sob os meus pés os verdes campos. É molhar as mãos nos límpidos riachos. É ver as pequenas casas de pedra fazendo as ruas estreitas. É escutar o bulício da vida no despertar de cada madrugada. É chegar à noite e sentir nas roupas do corpo o cheiro que define um dia campestre.
Estou, pois, na minha querida aldeia. Na velha casa familiar tudo permanece no seu lugar como se a vida ainda ali morasse. Mas é uma vida moribunda: as traves do telhado mais carcomidas; as paredes mais esfareladas; os móveis e os utensílios domésticos sem brilho. Uma película de pó quer delir a biografia da casa. Porém, escuta-se no silêncio o respirar da memória. Tenho de ressuscitar a casa. Tenho de tornar esta solidão habitável, reanimar os seus fantasmas adormecidos, para que o meu isolamento do mundo, neste Natal, seja a redenção da minha condição humana.
É uma tarde de sábado. Espreito pela janela e vejo farrapos de neve sobre os telhados. Lá fora, tudo espera por mim. É um apelo inadiável nesta véspera de Natal. Voltar a esta casa depois, acender a lareira e deixar-me ficar junto a ela, num conforto ancestral, esperando a revelação da noite sem tempo.
Chego à rua. Um manto branco cobre a aldeia. Aperto o sobretudo para me proteger da friagem. Avanço ao acaso, à procura de um passado nostálgico, de um tempo perdido. À minha volta a neve cai leve, levemente. Falta o fumo a sair de uma chaminé para ser um cenário ideal para ilustração de um postal natalício. Aqui, porém, a realidade é bem diferente. Tudo está abandonado e inerte. O que se observa são as ruínas de vidas ausentes.
Sou senhor absoluto da aldeia. Dono de um império cuja vida me passa pela memória.
Passo pela casa da mulher que sabia ler nos olhos de azeite, abertos na água de um prato, o mau-olhado deitado a uma pessoa. Passo pela escola onde aprendi a soletrar as primeiras letras. Passo pela taberna onde os homens molhavam a secura da vida. Passo pela fonte que deu tantos pingos de amor aos namorados que ali se sentavam. Passo pela ponte romana de onde uma menina se atirou para a água, porque o seu sonho era ser um nenúfar. Passo pelo cemitério onde estão os ossos da memória.
Contemplo os montes e os pinheiros distantes, recortados de neve, a anunciar a noite. Inspiro fundo o ar puro do campo. Com esta revisitação ao espaço do passado, é chegada a hora de voltar à velha casa e preparar a minha noite de solidão. Início o regresso. Sou silêncio e aragem. Sou vida e morte. Sou todo inteiro num instante de mim.
Súbito no ar, um ganido se ouve. Viro-me. Um cão, uns metros longe, com a fome agarrada a ele como carraça, olha-me com olhos de solidão. Chamo-o a mim, com a mão aberta, mas ele hesita, ainda desconfiado. Continuo a caminhada. Pressinto-o no meu alcance, a distância segura. Viro-me. Chamo-o novamente, desta vez com um assobio triste como a sua sorte. Aproxima-se um pouco mais, mas sempre alerta.
Chego à porta da casa, já com o cão à minha beira. Entra comigo. Percorre a casa, como se reconhecesse nela lugares íntimos. Por fim, na cozinha, sossega junto à lareira apagada. Vejo nos seus olhos o tremelicar das chamas. Talvez seja a saudade de um lar que nele vive. Parece dizer-me que é ali o sítio da nossa noite.
Sim! Será a nossa noite, o nosso espaço, o nosso tempo. Faremos companhia um ao outro. Dois seres estranhos, sem nome, unidos pelo destino. De mais não precisaremos para cumprir a nossa condição.

Jornal da Mealhada, 338, 20.12.2000

A Cigarra e a Formiga

Julga o caro leitor que hoje venho aqui contar a clássica fábula da cigarra e a formiga? Não é esse o meu propósito. Reproduzir aqui, textualmente, as palavras que narram essa história de cunho moralizante é coisa que eu nunca faria.
Quero evitar a velha história mas dela não me livro como ponto de partida. E tudo por culpa do Verão. Do Verão das tardes quentes, dessas tardes que levam os passos ao encontro da natureza. Passeios pelos campos, pinhais e vinhedos, revisitando os sítios do passado que fazem parte de nós. Reconhecer os cheiros que a terra exala, dispersos no ar pela brisa da tarde. As narinas embriagam-se de sabores a terra sedenta, a palha, a caruma, a eucalipto, a malmequeres; de sabor refrescante, o cheiro líquido da água dos poços e dos ribeiros. Aos ouvidos chega uma sinfonia de sons orquestrados por grilos, passarada e cigarras.
Cigarras... Pois foi o canto deste bicho que fez suspender os meus passos durante um passeio campestre.
A memória, de repente, transportou-me ao tempo da escola primária. Vi-me a folhear o livro da quarta classe e a ler a fábula da cigarra e a formiga.
Despertei desta memória. Olhei para o chão à minha ilharga, fiz visão de raios X, mas carreiro de formigas laboriosas não havia. Paciência!
Voltando à fábula, todo o seu novelo se desfiou nos meus pensamentos, imaginando as sacrificadas e previdentes formigas no labor quotidiano de armazenar o sustento para o futuro próximo, ou seja, o Inverno. Saboreando as delícias do Verão, no remanso fresco duma árvore, exalta a cigarra hinos de alegria à vida, com um refrão que me parece ser assim: «A vida é bela! A vida é bela!». No solo, debaixo da árvore, formiga a formiga se movimenta o trabalho. E a cigarra repetindo, provocando a formiga: «A vida é bela! A vida é bela!».
A lição de moral, no fim, evidencia-se com o castigo aplicado à cigarra: mortinha de fome, no Inverno, sujeita-se a pedir esmola à poupada e trabalhadora formiga.
Hoje percebo que a história, selecionada para figurar no livro oficial da instrução primária, tinha implicações político-ideológicas. O ensino do Estado Novo via na fábula um bom exemplo de pedagogia do trabalho e da poupança.
Assim quedo a ouvir o canto da cigarra, levou-me a memória uns anos mais à frente, ao tempo do liceu, já depois do 25 de Abril. E novamente a cigarra e a formiga me visitaram, num conto de Miguel Torga.
No conto deste autor a mensagem é subvertida. O canto da cigarra, expressão de preguiça na velha fábula, é agora sinónimo de criação artística. Poeta do canto, este ser vive a sua liberdade plena, criativa, sem estar sujeito aos valores normativos da sociedade. O sentido da sua vida é criar, liberto de um trabalho que escraviza e automatiza, de um modo de vida que garante o sustento material mas que priva a alma de sentir e fruir o que a vida tem de verdadeiramente belo.
Neste confronto, considerando as duas versões da história, uma questão, com respostas divergentes, se levanta: a de se saber onde está realmente a riqueza. Na cigarra ou na formiga?
Desperto destas cogitações, mantive-me mais uns minutos a escutar o canto da cigarra na oliveira. Era um canto agradável, de facto, que dava vida à tarde sonolenta. Mas, marcado por reflexões de índole intelectual, comecei a registar na pauta dos meus ouvidos os repetitivos acordes musicais da cigarra perto de mim. Era sempre o mesmo ritmo, a mesma musicalidade, a mesma letra, o mesmo refrão.
«A vida é bela! A vida é bela!»
A cigarra era, afinal, prisioneira de um canto único. Que monotonia!
Também a formiga vivia prisioneira de um único trabalho trilhado a negro no chão da vida. Que monotonia!
E dali me afastei, procurando outro caminho. Um caminho que não fosse cigarra nem formiga.

Jornal da Mealhada, 418, 04.09.2002

O MEU AVÔ

Agora que estou calmo e resignado ao que de mais evidente nos traz a vida, agora que consigo reencontrar-me contigo para um diálogo que só nós dois entendemos, sei por que razão decidiste morrer ontem. “Hei-de morrer no dia em que bem me apetecer e esse dia terá um significado especial”, dizias-me tu, avô, amiúde, e eu ficava perplexo com a tua certeza sobre um desígnio tão absurdo. “Serei eu a morrer, eu, a morte não terá o poder do seu livre arbítrio sobre mim.” Nunca poderias suicidar-te porque eras contra todas as formas de suicídio. “Isso é dos fracos, menino. Todo o homem que é homem, com os tomates no sítio certo, nem ideologicamente se suicida”, afirmavas tu fazendo desse lema o sentido da tua vida. E eu, já irreverente, influenciado pelas leituras de autores que me aconselhavas, ou por alguma propensão genética, provocatoriamente te questionava acerca do sentido da vida, se valia a pena o sacrifício ideológico quando afinal um homem só vive uma vez, a sua vida e a sua morte, e entre o princípio e o fim tudo se resume ao instinto de sobrevivência. Pegavas na palavra sobrevivência para a aprofundares filosoficamente e explicavas que sobreviver, nesse campo de reflexão, tinha um alcance diferente: “sobre viver ” o mundo e as pessoas no sentido de posse e gozo. Que este era o sentido errado da vida. E eu, entusiasmado: “Avô, qual é então o sentido verdadeiro da vida?” Sorrias condescendente. Mandavas-me fechar os olhos, eu fechava-os cheio de expectativa, e perguntavas: “O que vês?” Eu nada via, só escuridão, e tu peroravas: “Ainda não estás preparado para ver o verdadeiro sentido da vida”.
Este nosso diálogo aqui no velório, neste espaço frio de capela mortuária, sentado à tua beira, não o imaginam os teus poucos bons amigos. Nem os teus inimigos declarados e dissimulados, que param junto a ti, olham para o teu rosto envelhecido e pálido, mas ainda com um inapagável sorriso intimidatório, e de ti se afastam com ar de alívio. Ai o que tu lhes dirias neste momento se acaso o pudesses fazer! Mas eles sabem que pela primeira vez podem afirmar o sentido da vida deles sem que tu os incomodes.
Na realidade, avô, passaste toda a tua vida lutando pelo teu sentido da vida, levando-o a lugares desconhecidos, dando-o a pessoas que não o queriam. No fundo, só querias ver este mundo mais perfeito, onde cada homem pudesse cumprir o destino com inviolável integridade de valores. A condição humana que buscavas e que impunhas a ti próprio e à sociedade era apenas a da verdade. “Isto sim”, proclamavas, “é o que define um homem e o torna livre”.
Lembro-me, avô, de um projecto que me revelaste numa das tardes de conversa à sombra da nossa secular glicínia. Querias criar um mundo novo à semelhança dos teus ideais, pioneiro numa experiência que designavas por “A Nova Pasárgada”. Com um grupo de pessoas defensoras da mesma causa, idealizavas partir para uma aldeia deserta nos confins deste país, para aí vivenciar o modelo de uma sociedade perfeita. Viveste apaixonado por esta aposta durante um ano, expondo detalhes de uma utopia que eu não ousava destruir. A ela não aludiste mais, a partir de certa altura, e eu pactuei com o teu silêncio para que permanecesses intacto na grandeza do teu sonho.
Também à sombra da velha glicínia me davas a ler as tuas crónicas publicadas no semanário local. Eram textos com um expressivo recorte literário, marcados por uma característica recorrente, a tua marca de água: a ironia cáustica. Implacável, zurzias a actualidade nos seus diversos quadrantes, terminando todas as crónicas com uma frase emblemática: “Por favor, parem o universo. Quero apear-me.” Esta façanha granjeou-te uma estrondosa fama sem fronteiras, na pior e melhor acepção da palavra, visto por alguns como um homem corajoso, visto por muitos como um inimigo. Corrigir a sociedade, expondo verdades e acusando mentiras, semeando a coragem e apagando o medo, propondo soluções sem interesses ocultos, reclamando justiça e humanismo, era, enfim, o teu propósito, o sangue que te dava vida. Nunca por um minuto vacilaste perante as inúmeras tentativas de te comprarem o silêncio. E assim foste proscrito mas hipocritamente respeitado pelo poder acobardado.
Sabes, avô, na semana anterior ao teu falecimento pressenti em ti um olhar vago e pasmado, uma quebra de vivacidade nos teus olhos. À sombra da glicínia inquiri-te acerca desse semblante, o que te ia na alma. “Estou a germinar a minha última crónica”, disseste com espontaneidade, como se esse fosse o facto mais natural da vida. Num tom de brincadeira perguntei qual seria o título derradeiro da tua escrita jornalística. “Por favor, parem o universo. Quero apear-me.” Achei graça. “Ora, avô, só podes estar a brincar. Queres que eu acredite que és homem para ficar parado a desfrutar inocentemente a sombra da glicínia?” E, logo de seguida, deste-me a conhecer o primeiro parágrafo, que já bailava na ponta da língua: «Agora que estou para me despedir de tudo e de todos, sinto que há idades bonitas para morrer.» Depois, puseste o braço sobre o meu ombro e paternalmente esclareceste: “Vou morrer na próxima semana”. Estremeci com surpresa incrédula. “Ai, avô, que sentido de humor. Há muito tempo que não vinhas com esta tolice.” Alinhando no jogo perguntei: “E o dia, já sabes?”. “Sim. Será no dia do meu aniversário.”
Quiseste assim que a tua existência fosse um círculo, nascendo e morrendo no mesmo dia do mesmo mês, na simetria coerente de 88 anos de vida. À face da terra cumpriste o teu destino, lutando contra tudo e todos, insubmisso, reduzindo inclusivamente a morte à sua insignificância, celebrando o triunfo da vida na representação simbólica da data de nascimento. Na tua convicção só fazia sentido nascer para renascer permanentemente, nunca nascer para morrer. Por isso, ao faleceres no dia do teu nascimento, escreveste que os teus ideais não morreram contigo, que alguém já nasceu ou vai nascer para continuar a luta pela verdade.
Fecho os olhos, na capela fria do velório. Olho para dentro de mim e não vejo escuridão.
Contemplo-te no repouso eterno e rememoro a tua silhueta física e o teu rosto que preencheram largos anos da minha vida. Mas sei que a imagem mais forte, a que nunca se desvanecerá da minha memória, será a “ideia” que te definia como homem.
Avô, julgo que não deves estar surpreendido com a quantidade de pessoas que de ti vêm despedir-se neste dia. Pessoas que se riam de ti, que tentaram silenciar-te, e que agora aqui estão, em pequenos grupos a cada canto, elogiando a memória de um homem que ao mundo soube dar um nobre exemplo de vida.
Ai, avô, receio que a meio do funeral te levantes e grites: “Por favor, parem! Quero apear-me”.

1º prémio nos Jogos Florais dos Amigos de Torres Vedras/2010

João Milfontes

Feliz com o trabalho realizado, mais polido do que o sarro que os olhos sábios das gentes da aldeia viam no corpo, João Milfontes apontou a unha para o céu para melhor observar a escultura digital que nascera do seu velho canivete. Uma gota de água caiu nesse preciso momento em cima da ponta do dedo, humedecendo o espaço intersticial que une a unha à carne. Lambeu a unha com a língua e sentiu-se hesitante na escolha de um de dois raciocínios que a surpresa da gota de água provocara no seu intelecto. Sendo tolo, teria de acreditar que o seu gesto de erguer o dedo para as alturas fora uma ofensa a Deus, magoando-o, e daí a lágrima sobre o seu dedo; ou então, continuando a ser tolo, que tinha assistido a um milagre, a uma resposta do divino face às insistentes preces dos sábios aldeãos. Assim cogitando, preparava-se ele para dedicar a sua paciência escultural a outro dedo, quando uma pancada de água caiu sobre ele, colhendo-o desprevenido. Chuva abençoada que saciava Vale do Pó de uma sede que a todos atacava há anos largos!
Foi então que uma granada de piolhos sorridentes lhe apareceu na boca. A granada foi crescendo até rebentar numa gargalhada viperina que ressoou por montes e vales, trespassando a chuva cerrada. Da cratera aberta no seu rosto, dois dentes podres semelhavam duas frágeis estalactites. E o riso que o fazia rebolar por cima das urzes molhadas era o seu linguarejar selecto, o recurso expressivo com que ilustrava as ideias brilhantes que de si nasciam tão naturalmente como a água das antigas e saudosas fontes. Por ser tão abundante de ideias, por ter resposta pronta para tudo, por ter inventiva suficiente para fazer jus à sua fama de verdadeiro desenrasca português, aceitou com orgulho a alcunha de Milfontes. Nunca chegou a perceber a carga polissémica do termo milfontes (ignora-se se o povo percebeu), mas a palavra havia poisado, naquele inolvidável dia celebérrimo, como um beijo nos seus ouvidos, e desde então fez da palavra dos outros o seu apelido.
João Milfontes rebentava de riso por ter descoberto o negócio da sua vida.
Com uma força motora que lhe era estranha, apressou-se a ir falar com o padre para o convencer da sua ideia genial. Tinha mesmo de o persuadir, e para isto já escolhia mentalmente as melhores palavras, fazer-lhe ver que a sua proposta, a ser realizada, muitos benefícios traria à paróquia. Com o seu projecto, e só precisava do apoio do padre e de 50% das mais-valias obtidas, Vale do Pó poderia transformar-se numa terra rica e próspera, e afirmar-se como um lugar de peregrinação obrigatória, num Novo Mundo da Fé.
A chuva continuava a jorrar como uma graça de Deus. E Milfontes corria para o largo da aldeia, onde o padre se juntara aos políticos e ao povo, já imaginando os milhares de milhões de garrafas de água daquela chuva (com certeza que a água seria sempre daquela chuva para quem a comprasse) que seriam vendidos como a água milagrosa que salvou a aldeia da seca.
Aqua Sancta, murmurou ele, recuperando um saber latino que a sujidade do seu corpo tornava invisível. Há-de chamar-se Aqua Sancta.
Algo cansado de representar o papel de tonto, cansado da máscara de vadio tolo, estratégia adoptada quando em anos anteriores decidiu viver filosoficamente à margem da sociedade, sentia agora o apelo, um bichinho a roer dentro de si, de ser igual ao comum dos mortais, de ser como todos eram na aldeia. Na verdade, já não o estimulava intelectualmente fazer-se de tonto para poder gozar a tontice colectiva e, sobretudo, fugir a essa tontice. Por isso, via agora a oportunidade, através do negócio da sua Aqua Sancta, de se passar para o lado dos que, sendo sensatos por fora, são tontos por dentro. Ora, vingando o negócio, também a sua imagem de homo sanus ganharia credibilidade, primeiro passo para vir a ser o rei dos tolos que sobre a terra se julgam espertos.
Com estes pensamentos, entrou no largo da aldeia no momento em que o padre, os políticos e a multidão faziam uma pausa nas rezas e nas manifestações fervorosas de fé. Chegou-se ao padre, que fingira não ver a sua aproximação, pôs-lhe uma mão sobre o ombro, segredando-lhe ao ouvido que tinha coisas importantíssimas e urgentes a dizer-lhe.
Agora não, Milfontes, sacudiu-se o pároco. Agora não tenho tempo para tontices.
Uma cobra de raiva atravessou-o, quase o levando a despoletar uma granada de piolhos na boca do padre. Mas saiu dali, cabisbaixo, murmurando a lição que aprendera: ao tonto só lhe é permitido ser tonto.
E agora?, interregou-se. Entre a acção e a inércia, entre a intervenção e a indiferença, o que deveria escolher? Seguindo o instinto mais primário, mais ancestral, obedeceria ao sentimento de vingança que o motivava para encetar uma estratégia de destruição do padre E começou a imaginar a delícia de poder manipular como marionetas toda a gente, sobretudo transformar o padre e os políticos em animais de estimação. Por outro lado, se acaso o espírito messiânico vencesse esta dualidade, agiria como um D. Sebastião apolíneo, regressado para salvar os indigentes humanos das trevas. Para isso, lembrava-se agora, poderia talvez contar com a preciosa colaboração do piolho-de-cobra, eremita mais pseudotonto do que ele, e especialista em tudo o que diga respeito à hidromancia.
E agora?, concluiu, qual escolho? E para que mais tarde a sua consciência o não acusasse de nada, subtil fuga à responsabilidade da escolha, pegou num seixo de duas faces, marcou uma e atirou-o às nuvens, para que fossem os Fados a decidir, conforme a posição em que caísse na terra. Ora, quando o seixo furava como uma seta o ar, eis que, para espanto dele, uma cobra voadora foi apanhada pelo projéctil. Caiu mesmo junto a seus pés, e ele estremeceu quando reconheceu no bicho a cara chapada do padre. Ainda não refeito da surpresa, uma nuvem de cobras foi espalhando uma sombra móvel sobre a aldeia. Olhou o céu e percebeu que se dirigiam para o largo da aldeia.
E agora?
Milfontes, levanta-te e caminha!, ouviu ele uma cobra verde dizer lá do alto do céu. Olha-te, Milfontes, com esses olhos que tens na cara, e diz-te o que vês em ti. Olha como tens a pele limpa e respeitável. Tu eras o tonto do pó! Uma coisa é decidirmos ser e viver, vestirmo-nos de andrajos, gozarmos a tontice colectiva sem lhe pertencer, outra coisa é sermos a negação de nós próprios. Deixa de viver a tua mentira, João Milfontes! E agora vou-me embora com o meu bando, que esta água abençoada que cai do céu já me esfria o corpo.
João Milfontes oscilou entre a surpresa de tão estranha aparição de uma cobra falante e o incómodo de ela lhe ter atirado à cara que a sua verdade era uma grande mentira. Mas como a mentira é mais forte do que a verdade, ou porque o hábito faz o monge, neste caso, decidiu-se a ir à gruta do eremita piolho-de-cobra, com a esperança dele receber o conselho que o tornaria sabiamente o rei dos tolos da aldeia, graças à comercialização da sua Aqua Sancta.
Chiça, é difícil a vida de eremita hoje em dia, desabafou mal viu Milfontes entrar na gruta. Estava eu tão descansado aqui na toca a ler o Cama Chuta para solitários, quando a vista dá de ficar baça e as orelhas a ferver. Ainda bem que são curtas, e eu logo desconfiei que era o chato do Milfontes com os seus problemas existenciais. Chiça, antes de tu apareceres, na altura em que mudava de posição poisa-me uma cobra voadora em cima, desnorteada de todo, perdida de cansaço e de encanto, e disse-me que ia morrer mas só depois de dizer tudo, como nos filmes, e por isso ainda ia pensar se havia de não dizer ou morrer, mas o melhor era eu ligar-me à banda larga para não perder muito tempo, repetia a cobra sem sair de cima de mim. Então, farto de a ouvir, porque queria avançar no Cama Chuta, pedi-lhe para ir morrer bem longe para não deixar cheiro. Mas, porém, contudo, todavia, há dias e noites em que um eremita não tem descanso. E vai então logo me chega ao nariz um perfume de lírios do campo, e vi logo que eras tu, tudo por causa de teres escavado o sujo entre as unhas. E agora, se olhares para o sítio que escavaste no dedo, verás brotar de lá toda a tua beleza interior. E essa é a tua grande verdade, Milfontes, é seres um lindo lírico, desculpa, quis dizer lírio. Mas como estou farto do cheiro a lírios, é coisa que não falta aqui onde moro, dei de ficar agoniado e fui logo cheirar hortelã-pimenta. Se de ti tivessem saído amores-perfeitos ia logo num pé ao teu encontro porque nunca vi um em lado nenhum e muito menos nestes meus cem anos de solidão. Portanto, eu vou mas é lá abaixo à aldeia acabar com esta história sem pés nem cabeça. Por conseguinte, embrulho-vos a todos num pano cru, Milfontes, padre, políticos e povo, e ainda mais o atrevido escritor que a todos nos inventou. Enterro-os a todos bem fundo, debaixo da lama, e regressa tudo ao ponto de partida, antes que saia daqui um romance que dê em besta célere, e depois temos aqui um escritor a facturar milhões com histórias de tolos e mentiras.


Menção honrosa nos V Jogos Florais de Avis, 2007

Fogo

O velho tem rosto e ele não sabe que rosto tem. Há muitos anos que deixou de se ver ao espelho. Esqueceu o rosto. Por vezes sente a tentação de imaginar o rosto, de o configurar a partir de bocados do seu passado. Mas logo sacode a ideia num meneio de cabeça. Mesmo quando visita o riacho, para nele se banhar ou aprovisionar as necessidades domésticas, mesmo nesse riacho que se espreguiça a pouca distância do casebre, ele fecha os olhos para não se ver reflectido no espelho de água fragmentado. Desinteressado do rosto, deixou-o cobrir-se por umas barbas que o invadiram como um silvedo em terra agreste. Se acaso o velho visse o rosto, ele veria apenas dois olhitos baços e continuaria sem saber que rosto dormia sob aquele manto disforme. O velho não sabe que rosto tem. Ninguém sabe que rosto tem o velho. Há muitos e muitos anos que ali vive sozinho, no alto da serra, da serra que ele vê, do nascer ao pôr-do-sol, vestida de verde.
Na noite quente de Agosto, o velho está sentado numa pedra, encostado à parede da casa. Gosta de estar assim, imóvel como a pedra onde se senta, imóvel como a noite que o envolve, escondido no negrume das suas barbas. Escuta. Absorve odores nocturnos. Escuta a polifonia que a natureza liberta e atribui um nome a cada som com um sorriso. Quando um som desconhecido surge na noite, ele apura a audição e regista-o na pauta da memória. Reconhece com facilidade as fragrâncias que passeiam pelo ar. A cada som e a cada odor deu um nome. Um nome para cada coisa invisível, para cada coisa sem rosto. Sabe-se agora por que razão não gosta de contemplar as estrelas.
Súbito na noite, em simultâneo, olfacto e audição captam na lonjura da serra dois indícios que o velho instintivamente associa. Um cheiro a lume e fumo sobe pelas cavernas do nariz e os ouvidos murmuram-lhe um ténue crepitar de chamas. Demora uma fracção de segundo a ignorar esta ocorrência, tão banal no seu quotidiano nocturno. E o velho sem rosto, esquecido da persistência destes sinais, volta a mergulhar na noite sem rosto.
Por pouco tempo. O cheiro a fumo começa a acomodar-se na roupa e névoas de fumo passam pela cara. O crepitar do lume aproxima-se num crescendo de volume. O velho levanta os olhos para o cume da serra e sereno continua perante a realidade já pressentida. E vê uma comprida cobra de fogo, faminta e enraivecida, a devorar tudo à sua rápida passagem, avançando na direcção da casa.
O velho não se assusta. Permanece sentado na pedra, de olhos fixos na voragem das chamas. Conhece muito bem o fogo. Lidou com ele desde garoto. Aprendeu a combatê-lo, a dominá-lo e a extingui-lo. O fogo é o ex-libris da sua vida.
Assim estando, sentado na pedra junto à velha casa, o velho revê-se menino a saltar à fogueira pelos santos populares. Era no tempo em que a rapaziada construía presépios na rua e pedia aos transeuntes um tostãozinho pr’ó Santo António. E à noite havia arraial. Talvez tenha começado nesse tempo a sua sedução pelo fogo. A coragem de o arrostar, de o conquistar. Depois, já adulto, foi a sua prestação dedicada como soldado da paz. Aqui, uma luta de gigantes, nunca se deixando surpreender pela manhosice diabólica das chamas.
Uma vida à volta do fogo, acendendo e apagando o fogo do coração também. Gostava, na adolescência, de cantarolar «amor é fogo que arde sem se ver». Incendiou paixões e em paixões ardeu.
O velho continua sentado. Sabe que não tem pernas para fugir ao lume que o persegue nem braços para lhe fazer frente.
O ar começa a tornar-se irrespirável, o fumo envolve tudo e o calor aumenta. À sua frente um mar vermelho alastra sobre si. Já galgou o riacho. E, neste instante, acende-se-lhe na memória o fogo que durante a sua vida lhe queimou a alma, o fogo que lhe queimou o sorriso dos lábios, o fogo que lhe cobriu o rosto de cinzas.
O velho sabe que vai morrer mas espera a morte com serenidade e indiferença.
Quando o seu corpo for encontrado, ninguém saberá que o velho, antes de morrer carbonizado, já há muito tempo ardera completamente por dentro.

Jornal da Mealhada, 464, 03.09.2003

À volta de um copo

Hoje decidi ir à procura da vida autêntica.
Sei de alguns amigos que se encontram aos fins-de-semana, umas vezes por mero acaso, outras de propósito, para conviverem à volta de um copo. Vou, pois, procurá-los, começando pelo café do Dionísio, como quem deseja apenas uma saborosa bica. Tenho aqui, de certeza, matéria suficiente para escrever um tratado sobre a vidinha. Hei-de arranjar arte e engenho para me transformar em personagem secundária.
Cá estou, de pé, junto ao balcão, a saborear o café. Escolhi o lugar estratégico, à custa de um saber feito de experiência observada: é de pé que se bebe, em círculo, para que o encontro da vida se não disperse. Hão-de aparecer, não tarda muito. Entretanto, vejamos a parte final da telenovela.
Eis que chega um deles. Homem novo ainda, na casa dos trinta, funcionário público, alguma cultura e inteligência quanto baste. Enganou-se quem esperava ver entrar um miserável bêbedo, tipo português clássico. Está gasto o tema do Portugal Velho. Hoje, bebe-se com sabedoria. A leitura que se faz do acto de beber é diferente. Em cada copo há um gesto social, uma filosofia de vida. Ah... A noite promete: em breve captarei a essência da vida. Isto vai ser o melhor livro do mundo.
Cumprimentei-o já com um aperto de mão. «Eu pago a bica do Parreira», aviso o Dionísio. Dois dedos de conversa banal. Tudo coisas da vida: a morte de quem estava vivo, a chuva que teima em cair, as eleições…
Chega-se a nós o Branco. A coisa está a compor-se. Que rico livro vai sair daqui! E sem necessidade de puxar pela imaginação. Pago também o café do Branco. Esta noite estou disposto a pagar tudo. Não ficarei a perder.
Mais meia-hora de conversa fiada. O café vai-se enchendo lentamente. Temos futebol na televisão. Alguém, ao fundo do balcão, começa a levantar a voz. Protesta contra o árbitro, contra a marcação da grande penalidade, contra o treinador e, por distracção, contra si próprio. Agora berra e dá murros no balcão. Coitado! Deve estar cheio de razão nestes assuntos importantíssimos. Dionísio recomenda moderação. O barulho incomoda-me, mas a cena diverte-me. Os clientes das mesas concentram-se no televisor. O fumo dos cigarros começa a esfarrapar-se pelo ar. Copos de cerveja e pires de tremoços ocupam as mesas. «É a vida que começa a invadir-me», penso. Dois amigos de ocasião juntam-se a nós. Tomo a iniciativa: «Ó Dionísio, uma rodada!». Causei surpresa __ e da grande! «Um escritor a beber!?... Um tipo porreiro! Até bebe uns copos com a malta!».
Goooolo!!!... Atiram-se braços para o ar, arrastam-se cadeiras, atropelam-se vivas e outras manifestações de alegria. Reclamam-se novas rodadas de cerveja. O Dionísio não tem mãos a medir. «Cá está o espectáculo fora do espectáculo! Cá está a vida a acontecer!», penso.
O Branco pede nova rodada. Que vem farto de água, lá na barragem onde trabalha. Não me incomoda outro copo de cerveja. Sei até onde posso ir e a mais não sou obrigado. Hoje quero apenas apalpar o terreno e ganhar-lhes a confiança. E, verdade seja dita, estou a gostar de quebrar a rotina. Sinto-me relaxado, animado, livre como um cavalo à solta num prado. A comparação é velha mas serve perfeitamente.
Acabou o futebol. Grande parte da freguesia começa a desandar: a que não gostou de perder. Chegam copos. Começo a recear o efeito. E até agora a tal vida autêntica tem sido copos atrás de copos. Olho para o relógio de parede e descubro a uma da manhã embaciada. Sinto que ultrapassei a tolerância máxima e que estou a chegar à segurança mínima.
Estou de copo na mão a fruir a actuação do Parreira. Abre os braços e declama: «Ó mar salgado, quanto do teu sal são lágrimas de Portugal!».
Não resisto a este apelo. Afinal, sempre há alguma cultura nestas andanças da vida. Salto para cima duma mesa, ergo o copo, procuro o equilíbrio, e continuo: «Por te cruzarmos, quantas mães choraram, quantos filhos em vão rezaram!».
O pessoal aplaude entre risos. Descobri uma nova vocação. Mais uma golada enquanto vou descendo.
Aiiii...
A queda não foi grande, mas deixou-me sem força nas pernas para me levantar.
Será isto a vida autêntica?


Jornal da Mealhada, 364, 20.06.2001

A Cigarra e a Formiga

Julga o caro leitor que hoje venho aqui contar a clássica fábula da cigarra e a formiga? Não é esse o meu propósito. Reproduzir aqui, textualmente, as palavras que narram essa história de cunho moralizante é coisa que eu nunca faria.
Quero evitar a velha história mas dela não me livro como ponto de partida. E tudo por culpa do Verão. Do Verão das tardes quentes, dessas tardes que levam os passos ao encontro da natureza. Passeios pelos campos, pinhais e vinhedos, revisitando os sítios do passado que fazem parte de nós. Reconhecer os cheiros que a terra exala, dispersos no ar pela brisa da tarde. As narinas embriagam-se de sabores a terra sedenta, a palha, a caruma, a eucalipto, a malmequeres; de sabor refrescante, o cheiro líquido da água dos poços e dos ribeiros. Aos ouvidos chega uma sinfonia de sons orquestrados por grilos, passarada e cigarras.
Cigarras... Pois foi o canto deste bicho que fez suspender os meus passos durante um passeio campestre.
A memória, de repente, transportou-me ao tempo da escola primária. Vi-me a folhear o livro da quarta classe e a ler a fábula da cigarra e a formiga.
Despertei desta memória. Olhei para o chão à minha ilharga, fiz visão de raios X, mas carreiro de formigas laboriosas não havia. Paciência!
Voltando à fábula, todo o seu novelo se desfiou nos meus pensamentos, imaginando as sacrificadas e previdentes formigas no labor quotidiano de armazenar o sustento para o futuro próximo, ou seja, o Inverno. Saboreando as delícias do Verão, no remanso fresco duma árvore, exalta a cigarra hinos de alegria à vida, com um refrão que me parece ser assim: «A vida é bela! A vida é bela!». No solo, debaixo da árvore, formiga a formiga se movimenta o trabalho. E a cigarra repetindo, provocando a formiga: «A vida é bela! A vida é bela!».
A lição de moral, no fim, evidencia-se com o castigo aplicado à cigarra: mortinha de fome, no Inverno, sujeita-se a pedir esmola à poupada e trabalhadora formiga.
Hoje percebo que a história, seleccionada para figurar no livro oficial da instrução primária, tinha implicações político-ideológicas. O ensino do Estado Novo via na fábula um bom exemplo de pedagogia do trabalho e da poupança.
Assim quedo a ouvir o canto da cigarra, levou-me a memória uns anos mais à frente, ao tempo do liceu, já depois do 25 de Abril. E novamente a cigarra e a formiga me visitaram, num conto de Miguel Torga.
No conto deste autor a mensagem é subvertida. O canto da cigarra, expressão de preguiça na velha fábula, é agora sinónimo de criação artística. Poeta do canto, este ser vive a sua liberdade plena, criativa, sem estar sujeito aos valores normativos da sociedade. O sentido da sua vida é criar, liberto de um trabalho que escraviza e automatiza, de um modo de vida que garante o sustento material mas que priva a alma de sentir e fruir o que a vida tem de verdadeiramente belo.
Neste confronto, considerando as duas versões da história, uma questão, com respostas divergentes, se levanta: a de se saber onde está realmente a riqueza. Na cigarra ou na formiga?
Desperto destas cogitações, mantive-me mais uns minutos a escutar o canto da cigarra na oliveira. Era um canto agradável, de facto, que dava vida à tarde sonolenta. Mas, marcado por reflexões de índole intelectual, comecei a registar na pauta dos meus ouvidos os repetitivos acordes musicais da cigarra perto de mim. Era sempre o mesmo ritmo, a mesma musicalidade, a mesma letra, o mesmo refrão.
«A vida é bela! A vida é bela!»
A cigarra era, afinal, prisioneira de um canto único. Que monotonia!
Também a formiga vivia prisioneira de um único trabalho trilhado a negro no chão da vida. Que monotonia!
E dali me afastei, procurando outro caminho. Um caminho que não fosse cigarra nem formiga.

Jornal da Mealhada, 418, 04.09.2002

OS TEUS OLHOS

Comecei a ver no dia em que os meus olhos nasceram nos teus. Frase bonita para uma declaração sentimental. E de sentimento se trata, realmente, mas de uma espécie desconhecida pelos dicionários e pelos tratados das paixões da alma. Já procurei a definição deste sentimento. Debalde. Talvez exista apenas em mim. Talvez um dia consiga inventar o nome certo para ele.
Moramos em cidades distantes, nunca falámos, nunca nos vimos olhos nos olhos, nem sequer ao longe. Não sabes que eu existo. Eu sei que tu existes. Desde o dia em que te descobri, os meus olhos nasceram nos teus. E com os teus olhos comecei a ver o que os meus não alcançavam.
Os teus olhos estão em minha casa, fechados no descanso duma prateleira. Escolhi para eles o sítio mais perto de mim, quando no sofá do escritório me sento para ler. É só estender os dedos, sempre que me apetece ver com eles. Abrem-se brilhantes na minhas mãos os teus olhos e pestanejam antes de novas ideias e imagens me darem. Fico preso a eles, encantado e esquecido do tempo que à minha volta flui. Por eles vejo todas as vidas que o mundo nem imagina ter. Terá o mundo consciência das vidas que possui?
Os teus olhos conhecem as vidas que fazem o mundo! Dão-me a ver vidas tão diferentes: vidas medíocres, vidas banais, vidas gloriosas, vidas singulares. Os teus olhos mergulham nessas almas evidenciando com mestria as suas grandezas e misérias. Os teus olhos são magníficos; até conseguem ver uma vida a três dimensões!
Certo dia, com os teus olhos, percorri um labirinto humano que eu nem sonhava existir. O conhecimento profundo dessa realidade inimaginável deixou-me deprimido durante uma semana. Os alicerces da minha existência tremeram e interroguei-me seriamente acerca da condição humana, do destino trágico do ser humano. Como é doloroso conhecer a alma da vida!
Todavia, há ocasiões em que os teus olhos são uma paisagem colorida. Como se mudasses de lentes de contacto, apagas a escuridão dos teus olhos para neles colocares tanta luz. Apesar do desencanto, vês que ainda é possível acreditar, e contigo eu também aprendo a acreditar.
Por que sabes tanto da vida? Como consegues ver beleza na tristeza e indiferença na alegria? Talvez já tenhas passado além da dor e agora tens a serenidade do olhar que o amadurecimento consente. Sabes?... Desde que descobri os teus olhos, estou a aprender a olhar a vida com outros olhos, com a coragem que faz de um espinho a rosa florida!
Às vezes sou invadido por súbitas interrogações. Desconfio que os teus olhos são puro fingimento. Que os olhos com que vês o mundo não são os teus verdadeiros olhos. Que esses olhos são roubados a pessoas anónimas que passam na rua, para as quais inventas biografias insólitas. Que vais buscar esses olhos a mortos e a vivos, a qualquer espécime humano que te horrorize ou encante.
Tenho de te confessar: Nos últimos tempos, quando vejo com os teus olhos é como se me visse ao espelho. Chego a pensar que vejo e sinto com os meus próprios olhos. Pode ser ilusão da minha parte, mas pressinto que os olhos com que vês o mundo já são os meus olhos quase. Quase porque percebo que há uma pequena diferença entre eles: os teus atingiram um entendimento superior da vida; os meus ainda não.
Quando os meus olhos se fundirem completamente com os teus, com que olhos verei realmente o mundo?

Jornal da Mealhada, 451, 07.05.2003

O Escultor

Era uma vez um escultor. Vivia sozinho no alto dum monte. Fora da casa havia a serra feita de rochedos e urze. No recinto da casa, por dentro do muro de pedra, abundavam árvores frondosas que cobriam de sombras perpétuas o chão. Por debaixo das sombras havia um chão revestido a musgo e a verdete. Pedras e rochedos de todos os tamanhos erguiam-se do solo. De algumas pedras brotavam esculturas. Figurações que a mão humana esculpiu na pedra bruta: um livro aberto, um rosto, um anjo, uma mulher, um gato, uma ave. O escultor fecundava a pedra com as suas mãos e o chão à volta da casa ia-se enchendo de esculturas.
O escultor vivia sozinho, naquela casa, há dezenas de anos. Veio da cidade, onde tivera um atelier. Tinha sido famoso e rico. Presença obrigatória no Jet Set. Vida mundana.
Conhecido pela sua estatuária de linhas originais, de estética indefinida, ousou esculpir uma coisa inédita. Com a mente, com as mãos, com o cinzel e com a pedra informe criou um objecto que figurava a Morte. Este foi o título que lhe atribuiu.
A peça foi exposta numa galeria chique e visitada por gente chique. A escultura ganhava uma forma diferente para cada observador. A forma diferia em função da morte que cada um trazia dentro de si. Este polimorfismo não era do conhecimento público. Nem do próprio escultor. Cada par de olhos moldava na peça a forma da morte que vivia no interior de quem olhava. A reacção foi de repulsa e de revolta. Ninguém suportava ver o seu interior representado na pedra. Que já não era pedra.
O escultor, com esta obra, tornou-se uma pessoa odiada e perseguida. Esta foi a morte artística do mestre. Se acaso tivesse criado a Mentira, o sucesso teria sido estrondoso. Com a mentira, subiria ao pedestal da imortalidade. O seu nome ganharia o estatuto de mito.
Abandonou a cidade. A cidade onde não era permitida a existência de uma expressão artística autêntica; onde tudo tinha de ser fingido, artificial e oco.
Refugiou-se no campo, isolado de toda a vida social. Naquela casa velha, perdida no alto do monte, encontrou o paraíso. A natureza brindava-o com o material de que necessitava para realizar o que as suas mãos gostavam de criar. A arte era a sua vida.
No primeiro ano de presença na casa, nada quis conceber e materializar. Passava os dias a contemplar as pedras e nem tentava tocar-lhes, com receio de quebrar a sua decisão.
Um dia, recordando-se da Morte que acabara por o levar até àquela casa, iluminou-se-lhe a ideia de esculpir a representação da Vida. Algo que, à semelhança da Morte, se mostrasse como um objecto vivo. Uma pedra com alma. Uma pedra que fosse a Vida.
O escultor acordou para a arte. Deitou mãos à obra. E foi construindo inúmeras peças __ pequenos ensaios para a grande e última obra que desejava criar. Dos rochedos à volta da casa, acariciados pelas suas mãos, foi crescendo a colecção de esculturas.
O escultor foi envelhecendo, desgostoso por não conseguir encontrar a forma da Vida nos rochedos que ia esculpindo. Envelheceu. As mãos perderam a firmeza do cinzel. Mas o rochedo esperava por ele. E passava os dias sentado nele, com o cinzel nas mãos, numa pose pensativa.
A morte veio encontrá-lo, certo dia, nessa posição. Não deu por nada. Assim permaneceu, estático, sobre a pedra que seria a Vida. As sombras e a humidade do rochedo entranharam-se no seu corpo. Lentamente, confundiu-se com ele. Petrificou-se. Tornou-se a própria pedra.
O tempo passou. O musgo e o verdete cobriram-no completamente. Mas ficou bem visível, sobre o rochedo, a representação em pedra de um escultor com o cinzel na mão.
Quando foi descoberto, anos depois, ganhou fama em todo o mundo. Quem olhasse para aquela escultura, sentia que estava a olhar para a Vida.



Jornal da Mealhada, 455, 04.06.2003

O Sabonete

Nessa manhã, quando cheguei a casa depois de um dia de trabalho, ansioso por um banho reconfortante, encontrei um vazio à minha espera. Em cima da mesinha, à entrada, um bilhete manuscrito testemunhava o adeus definitivo da minha última companheira. Senti-me invadido por um sentimento sem definição, nem alegria nem tristeza, talvez indiferença, misturada com uma ponta de estranheza por esta relação amorosa ter terminado sem troca de palavras, sem qualquer justificação. Confesso que esta ruptura, pela forma como se consumou, encheu-me de interrogações durante alguns segundos. No fundo, concluí que esta estratégia de despedida, não sendo original, tinha a vantagem de evitar cenas mal representadas.
Despi-me, entrei na casa-de-banho cantarolando uma ária qualquer, da qual só conhecia a expressão la dulce vita. Reparei que havia vestígios de banho recente. Ar mais quente e um aroma macio de mulher. Pus-me debaixo do chuveiro, accionei um jacto de água e fiz o gesto de apanhar o sabonete. Achei a saboneteira vazia. A mulher nem sabonete me tinha deixado.
No dia seguinte, fui de propósito ao hipermercado (eu moro mesmo próximo) comprar uma caixa de sabonetes. É verdade: uma caixa de sabonetes! Homem prevenido não mais ficará sozinho sem sabonete.
Cheguei junto à estante... Azar! Quantidade de sabonetes não havia. Um só exemplar me esperava, e pensei que muito amor se estava lavando neste mundo. A marca era Lux, coisa de que eu precisava mais do que nunca.
Nesse instante, quando me preparava para pegar nele, uma outra mão o disputou, colhendo-me de surpresa. Era uma mão nívea, feminina de encantar. Mas o que eu procurava, a sério, era um sabonete. A mão podia vir depois...
Sabonete molhado escaparia aos dois pretendentes; assim, seco e embrulhado, só podia dar espuma de conversa.
«Desculpe», disse delicadamente, «eu peguei primeiro.»
«Desculpe», respondeu ela, «pegámos juntos. E uma senhora tem prioridade.»
«Só quando se apresenta pela direita.»
«Aqui não tem direita nem esquerda; isto não é um acidente de viação.»
«Eu vi primeiro o sabonete», retorqui, sem largar.
«E quem pensou primeiro?», teimou ela, sem largar.
«Ora», exclamei, «você não tem mão de quem usa Lux. A sua marca é, de certeza, Nívea
Conversa puxa sabonete, sabonete puxa conversa! Em cinco minutos, chegámos a um acordo: partilharmos o sabonete em minha casa.
Eu não vou contar como fiz este fim feliz. Isto que estou escrevendo não é um Manual do Sedutor.
Meus dias futuros passaram sorridentes e perfumados a feno. Eu desconhecia esta fragrância em sabonete. E também em corpo de mulher. Era como fazer amor em pinhal aberto, com os poros da natureza exalando a essência do feno.
Quando regressava do trabalho, e me encontrava com ela, nós logo corríamos para o banho, inundando-nos de feno. Eu estava a viver uma magia de amor nunca experimentada. Por fim, tinha encontrado o sabonete certo. Ele era de tamanho gigante e resistente à água. Felizmente...
A companhia dessa mulher fez-me perder a noção do tempo. Graças ao sabonete! Os verbos viver e amar estavam bem conjugados.
Um dia, depois de muitos dias iguais, cheguei a casa e encontrei um novo bilhete. Só mudara a caligrafia; o conteúdo da mensagem era o mesmo. Desta vez fiquei aborrecido. Não tanto pelo abandono, mais pela falta de inventiva.
O melhor, nesta situação, é tomar um banho de esquecimento. Fui lá. Sabonete não havia; gastara-se até ao fim.
Só me restava ir ao hipermercado.

Jornal da Mealhada, 374, 03.10.2001

O Velho

Quando tomei conhecimento da sua morte, já ele fora enterrado há dois meses. Soube-o por acaso, durante a leitura de um pequeno jornal de província na biblioteca da minha cidade. A notícia apanhou-me de surpresa, pois não esperava vir a saber da ocorrência numa situação destas. A sua morte, em si, nada me espantou. Era previsível. Quando o conheci, anos atrás, julguei estar perante um homem mais novo. O chapéu preto assentava sobre os raros cabelos grisalhos. Era possante. Com esta figura, não fui capaz de adivinhar os seus noventa anos.
Tivemos um relacionamento breve mas profundo. Deixou-me raízes na alma. É claro que falo por mim. Não sei o que de mim ficou nele. Acredito que nada de especial. Fui, com certeza, um homem banal que com ele se cruzou na vida.
Parti, ficou. Eu trouxe-o comigo, dei-lhe estatuto de personagem principal. Daquelas personagens humanas que, habitualmente, são transformadas em personagens de papel pelo escritor. Eu, escritor, confesso: não há melhor imaginação do que a realidade. E a realidade que foi esse homem está guardada na minha memória à espera de uma boa oportunidade para a transformar em personagem. Talvez dê uma personagem. Daquelas personagens singulares que, por si sós, fazem um conto ou um romance.
Nesse ano, eu optara por passar as férias numa aldeia da Beira Interior. Paz bucólica quanto baste, sem laivos de romantismo. Passeios terapêuticos e ar puro. Leituras despreocupadas. Eis tudo o que eu pretendia da minha fuga citadina.
Encontrei-o num desses passeios campestres. Os passos sem destino tinham-me levado até uma estação arqueológica abandonada. Tratava-se de uma vila romana que fora descoberta num olival. O entusiasmo dos populares, com a orientação de um arqueólogo amador, trouxe à superfície achados que colocaram o nome da aldeia nas primeiras páginas dos jornais.
Toda a glória terrena é efémera. Com ou sem história, a aldeia continua na mesma pobreza económica. O olival era mais produtivo.
«O azeite é a luz do povo», disse-me ele, lamentando o abandono da estação. E continuou: «Fui eu que descobri a existência destas ruínas. Não tenho estudos superiores, tenho apenas a quarta classe. Mas sou um estudioso que tenta decifrar os textos da natureza. Basta examinar a superfície das suas páginas para se descobrir nas entrelinhas o não dito. Até a superfície mais prosaica, mais árida, pode esconder um mundo de tesouros. Para se desvendar os segredos do mundo, é preciso saber captar os mais ínfimos sinais que os textos da natureza revelam à superfície.»
Foi esta revelação de um homem sem formação literária a falar de coisas com um estilo tão expressivo que me cativou. Era um sinal que eu não podia ignorar. Senti que nele, tal como acontecia com a natureza aparentemente estéril, poderia existir uma fonte de riqueza humana inédita na literatura.
Em outras circunstâncias, depois de termos criados laços de amizade, o seu discurso tornou-se mais natural. Falava com simplicidade, com o vagar da sua idade. Quando se referia a iniciativas que nasceram das suas mãos, as palavras saíam-lhe trémulas, tocadas de ternura e amor.
Levou-me, então, a visitar o pequeno museu que ali construíra com a ajuda dos aldeãos.
«Guardámos aqui os achados. Moedas, peças de cerâmica e de ourivesaria. Essas coisas já conhecidas mas sempre interessantes. Sabe, os documentos antigos referem a passagem por este sítio de uma via romana importante. Tenho uma teoria sobre o seu traçado. Mas os especialistas riem-se de mim. Não na minha cara, por respeito. Mas eu vejo-lhes o riso nos olhos. Ainda por cima, levaram as peças mais valiosas para o Centro de Estudos de Arqueologia, com o pretexto de fazerem um estudo rigoroso. Nós ficámos com as unhas sujas de terra.»
Durante o período de férias desloquei-me várias vezes à vila para me encontrar com ele. Falávamos das nossas vidas, dos nossos sonhos. Passávamos as tardes sentados num banco do jardim à sombra de uma tília frondosa, narrando o que nos ia na alma. Foi assim que, à medida que ele ia ganhando confiança em mim, sabendo que eu não era um igual aos outros arqueólogos que o olhavam com altivez e pena, me fui inteirando da sua vida passada. E eu, narratário da sua história, jamais pude esquecer essa narrativa que lhe conferia, sem favor, o privilégio de uma personagem única.
Quis mostrar-me a vila e as obras sociais que realizou. Visitámos o Quartel dos Bombeiros Voluntários, de cuja associação foi co-fundador e primeiro comandante do corpo activo. Passámos pela sede do clube de futebol e disse-me que fora ele a dar o pontapé de saída nesta modalidade. «Tempos difíceis», explicava. «Não havia dinheiro, os sacrifícios eram muitos. Tudo por amor à camisola e à terra. Agora…» Levou-me depois a um velho armazém que outrora fora um teatro cheio de actividades. E recordou a construção do edifício, cujo palco ele pisara tantas vezes como actor.
Via-se que o homem vivia preso à memória do passado. Sentia-se nas palavras serenas a nostalgia de épocas gloriosas. Eu olhava as ruas da vila, as obras por si construídas, e em tudo pressentia a sua imagem, o seu rosto, a sua pela, a sua voz. Este homem vivia da argamassa que sustentava o passado. Nunca aludia à sua vida presente. No entanto, eu sabia que estava viúvo e que os seus filhos haviam emigrado. Nas suas palavras nunca vislumbrei indícios de solidão. Não falava do presente e evocava o passado sem um leve queixume, com uma profunda paixão. O passado era a sua âncora e o seu espelho.
Vim a saber, mais tarde, através de um vizinho, na aldeia onde morei durante essas férias, que o Velho calava um desgosto no fundo do coração. Que na hora da verdade a terra se mostrava ingrata.
Uma luminosa curiosidade acendeu-se nos meus olhos. Com todos estes ingredientes, imaginava já uma boa história. Mas não tive coragem para abordar este assunto. Tocar a sua dor seria rasgar o véu da sua ilusão. A sua vida começava a percorrer-me as veias. E pela primeira vez senti-me a olhar para um homem e não para uma personagem.
No ano seguinte, regressei pela segunda vez à aldeia para umas curtas férias. Não costumo reincidir na escolha do mesmo lugar, gosto de mudar de sítio, ser itinerante por vocação, encontrar na variedade geográfica e etnográfica um enriquecimento cultural sem limites. Mas tinha o rosto do Velho colado a mim como a sua pele a revestir as obras sociais da vila. Sou escritor, busco personagens de carne e osso invulgares que sirvam para as minhas recriações literárias. Não há oportunismo no meu comportamento nem hipocrisia no meu relacionamento com elas. Impele-me a mesma paixão que alimentava o Velho. Ele captava os indícios históricos na face da natureza, eu recolho personagens sui generis que a face da vida não mostra a olho nu. Apenas formas diferentes de nos escrevermos na face do destino.
Voltei então à mesma aldeia, menos sentimentalista e ansioso por reencontrar esse homem, curioso por desvendar aspectos recônditos da sua alma ainda não acessíveis. Cheguei durante a tarde. Desfiz as malas e decidi dar um passeio pela estação arqueológica. O calor dilatava o canto das cigarras.
Quando me aproximei das ruínas, avistei o Velho. Apanhava uma pedra do chão, examinava-a e deixava-a cair. Repetia o gesto. Por vezes, examinava-a mais demoradamente e guardava-a no saco que trazia consigo.
Cumprimentámo-nos. Achei-o mais derreado, mais envelhecido. As suas palavras continuavam serenas, calmas como o chapéu na cabeça. Via-se que não lhe esmorecera o gosto pela arqueologia. E disse-me, muito entusiasmado, que as pedras que ele recolhia tinham impressões, sinais, marcas de uma existência humana remota que o tempo e a erosão não apagaram.
«Não lhas mostro agora porque estão sujas de terra. Vá a minha casa, amanhã. Tenho lá mais. Talvez me possa ajudar a decifrá-las.»
Fui. A casa estalava de velhice. A cal desprendia-se das paredes e um cheiro a mofo e a madeira carunchosa pesava no ar. Levou-me a um quarto sem móveis. O soalho estava coberto de pedras de todos os tamanhos. Pegou numa. Perscrutou-a
«Aqui está!», exclamou. «Veja esta incrustação. Nesta posição, vê-se que tem a configuração de uma moeda.» Largou a pedra. Pegou em outra. «Veja esta. Assim é um rosto, mas, se a virarmos, parece a cabeça de um cavalo.»
Eu nada via o que ele descrevia. Para mim, eram pedras e nada mais. Pedras com cicatrizes deixadas pela agressividade do tempo. Senti vontade de o confrontar com a realidade mas não tive coragem de o fazer. Deixá-lo acreditar na sua fantasia se isso o faz feliz! Fiz-me personagem do seu mundo. Mostrei interesse, dei sugestões interpretativas que ele acolheu com alegria e gratidão.
Voltei à aldeia com a visão daquele quarto cheio de pedras a obcecar-me. Sentia-me triste, deprimido e com uma forte dor de cabeça. Tomei uma aspirina e atirei-me para cima da cama.
Estou novamente na aldeia, depois de dois anos de ausência. Será, sem dúvida, a última visita, nem sequer cá passarei a noite. Os passos levam-me às ruínas romanas. Tudo está mais votado ao abandono. Novas oliveiras crescem e o olival expande-se sobre a zona arqueológica. Haverá mais azeite, mais luz. Escolho uma pedra do chão. Uma daquelas parecidas com as da colecção que o Velho tinha em casa. Pego nela e vou de automóvel à vila.
Entro no cemitério. O coveiro indica-me a sepultura. É uma campa rasa, sem flores. Nem uma pétala ressequida. É esta a campa de eleição que lhe coube. Deposito sobre a sepultura a pedra. A pedra que dará a ler os sinais da sua vida a quem os souber decifrar. Uma pedra pode dizer a vida inteira de um homem.
Continuará vivo na minha memória. Talvez dê uma personagem. Dará, de certeza. Terá a sua eternidade e glória num dos meus próximos contos.
Despeço-me. Até breve. Voltaremos a encontrar-nos. Não de homem para homem. De escritor para personagem.

1º Prémio nos 4ºs Jogos Florais do Grupo de Amigos de Torres Vedras (2000)


Por esta ladeira acima


De todas as vezes que vou por esta ladeira acima sinto uma grande vontade de morrer, de ter coragem para o fazer, mas seria um pecado aos olhos de Deus, por isso seria mais fácil para mim que Deus tivesse pena desta alma penada e me mandasse a morte por esta ladeira abaixo, a descer todos os santos ajudavam, por esta ladeira que eu todos os dias, de sol e chuva, às vezes nem uma coisa nem outra, subo e desço como se a minha vida fosse um sobe e desce. Mas essa vontade não chega cá, nem a minha nem a de Deus, e então eu penso que a vida é isto mesmo, pelo menos para mim que não conheço outra desde que nasci, subir e descer, subir e descer, para tapar os buracos da fome. Que a fome é negra oiço eu dizer desde que estes olhos que a terra há-de comer viram o mundo pela primeira vez, e não era preciso ouvir isto da boca de ninguém porque a minha ainda antes de começar a abrir-se para falar as primeiras palavras já se abria bem negra para calar a fome com as lágrimas dos meus olhos. Que doce me sabia esse sal, e por aqui se prova que a lágrima de preta, sendo igual à de branca na água e no sal, é certamente mais doce mas isto são coisas que os tubos de ensaio não mostram. Negra sou e negra me vejo para ir por esta ladeira acima, já avancei uns passos nesta manhã de sol risonho em que apetece abrir as janelas de casa e ficar assim parada no parapeito a ser espectadora da vida, mas parada só à noite quando caio morta de cansaço na cama. Negra vida desta negra que um dia veio de Cabo Verde com marido e filhos para nesta terra tentar uma vida de gente. Cansada de trabalho e miséria, cansada dos olhos tristes dos filhinhos, dei por mim numa noite de fome, noite de fome e sexo, não de amor, que isso é palavra nunca dita pelo pai dos meus filhos, dei por mim a dizer ao meu homem que esta vida de merda não podia continuar, que tínhamos de tentar a sorte em Lisboa. Isto foram palavras fáceis de pronunciar, na verdade nem sequer tinha a consciência do que estava a dizer, os sonhos acordados são assim, soltam-se da boca como borboletas coloridas. O pesadelo veio logo quando o meu homem me atirou à cara, estás parva mulher, tens o dinheiro no cu para saíres daqui, não penses mais nisto e vai mas é dormir que o teu mal é sono. Eu fui dormir, nessa noite e nas seguintes, mas o sonho continuou acordado em mim e só descansei quando consegui o dinheiro necessário para a viagem, à custa da venda da terra que nos roía os ossos e de um pequeno empréstimo de uma vizinha abastada. Ainda sobre esse tempo de dificuldades, acho engraçado como um cabo verde me fez uma vida negra, tão negra que aquele verde me encheu de esperança quando comecei a sonhar com uma nova vida neste lado do mar e foi esse verde que eu trouxe comigo, de tal maneira entranhado na minha alma que até me atrevo a afirmar que o sangue que me corre nas veias é verde, e esta é a minha humilde nobreza. Ah, que saudades eu tenho da minha terra, arranca-se uma árvore do chão, transplanta-se para outro sítio bem longe, mas as pontas das raízes continuam agarradas ao fundo, e é como se a árvore vivesse num lado e tivesse os pés noutro. Vamos lá explicar esta sensação estranha se de lá fugi à vida triste, talvez seja como um cão que apanha pancada do dono e nunca deixa de o lamber com carinho. Isto é lindo de sentir e dizer porque voltar para lá nem morta, só viva de ir e voltar, o tempo suficiente para encher o vazio que me deixaram os familiares e as pessoas amigas. Mas confesso que me agrada a ideia de um dia no futuro, já velhinha e com o pão da reforma na boca, voltar ao meu cantinho e ser a tal árvore que regressa ao seu chão. Árvore velha e seca, é verdade, muito diferente dos frescos anos em que no meu corpo corria uma seiva inquieta, os meus braços eram ramos viçosos e o meu cabelo folhas ondulando ao sabor da aragem, e por esta árvore, frondosa e vistosa, todos os rapazes da aldeia queriam trepar como pássaros gulosos. Ainda hoje, olhando-me ao espelho, eu sinto-me essa árvore cobiçada, tivesse eu uma vida mais descansada e outro galo cantaria de certeza como muitas vezes me cantam os assobios dos homens atrevidos que por mim passam na rua. Basta um piropo que se ouve por acaso, passa pelo ouvido como uma breve lufada de ar fresco, é um nada que é tudo porque afinal não é preciso muito para que uma mulher se sinta viva quando essa voz é como um pássaro a despertar a manhã. Nesta manhã em que o sol de Junho incendeia a calçada, eu vou por esta ladeira acima com um sorriso nos olhos, surpreendida comigo mesma pela frase linda que consegui dizer em pensamento. Tivesse eu outra instrução e poemas nasceriam das minhas mãos, assim o que nasce das minhas mãos é trabalho de limpeza e passar a roupa a ferro em casa de senhoras ricas aqui da zona, onde eu não tenho mãos a medir, de manhã a uma patroa por esta ladeira acima, de tarde a outra por esta ladeira acima. Nem me quero recordar da dificuldade que tive para arranjar trabalho em casas particulares. Eu batia à porta, oferecia os meus serviços e elas olhavam para mim com espanto, talvez achassem a minha cor bonita de mais, e cada bater de porta na minha cara era o não mais doloroso que ouvi até hoje. Mas água mole em pedra dura fui eu, até que uma alma tremendamente caridosa me abriu a porta pagando o meu trabalho a troco de quase nada. Já dizia mal da minha vida, já rogava pragas a esta terra de brancos, já arrependida da aventura, disposta a regressar à aldeia, não fosse o meu homem ter aguentado o barco a trabalhar como trolha. Mas Deus não dormiu, eu continuei a sonhar e o trabalho veio parar-me às mãos. Desta maneira a minha vida se tornou um sobe e desce, até a descida me pesa na pressa que levo de chegar a casa e dar de mamar ao petiz que adormecido por lá ficou, vou sempre presa a aflições de mãe, não vá o diabo fazer mal ao meu menino, porque os mais velhos, avessos à escola, vadiam por esses bairros fora, Deus queira que não me tragam um grande desgosto. Tanto eu queria vê-los na escola, saber que poderiam ter uma vida melhor do que a minha, tiraria da minha boca o pouco pão que me alimenta, subiria esta ladeira mais mil vezes por dia até cair de rastos com a alegria de saber que os meus filhos estavam a aprender a serem homens. Os tempos são outros, eu pouca escola tive, não por minha vontade, mas a escola da vida ensinou-me a ser mulher, agora os tempos são outros e tenho medo de que os rapazes se metam por maus caminhos. Se forem trabalhar no duro não é vergonha, apenas não queria vê-los na má vida ou malandros como estes homens desempregados encostados às paredes a gozar o rendimento mínimo, reclamando um emprego, que têm direito a um emprego, enquanto vão dizendo isto em alta voz, todos os dias os oiço encostados às paredes dos cafés, atirando-me os olhos para cima que mais parecem bocas com vontade de me comer. Trabalho não falta por aí, é só querer e procurar, veja-se o meu exemplo, veja-se o exemplo de tantos imigrantes cá, africanos, moldavos, ucranianos e outros mais, mal chegam põem-se a trabalhar. Não dá para enriquecer mas ao menos tapa-se a boca, bem pior seria morrer de fome no país onde vivíamos, e estes portugueses que andarilhos já foram do mundo, sujeitando-se a tudo em terras estrangeiras, encostam-se agora às paredes de mãos nos bolsos como segurando os seus pergaminhos com medo que eles caiam na calçada. Já avisto o cimo da ladeira, está quase, mais uns passos e é como chegar ao fim de uma corrida, o prémio é o trabalho em casa da patroa. Usar o 26 que sobe esta calçada várias vezes ao dia nem pensar, meu rico dinheirinho que tanto custas a ganhar, as pernas são um dom que Deus me deu para eu usar, eu e o meu marido que disso não se cansa, não sei onde ele vai buscar tanta vontade. Eu não queria falar dele agora mas a presença destes homens encostados às paredes lembram-me o estafermo do meu homem, tão ajuizado que era quando para cá viemos e agora, agora é como quem diz, há uns anitos, deu em beber, gastar o que ganho com tanta canseira e fazer apenas uns biscates quando bem lhe apetece. Para estar em cima de mim apetece-lhe sempre e já desisti de protestar, de o ameaçar com o divórcio porque o murro que me deu à queima-roupa quando em tal lhe falei foi um bom argumento de defesa. Coitada de mim, chego eu a casa estoirada, mais morta que viva, fazer o jantar, lavar a loiça, tratar dos meus meninos, e quando finalmente me atiro para cima da cama atira-se o meu homem para cima de mim como um cão esfomeado. Eu fecho os olhos para não ver nem sei o quê se tudo é escuridão no quarto, imagino-me a subir a ladeira e quando dou por mim são horas de levantar, o mesmo é dizer que são horas de voltar a subir a ladeira. Vim eu por esta ladeira acima mergulhada nestes pensamentos, que raio de coisa me havia de dar hoje, eu que nunca perdi tempo com estes assuntos, somente contando os preciosos euritos do dia-a-dia, oxalá isto não seja sinal de alguma desgraça que venha por aí. E agora que já cheguei cá ao alto, paro para limpar o suor da testa com a palma da mão, olho o dia bonito à minha volta e sigo a caminhada para além da ladeira.

(menção honrosa no concurso do sindicato CGTP 2008 - sujeito a tema; foi publicado)