O Escultor

Era uma vez um escultor. Vivia sozinho no alto dum monte. Fora da casa havia a serra feita de rochedos e urze. No recinto da casa, por dentro do muro de pedra, abundavam árvores frondosas que cobriam de sombras perpétuas o chão. Por debaixo das sombras havia um chão revestido a musgo e a verdete. Pedras e rochedos de todos os tamanhos erguiam-se do solo. De algumas pedras brotavam esculturas. Figurações que a mão humana esculpiu na pedra bruta: um livro aberto, um rosto, um anjo, uma mulher, um gato, uma ave. O escultor fecundava a pedra com as suas mãos e o chão à volta da casa ia-se enchendo de esculturas.
O escultor vivia sozinho, naquela casa, há dezenas de anos. Veio da cidade, onde tivera um atelier. Tinha sido famoso e rico. Presença obrigatória no Jet Set. Vida mundana.
Conhecido pela sua estatuária de linhas originais, de estética indefinida, ousou esculpir uma coisa inédita. Com a mente, com as mãos, com o cinzel e com a pedra informe criou um objecto que figurava a Morte. Este foi o título que lhe atribuiu.
A peça foi exposta numa galeria chique e visitada por gente chique. A escultura ganhava uma forma diferente para cada observador. A forma diferia em função da morte que cada um trazia dentro de si. Este polimorfismo não era do conhecimento público. Nem do próprio escultor. Cada par de olhos moldava na peça a forma da morte que vivia no interior de quem olhava. A reacção foi de repulsa e de revolta. Ninguém suportava ver o seu interior representado na pedra. Que já não era pedra.
O escultor, com esta obra, tornou-se uma pessoa odiada e perseguida. Esta foi a morte artística do mestre. Se acaso tivesse criado a Mentira, o sucesso teria sido estrondoso. Com a mentira, subiria ao pedestal da imortalidade. O seu nome ganharia o estatuto de mito.
Abandonou a cidade. A cidade onde não era permitida a existência de uma expressão artística autêntica; onde tudo tinha de ser fingido, artificial e oco.
Refugiou-se no campo, isolado de toda a vida social. Naquela casa velha, perdida no alto do monte, encontrou o paraíso. A natureza brindava-o com o material de que necessitava para realizar o que as suas mãos gostavam de criar. A arte era a sua vida.
No primeiro ano de presença na casa, nada quis conceber e materializar. Passava os dias a contemplar as pedras e nem tentava tocar-lhes, com receio de quebrar a sua decisão.
Um dia, recordando-se da Morte que acabara por o levar até àquela casa, iluminou-se-lhe a ideia de esculpir a representação da Vida. Algo que, à semelhança da Morte, se mostrasse como um objecto vivo. Uma pedra com alma. Uma pedra que fosse a Vida.
O escultor acordou para a arte. Deitou mãos à obra. E foi construindo inúmeras peças __ pequenos ensaios para a grande e última obra que desejava criar. Dos rochedos à volta da casa, acariciados pelas suas mãos, foi crescendo a colecção de esculturas.
O escultor foi envelhecendo, desgostoso por não conseguir encontrar a forma da Vida nos rochedos que ia esculpindo. Envelheceu. As mãos perderam a firmeza do cinzel. Mas o rochedo esperava por ele. E passava os dias sentado nele, com o cinzel nas mãos, numa pose pensativa.
A morte veio encontrá-lo, certo dia, nessa posição. Não deu por nada. Assim permaneceu, estático, sobre a pedra que seria a Vida. As sombras e a humidade do rochedo entranharam-se no seu corpo. Lentamente, confundiu-se com ele. Petrificou-se. Tornou-se a própria pedra.
O tempo passou. O musgo e o verdete cobriram-no completamente. Mas ficou bem visível, sobre o rochedo, a representação em pedra de um escultor com o cinzel na mão.
Quando foi descoberto, anos depois, ganhou fama em todo o mundo. Quem olhasse para aquela escultura, sentia que estava a olhar para a Vida.



Jornal da Mealhada, 455, 04.06.2003

O Sabonete

Nessa manhã, quando cheguei a casa depois de um dia de trabalho, ansioso por um banho reconfortante, encontrei um vazio à minha espera. Em cima da mesinha, à entrada, um bilhete manuscrito testemunhava o adeus definitivo da minha última companheira. Senti-me invadido por um sentimento sem definição, nem alegria nem tristeza, talvez indiferença, misturada com uma ponta de estranheza por esta relação amorosa ter terminado sem troca de palavras, sem qualquer justificação. Confesso que esta ruptura, pela forma como se consumou, encheu-me de interrogações durante alguns segundos. No fundo, concluí que esta estratégia de despedida, não sendo original, tinha a vantagem de evitar cenas mal representadas.
Despi-me, entrei na casa-de-banho cantarolando uma ária qualquer, da qual só conhecia a expressão la dulce vita. Reparei que havia vestígios de banho recente. Ar mais quente e um aroma macio de mulher. Pus-me debaixo do chuveiro, accionei um jacto de água e fiz o gesto de apanhar o sabonete. Achei a saboneteira vazia. A mulher nem sabonete me tinha deixado.
No dia seguinte, fui de propósito ao hipermercado (eu moro mesmo próximo) comprar uma caixa de sabonetes. É verdade: uma caixa de sabonetes! Homem prevenido não mais ficará sozinho sem sabonete.
Cheguei junto à estante... Azar! Quantidade de sabonetes não havia. Um só exemplar me esperava, e pensei que muito amor se estava lavando neste mundo. A marca era Lux, coisa de que eu precisava mais do que nunca.
Nesse instante, quando me preparava para pegar nele, uma outra mão o disputou, colhendo-me de surpresa. Era uma mão nívea, feminina de encantar. Mas o que eu procurava, a sério, era um sabonete. A mão podia vir depois...
Sabonete molhado escaparia aos dois pretendentes; assim, seco e embrulhado, só podia dar espuma de conversa.
«Desculpe», disse delicadamente, «eu peguei primeiro.»
«Desculpe», respondeu ela, «pegámos juntos. E uma senhora tem prioridade.»
«Só quando se apresenta pela direita.»
«Aqui não tem direita nem esquerda; isto não é um acidente de viação.»
«Eu vi primeiro o sabonete», retorqui, sem largar.
«E quem pensou primeiro?», teimou ela, sem largar.
«Ora», exclamei, «você não tem mão de quem usa Lux. A sua marca é, de certeza, Nívea
Conversa puxa sabonete, sabonete puxa conversa! Em cinco minutos, chegámos a um acordo: partilharmos o sabonete em minha casa.
Eu não vou contar como fiz este fim feliz. Isto que estou escrevendo não é um Manual do Sedutor.
Meus dias futuros passaram sorridentes e perfumados a feno. Eu desconhecia esta fragrância em sabonete. E também em corpo de mulher. Era como fazer amor em pinhal aberto, com os poros da natureza exalando a essência do feno.
Quando regressava do trabalho, e me encontrava com ela, nós logo corríamos para o banho, inundando-nos de feno. Eu estava a viver uma magia de amor nunca experimentada. Por fim, tinha encontrado o sabonete certo. Ele era de tamanho gigante e resistente à água. Felizmente...
A companhia dessa mulher fez-me perder a noção do tempo. Graças ao sabonete! Os verbos viver e amar estavam bem conjugados.
Um dia, depois de muitos dias iguais, cheguei a casa e encontrei um novo bilhete. Só mudara a caligrafia; o conteúdo da mensagem era o mesmo. Desta vez fiquei aborrecido. Não tanto pelo abandono, mais pela falta de inventiva.
O melhor, nesta situação, é tomar um banho de esquecimento. Fui lá. Sabonete não havia; gastara-se até ao fim.
Só me restava ir ao hipermercado.

Jornal da Mealhada, 374, 03.10.2001