Natal na aldeia

Todos os anos, pelo Natal, venho à aldeia. É uma das muitas visitas que faço sempre que a vida profissional me permite. Não é, no meu caso, uma fuga burguesa. Não é, também, uma atitude conotadamente intelectual, própria de gente letrada. Estar na aldeia é, para mim, beijar a face da vida. Longe da civilização, liberto de todas as artificialidades, eu venho ao encontro das raízes da minha identidade. É sentir sob os meus pés os verdes campos. É molhar as mãos nos límpidos riachos. É ver as pequenas casas de pedra fazendo as ruas estreitas. É escutar o bulício da vida no despertar de cada madrugada. É chegar à noite e sentir nas roupas do corpo o cheiro que define um dia campestre.
Estou, pois, na minha querida aldeia. Na velha casa familiar tudo permanece no seu lugar como se a vida ainda ali morasse. Mas é uma vida moribunda: as traves do telhado mais carcomidas; as paredes mais esfareladas; os móveis e os utensílios domésticos sem brilho. Uma película de pó quer delir a biografia da casa. Porém, escuta-se no silêncio o respirar da memória. Tenho de ressuscitar a casa. Tenho de tornar esta solidão habitável, reanimar os seus fantasmas adormecidos, para que o meu isolamento do mundo, neste Natal, seja a redenção da minha condição humana.
É uma tarde de sábado. Espreito pela janela e vejo farrapos de neve sobre os telhados. Lá fora, tudo espera por mim. É um apelo inadiável nesta véspera de Natal. Voltar a esta casa depois, acender a lareira e deixar-me ficar junto a ela, num conforto ancestral, esperando a revelação da noite sem tempo.
Chego à rua. Um manto branco cobre a aldeia. Aperto o sobretudo para me proteger da friagem. Avanço ao acaso, à procura de um passado nostálgico, de um tempo perdido. À minha volta a neve cai leve, levemente. Falta o fumo a sair de uma chaminé para ser um cenário ideal para ilustração de um postal natalício. Aqui, porém, a realidade é bem diferente. Tudo está abandonado e inerte. O que se observa são as ruínas de vidas ausentes.
Sou senhor absoluto da aldeia. Dono de um império cuja vida me passa pela memória.
Passo pela casa da mulher que sabia ler nos olhos de azeite, abertos na água de um prato, o mau-olhado deitado a uma pessoa. Passo pela escola onde aprendi a soletrar as primeiras letras. Passo pela taberna onde os homens molhavam a secura da vida. Passo pela fonte que deu tantos pingos de amor aos namorados que ali se sentavam. Passo pela ponte romana de onde uma menina se atirou para a água, porque o seu sonho era ser um nenúfar. Passo pelo cemitério onde estão os ossos da memória.
Contemplo os montes e os pinheiros distantes, recortados de neve, a anunciar a noite. Inspiro fundo o ar puro do campo. Com esta revisitação ao espaço do passado, é chegada a hora de voltar à velha casa e preparar a minha noite de solidão. Início o regresso. Sou silêncio e aragem. Sou vida e morte. Sou todo inteiro num instante de mim.
Súbito no ar, um ganido se ouve. Viro-me. Um cão, uns metros longe, com a fome agarrada a ele como carraça, olha-me com olhos de solidão. Chamo-o a mim, com a mão aberta, mas ele hesita, ainda desconfiado. Continuo a caminhada. Pressinto-o no meu alcance, a distância segura. Viro-me. Chamo-o novamente, desta vez com um assobio triste como a sua sorte. Aproxima-se um pouco mais, mas sempre alerta.
Chego à porta da casa, já com o cão à minha beira. Entra comigo. Percorre a casa, como se reconhecesse nela lugares íntimos. Por fim, na cozinha, sossega junto à lareira apagada. Vejo nos seus olhos o tremelicar das chamas. Talvez seja a saudade de um lar que nele vive. Parece dizer-me que é ali o sítio da nossa noite.
Sim! Será a nossa noite, o nosso espaço, o nosso tempo. Faremos companhia um ao outro. Dois seres estranhos, sem nome, unidos pelo destino. De mais não precisaremos para cumprir a nossa condição.

Jornal da Mealhada, 338, 20.12.2000