QUASE... NATAL


Dentro de casa, pressinto no exterior uma tarde anoitecida pelas nuvens escuras a abafar a cidade. Espreito pela janela e observo que a iluminação pálida dos candeeiros públicos, os reclamos de cores berrantes e o festival de luzes natalícias tornaram a tarde ainda mais anoitecida.
É hora de recolhimento, de encontro familiar, e a rua está silenciosa e abandonada nesta noite de quase Natal. Tal como o prédio onde habito. Situação bastante estranha para mim, por estar habituado a ver morar nele, dia após dia, o barulho da vizinhança.
Ouço agora, límpido aos meus ouvidos, como nunca me tinha acontecido, um mio ternamente apelativo do meu gato. Chego-me a ele, faço-lhe uma festa macia sobre o pêlo e, juntos, partilhamos o sofá, contentes por termos tido de presente uma noite de silêncio só para nós.
Ligo a televisão. O noticiário da tarde enche o ecrã. Às primeiras palavras ouvidas, reconheço que a informação dominante continua a ser a mesma, complementada com novos detalhes acerca do terrorismo internacional: World Trade Center... Talibans... Bin Laden...Anthrax...
Desligo a televisão, farto de ser invadido por tantas guerras. Quero fruir o milagre desta tarde feita de silêncio. Estendido de corpo inteiro no sofá, ao lado do meu gato, assim me deixo ficar numa leveza nunca sentida.
Mas o silêncio que paira sobre mim está cheio de barulhos. É um silêncio que deixa ressoar passos e correrias, vozes e gritos, ruídos e estrondos. O prédio está vazio. Continuo, porém, a ouvir nele a repetição sonora dos dias sempre iguais. Este silêncio tem dentro de si o virus do quotidiano que aqui reina.
O adolescente do primeiro andar. Viciado no tabaco e nos jogos de máquina, quando a sua arte de extorquir dinheiro aos pais não resulta, abre as goelas a uma música de vibração metálica que faz arrepiar todo o edifício e eriçar os pêlos ao meu gato.
A Guida do segundo andar. Mulher atraente, com biografia desconhecida pelos inquilinos, não disfarça as inúmeras visitas masculinas e femininas que lhe ajudam a encher o quarto com gritinhos artificiais.
O árbitro reformado do terceiro andar. Entrevado, passa os dias em frente ao televisor. Vê gravações de jogos de futebol e sopra o seu entusiasmo num apito como se corresse atrás da bola.
O casal do quarto andar. Sem filhos, sem amor, marido e mulher tecem as noites com barulhentas discussões surrealistas e absurdas, até se esgotarem em chorosas juras de amor e caladas promessas de vingança.
O músico do quinto andar. Faz soltar de uma flauta melodias sedutoras, código de entendimento para a mulher do corno do sexto andar, que logo se apressa na visita com justificações que o marido finge acreditar.
O viúvo bêbedo do sétimo andar. Quando chega mais derreado do que a noite, sai do elevador no piso errado e lança à primeira porta que encontra murros e impropérios contra si próprio.
A vida no meu prédio é assim e nada posso fazer. Já mudei de apartamento várias vezes, sempre à procura de um sítio onde o silêncio me deixasse ser. Pobre ilusão! Pobre de mim! Longe estou de conseguir comprar uma casita isolada, com um quintalito para alegrar o meu gato.
Há silêncio absoluto, hoje, e só pode ser um milagre de Natal!
Incrédulo, levanto-me. Volto à janela, afasto a cortina e vejo a rua que, lentamente, a partir do nada, começa a encher-se de transeuntes e automóveis. Não sei de onde surgiram assim de repente. Tão de repente como o barulho que começa a crescer no prédio. Sente-se a nascer no rés-do-chão, vem subindo os andares e incha contra o tecto do oitavo andar, e mais não sobe porque acima de mim já nada existe.
O meu gato olha-me. Faço-lhe uma carícia. Ambos sabemos que, por momentos, foi quase Natal.

 
Jornal da Mealhada, 383, 05.12.2001

AO DOMINGO COM...


O TEMPO ENTRE OS MEUS LIVROS

Domingo, 9 de Dezembro de 2012


Ao Domingo com... António Breda Carvalho

O único livro que havia em casa dos meus pais era uma tia muito velhota que nos fazia companhia todas as noites. Ela sentava-me no seu regaço, e eu, menino de cinco anos, ouvia as histórias maravilhosas que nunca me cansavam, apesar de serem sempre as mesmas.

Creio que vem do fundo desse tempo a génese da minha relação com a literatura. Mais tarde, príncipe do império do alfabeto, troquei a tia pelos livros. E com eles fui crescendo, visitante assíduo da Biblioteca Itinerante da Gulbenkian. E um dia descobri que da minha imaginação brotavam ideias que eu era capaz de transformar em histórias escritas.


Nos caminhos da vida me fui achando e perdendo. Eu era aquele que adorava ter um livro para ler e não o fazer, sem querer imitar Fernando Pessoa. Adorava imaginar histórias, escrevê-las na cabeça e não perder tempo a passá-las para o papel. Como um amante infiel, abandonava os livros e a escrita, e refugiava-me em outras aventuras. Depois acabava por regressar à literatura, e com ela tinha uma relação amorosa intensa. Era muito feliz… até me cansar.


Em tempo de reconciliação com a literatura, quando me vinha a vontade de lançar ao papel a semente da escrita, os prémios literários nasciam tão naturalmente como os frutos da árvore. Eu semeava um conto e nascia um prémio. Contudo, olhando de frente a vida, eu não via um pomar, mas um piano, cujas teclas eram passatempos que seduziam os meus dedos. E nelas me perdia: dó-ré-mi… E por elas fui perdendo a literatura, insensível aos apelos que me fazia em horas de introspeção. E querendo ser uma coisa, perdia-me em outras coisas.



Há dois anos, saturado de tantos caminhos poeirentos e sem destino, reencontrei-me com a literatura. Abracei-a e nunca mais a larguei. Hoje é a minha amante eterna. Para esta viragem de 180 graus, foi decisivo o Prémio Literário João Gaspar Simões, que alcancei em 2010 com o romance O Fotógrafo da Madeira. Cada conto e cada romance são atos de amor que me saciam. Eu já não consigo viver sem esta cumplicidade. Eu estou dependente da literatura como um fumador viciado na nicotina. Faltando-me a escrita e a leitura, a ressaca destrói-me. Escrever é um labor que exige paciência e perseverança, mas que me realiza completamente, porque quando escrevo aconteço. Construir mundos faz-me sentir um deus que não quer descansar ao sétimo dia. Finalmente, tornei-me fiel na minha relação com a literatura. Finalmente, posso afirmar: «Ai que prazer ter um livro para ler! Ai que prazer ter um romance para escrever!»

Eu não busco fama nem glória. Eu apenas quero escrever. Eu apenas quero ser eu. Alguém que escreve contos e romances como uma árvore dá frutos. E assim cumpro a minha condição humana.

TEXTO DE APRESENTAÇÃO DE "O FOTÓGRAFO DA MADEIRA"

No dia 22 de novembro, decorreu na Escola Básica nº 2 da Mealhada a sessão de apresentação do meu romance "O Fotógrafo da Madeira".
O texto aqui reproduzido é uma condensação do que foi lido expressivamente por João de Oliveira.


                                                         Da esquerda para a direita:
       apresentador, diretor do Agrupamento de Escolas da Mealhada, eu, professora bibliotecária
 

 
Mas quem é este autor? Já o conhecem.
Foi ele, António Breda Carvalho, que me deu a honra de criar estas vagas textuais de apresentação do seu romance, que não é o primeiro em sua lavra.
É costume, nas suas obras, dar a cara, a um certo nível revelar-se, de uma certa forma expor visões de mundos, ideias, até de conceção literária. Das obras que já li do autor, de pequenos a mais espraiados textos, ABC sempre mostrou propensão para as viagens no tempo, interrogações diversas ou de figuras individuais ou de formas colectivas, poisados em lugares sociais, políticos, regionais, intelectuais, religiosos, familiares e outros, enfim, de um Portugal cheio e particular.
Eis mais uma contenda, de pesquisa histórica, de investigação minuciosa, de pessoas, lugares, nomes, datas, transportes, casas, mares e naufrágios, barcos e terras, flores e cheiros, jornais e notícias, luzes e escuridão, cheias e mortes, sons e imagens da ilha e da não ilha.
A sua imaginação ficcional não teve parança, e complementou, desanuviando, a necessária apologia da verdade histórica, que por vezes condiciona e constrange os autores.
Na ausência de censura própria, na libertina entrega aos afazeres de escrita doméstica, na escrita de O Fotógrafo da Madeira, o autor é volante num vai e vem de vagas insulares entre factos e devaneios. Estamos na história e vivemos um romance, contado com afetos e reflexões por um narrador, onde personagens se apresentam com toda a dimensão humana, própria do século das transformações, o século XIX. Há sensualidade, há sabores, há sentidos, uns mais consentidos do que outros, tudo em evocação descritiva, senão a pormenor, quase à míngua.
“O Fotógrafo” apareceu, assim, na mesa-de-cabeceira, de forma clássica. Letra miúda, em maço de folhas, um volume e tanto, espesso. Já premiado. Caminhou nas primeiras lidas pelas vagas do Realismo. Em algum levantamento de mar o vapor da minha leitura era salpicado por um romantismo salgado. Por ali entrei de golfes. Naveguei submerso num faz de conta, num passado que se tornou presente, numa realidade ficcionada, onde mínimos abusos históricos serviram como sinais de recobro de atenção, - olha que isto é um romance…! - e aí me tornei atlântico, também habitante de uma ilha, durante vários dias.
É um romance de personagem, está claro. Da importância que tem o que pensa, e faz, ou do que leva a que pensem e façam, para além do nada que possa acontecer. Somos, todos nós, responsáveis pelo que se passa à nossa volta. Pelo que fazemos, pelo que não fazemos, e pelo que deixamos que se faça ou não.
Que história, ou histórias, se propõe contar?
De uma personagem, Afonso Elias Ayres Drumond, foco do narrador, das suas experiências objetivas e subjetivas, à volta de necessidades, carências, falhas e suas consequências; histórias de uma cidade, Funchal; de uma ilha, Madeira; de uma época, a metade do século XIX e suas circunstâncias.
Já estive na Madeira, em breve passagem de trabalho, mas aquela que me foi dada viver nesta ficção está plantada, claramente, e até por vezes explicada, à laia de um contabilista, em sapatas históricas, seguras, e levemente cinemáticas. A contextualização social permite fazer viajar o protagonista para o exterior e reconhecer aí as verdades necessárias e suficientes para um relacionamento do seu ser com os outros, ora no espaço, meio social, ora no tempo, época em que vive.
É aqui, na relação entre o indivíduo e a sociedade que surge a aflição dramática.
Alguém regressa à ilha da Madeira vinte anos depois, e querendo conhecê-la e transformá-la, vê-se a braços com o jogo das impotências. Será que o consegue?
Ao tentar, ele faz parte de atmosferas, emotivas umas, psicológicas, frias e mecânicas, outras, sociológicas. Torna-se eternamente responsável por tudo o que cativa a partir daí.
Há também um certo nível mítico abordado neste catálogo de imagens. Capaz de mudar o individuo, mas mais pérfido por se instalar nos inconscientes coletivos. Aqui damos conta das revelações mutáveis à volta do destino humano, ou melhor, da jornada do ser humano. O ser humano, tal como o protagonista, passa pelo mundo, em corredores que se abrem, possíveis, mas manipuladores. O lado oculto quando se revela tem tendência para se tornar mais desfavorável à condição humana, e serve sempre de ligação entre personagens, do indivíduo à sociedade e desta ao nível geral da existência humana. Assim é neste romance.
Um romance tradicional, de drama social. De relações humanas, físicas e de mentalidades.
Não é uma história passiva, é implicativa, é acima de tudo reflexiva ao ponto de ter laivos de actualidade.
Com algum tempo de exposição, como se de um trabalho fotográfico de revelação se tratasse, entramos no enredo.
Ao narrador-guia damos as mãos, e pelas insinuações das personagens, pelas referências soltas de lugares, de ambientes sépia desenhando a ilha, o Funchal, as gentes, as colinas sociais, as ruas íntimas, a ética e a moral, a falta de ambas, amores e usos, e uma fortaleza a guardar o mar revolto, chegamos à ilha e aos ilhéus.
Na obra está assim inscrito um convite a uma estadia, não tanto para fins terapêuticos mas para um turismo de habitação, socialização, e descobrimento…
Visitamos várias crises conflituantes, da britanização da ilha, da exploração de seus recursos, nomeadamente do vinho, do abuso da massa operária, da gente simples, da religiosidade e da política, de seus poderes sempre despudorados, da pobreza de um povo e da sua emigração, de confronto de mentalidades, de uma cidade que é campo e tarda em ser cidade, de um mar sem porto de abrigo para receber dignamente um mundo que sabe que uma ilha flutua enquanto vive na ordem e no progresso. Fora disso ela afunda-se em conflitos internos, próprios de cada personagem, sépias ilustradas daquele e deste tempo.
Por outro lado, para além da condição de visitante, também experimentamos a arte da fotografia, e somos vagamente retratistas. Também tiramos retratos, a pessoas, a lugares e a um tempo. Com um aspecto macio e rico, com linhas indefinidas, com detalhes apagados e enevoados, a ficarem pendurados na curiosidade do leitor, os calótipos da ilha lembravam os desenhos artísticos do protagonista, à espera de serem vislumbrados de perto.
E quanto à estrutura, perguntais vós?
Aqui falaremos de enredo. Sequência temporal de eventos e de interacções entre personagens.
A estrutura narrativa coloca-nos perante a ideia da jornada do herói.
A ligação do protagonista ao ambiente geral, da ilha, permite uma situação dramática dinâmica, em primeiros momentos vagarosa para depois, de forma mais eficaz, abrir-se a alternativas mais cadenciadas de revelação dos acontecimentos. Mas estamos na época do vapor, das carroças a cavalo, das corsas, na ilha, puxadas a bois. O andamento da narrativa é compatível com esta existência social e evolutiva do mundo.
O romance tem implícita uma construção estruturada de guia turístico, indelével, mas ativa, com um cicerone, o narrador, cheio de memória, de omnisciência, e com uma vontade enorme de contar o que sabe. Abre caminho à cumplicidade com o seu autor, para uma fluência narrativa prolixa, de palavras muitas, próprio de António Breda Carvalho, quem o conhece de outros textos que o compre, narrativa onde não lhe faltam vocábulos precisos, frases pujantes, indícios de acontecimentos, reflexões de salvados…
O Romance, onde a narrativa pauteia o perfil das personagens, o cenário dos lugares, o relógio do tempo, e a acção comedida dos momentos, está nas mãos do poder de quem conta. E ABC sabe contar.
E se a importância deve estar no como as coisas acontecem, para pensarmos nos porquês e nos para quês, é pelo narrador que, dominando a sapiência, acompanhamos o desenrolar dos acontecimentos e é pela sua bitola que somos esclarecidos. Ele é o autor do postal ilustrado dos entrechos «bordados a ouropel», palavras do autor.
A velocidade do contar, pois é um romance claramente narrativo, dá-nos o tempo para a leitura.
E se falássemos dos diálogos, como são?
A ilha é uma redoma, criadora de virtudes mas também viciadora de desvios. As personagens assumem pelos diálogos o que é ou deixa de ser. Os diálogos são esclarecedores, e ativos, não fortuitos e menos ainda fúteis. Precisam-se.
Algo maquiavélica, a ilha revela-se, aos atropelos, de um não olhes para o que eu digo e sim para o que eu faço, porque somos seres moldáveis, no raciocínio, e pelos aromas tentadores dos sentidos.
As personagens são o que fazem mais do que o que dizem. Torna-se portanto também, um romance de acção. Melhor, de acções. De causas e consequências, mais desta última do que da primeira, pois são por vezes as palavras mais causadoras de acções futuras do que as próprias ações.
E já agora, sobre a arte e a técnica, o que dizer?
Que princípios e regras estão aqui a defender a marca de água artística de ABC?
Provavelmente o que gosta, o que lhe toca, o que aprecia, aprova como leitor, trans-sua para o seu texto como criador. A qualidade literária bebe-se na leitura de uma obra de forma sôfrega, ou de outra maneira, aos goles, pausados, sem soluços.
Entramos nesta diegese, por vezes em frases longas de tirar a respiração. Outras vezes, fazemos parte dela no mais simples narrar dos acontecimentos. Momentos houve em que me deitei com as palavras nos diálogos e apartes textuais, a fecharem-me os olhos da reflexão. Não foi fácil, admito, e desconcertante foi, porque exigente de atenção. Há parágrafos e parágrafos…
A narrativa, pausada, desbasta lentamente o tempo, o espaço, e a própria acção da história. Num tempo de gestação, nove meses, acompanhamos o feto madeirense das intrigas até ao parto final.
O autor consegue, e mérito lhe seja outorgado, mostrar para além de dizer, que à força do exercício das pulsões culturais, políticas, religiosas e individuais, do século XIX, o Funchal, enfim, a ilha, determinam, o que são, apesar de poderem ou deverem ser outra coisa, mais que não seja na opinião liberal da personagem de Afonso Drumond.
A ilha é um estado dentro de outro estado, do estado anímico e pensador dos seus habitantes.
Temos uma leitura demorada, numa cadência rítmica de quem tem tempo para esperar, mas corrida, em fio de água, para recebermos a revelação, em nove meses, de um retrato de uma sociedade, à luz de olhos abertos, talvez demasiado abertos, pois colhem pólenes e areias que os ares atlânticos fazem esvoaçar. E tudo muda porque muda o ser humano.
Num esfregar de olhos querendo clarificar, deixamos de ver muita coisa que entretanto acontece.
Preciso é estar atento à leitura. Não se lê tudo de uma vez. Há águas mais profundas debaixo das palavras.
A linguagem assim o descreve. Bom gosto e bom senso na escolha dos termos, julgo eu. O que é sintomático está à flor da pele, o que é implícito veste-se de uma certa armadura, o que não tem que ser evidente, o estilo cobriu para mais tarde explodir.
Não parece ficar nada pendurado, senão o que lhe é próprio, uma qualquer cartola que não serve à narrativa senão de esplendor. Pura decoração.
Não se incomodam, nem a ficção nem a história, a cansar o leitor. Antes, porém, se encontram a ladear a narração, como se de uma moldura se tratasse, e puxam, paulatinamente, para dentro da ilha. Para dentro do entendimento, da alegação de significados e justificação de escolhas.
O enredo, de uma leveza profunda, porque toca suavemente, o viver de todos, toca, no entanto, vincadamente a cultura, os hábitos, os costumes, a religião, a luta ideológica de seu tempo, de liberais e absolutistas, enfim, a sociedade atlântica da ilha da Madeira da primeira metade do século XIX.
Entendem-se gestos, compreendem-se as palavras, vislumbram-se os jogos de bastidores ou de cama, retratos da cidade do Funchal que nos projectam para aquele século.
O romance é um registo histórico bem contado, uma colecção de imagens, calótipos, de uma realidade com nomes verdadeiros à mistura com os ficcionados que bem podiam ser verdadeiros, terem existido, dada a sua caracterização.
Não é uma obra intimista senão mais social, mas, provida sim, do que uma sociedad
e tem no seu íntimo. As personagens sabem-no e dizem-no, o protagonista e o narrador pensam nelas.
Este romance coloca o seu protagonista numa teia de reconhecimento, de uma nova vida com nova gente, de uma nova terra, vinte e poucos anos distanciada de memórias, de uma nova sociedade, distanciada da que Afonso Ayres tem de hábitos e costumes, mais a da sua reflexão e educação.
À medida que ele se vai revelando, revela-se também tudo à sua volta, num calótipo fotográfico, cujo processo primitivo faz obter gradualmente traços, e pontos, matizes sociopsicológicos de um tempo e de um espaço que é a Madeira desse tempo. Só a Madeira?
O quando, dá-se à saliência, pois é tempo, como um gancho que prende, o que vai acontecer e como.
Agarrados a uma certa viagem da reconstituição histórica, prendemos os dedos da leitura a ficções de uma ficção bem tramada. Mais uma vez, a deferência do autor à temática da fotografia, implica-se na construção do contar.
Muitos momentos de trechos que são lidos, parecem ser amostras das experiências de laboratório, à espera que os negativos revelem as imagens fotografadas, de que fazem parte, à mistura, as palavras, os períodos, parágrafos, linguísticas diversas, como líquidos e matérias necessários à revelação. Pois esse é o estilo. Se não foi intenção do autor, o acaso bateu-lhe à porta. E bem. Se pelo contrário, pensou em tentar fazê-lo, o acaso bateu-lhe à porta da intenção, e parece-me que muito bem. Não há autores sem tentativa e erro. E este, tentou, cobriu erros e ganhou estilo.
Parece-me, em final de abundância, de boa índole, saudar o autor pelos anos de tentativa, e pelo prémio de ter suplantado os seus erros.
Eis uma obra de muitas, mas outra, e se fosse inimigo da sua pessoa, rogava-lhe uma praga:
Quantos mais anos de vida lhe restarem, mais obras deverá ver-se obrigado a cumprir.
Para amigos, conhecidos de longa data, o desejo de bom sucesso, pois muitas são as vezes, que para tal existir, vastos são os amargos de boca, e sonos mal adormecidos.

João de Oliveira

Sobre O FOTÓGRAFO DA MADEIRA


LEITURAS DA FERNANDA

 

  
“O Fotógrafo da Madeira” de António Breda Carvalho é um livro que não pode passar despercebido no círculo de leitores portugueses. Porque na verdade um bom livro é aquele que nos espevita a curiosidade, nos ensina e ao mesmo tempo nos conquista a alma. E esta foi realmente uma leitura que me conquistou em absoluto.

Apesar do aviso do autor no inicio, a realidade mistura-se com a ficção, e chegamos ao final com a esperança de que as personagens de papel tenham sido inspiradas em personagens reais. O percurso de Afonso Elias Ayres Drummond e a postura com que é apresentado não pode ser apenas fruto da imaginação. Uma personagem tão extraordinária deverá ter sido certamente inspirada em dois ou três personagens reais. Pessoas com ideais mais altos que lutaram em prole de um povo e influenciaram o modo de pensar de uma população. Quero acreditar nisso!

António Breda Carvalho faz parecer que escrever é simples. Cativa-nos com a sua forma de escrever e com a maneira como envolve o leitor. Julgo que a grande riqueza deste livro é mesmo essa, a facilidade com que entramos na história e naquela época. O autor entrelaça a história da Madeira com o desenrolar de um romance, à partida condenado pela diferença social.

Adorei cada pedacinho deste romance ao mesmo tempo que relembrava o que aprendi na escola e com outras leituras sobre a História de Portugal.

Tenho apenas um ponto a apontar: a rapidez com que se deu o desfecho, que apesar de tudo o sabíamos como sendo a única solução.

Não obstante, foi uma leitura extremamente interessante, com a qual aprendi imenso e me fez pensar que a actual realidade política e social apenas reflete o passado.

Recomendo!

LEITURAS DA FERNANDA

Entrevista

Entrevista publicada pelo Jornal i em outubro

 

Tem algum método de escrita?
Tento cumprir o tempo destinado à escrita, almejando alcançar o número de páginas previstas para cada sessão de trabalho. Escrevo linearmente, construindo o romance como quem edifica uma casa: dos alicerces para o telhado.
 
 
Faz algum esboço das personagens e da trama?
Cada romance é escrito a partir de uma grelha previamente elaborada. Tal como a planta de uma casa: cada divisão é um capítulo, cada capítulo é um conteúdo. É por aqui que me oriento. Parto da ideia, num capítulo, mas não sei que forma e matéria terá. É caso para dizer que a história se autodetermina.
 
 
Faz muitas pausas?
Faço as pausas a que estou obrigado por imperativos profissionais e familiares. Tento evitar interregnos extensos para não quebrar o ritmo de escrita. Por este motivo, não há lazer nos fins-de-semana.
 
 
Espera pela inspiração?
Não. Vou ao encontro da inspiração durante o processo de escrita. A criatividade não nasce nem cai do céu; é gerada por estímulos intelectuais. É preciso procurá-la. Mas só a encontra quem a tem.
 
 
Escreve a computador ou à mão?
Computador. O Word permite-me ter boa perceção da estrutura do texto.
E neste momento, estando obcecado comas correções, o Word tem a vantagem de poder saltar de um lado para o outro com facilidade.
 
 
Usa um tipo de letra específico?
Times New Roman, tamanho 12.
 
 
Tem manias, como acabar sempre uma página, por exemplo?
Gosto de acabar uma sessão de trabalho com a página completa. Mas prefiro fechar o Word depois de ter completado uma sequência narrativa, mesmo que isso implique uma página incompleta.
 
 
Pensa logo no título ou surge depois?
Primeiro penso na ideia geral do romance, e logo depois no título.
 
 
A primeira frase mantém-se ou muda?
Não me lembro de alguma vez ter mudado a primeira frase. Esta é já o resultado de um trabalho de seleção entre um vasto leque de possibilidades. Por ser a primeira, tem de ser uma frase perfeita em todos os sentidos. Pelo menos tento. As restantes sofrem, muitas vezes, tratos de polé.
 
 
Evita ler livros quando escreve?
Não. Invento tempo para ler, nem que seja em sítios inusitados. Nem sequer receio sofrer influências de outros autores. Nunca me desvio do registo de escrita selecionado para um romance.
 
 
Ouve música enquanto escreve, ou prefere o silêncio?
Consigo trabalhar com ruído à minha volta, em espaços privados e públicos, desde que ninguém interaja comigo. Prefiro bandas-sonoras (de filmes, por exemplo).
 
 
Qual é a sensação que fica quando termina um livro?
Se tiver a consciência de que escrevi um romance com qualidade, fico com a sensação de que a vida é bela. Este estado de graça dura menos de um mês; depois a vida, sem romance, deixa de ter sentido, e a fome de escrita começa a apertar. Tornou-se um vício depois de ter ganho o Prémio Literário João Gaspar Simões.
 
 
Trabalha em mais de um livro ao mesmo tempo?
Não alinho neste tipo de promiscuidade literária.
 
 
Escreve em casa?
Prefiro o aconchego do lar. Mas sou bioadaptável.
 
 
O que não pode faltar na sua mesa de trabalho?
Dicionário de Português e internet.
 
 
Em que está a trabalhar neste momento?
Estou a cinco capítulos do fim do meu último romance. Como sou disciplinado, sei que estará pronto no dia 31 de Dezembro próximo. O título? É segredo. Mas posso adiantar que é diferente de “O Fotógrafo da Madeira”. Em tudo.
 
 
Já deitou fora muita coisa que tenha escrito?
Nunca me aconteceu. Guardo tudo: o bom e o medíocre. Não tenho trabalhos incompletos, vitimados pela crise da folha em branco. Levo as empreitadas até ao fim. Só desisto rendido à falta de qualidade.
 
 
Como dá o nome às suas personagens?
Procuro nomes que tenham a mesma força, ou fraqueza, das personagens
 
 

Sobre "O Fotógrafo da Madeira"


PRAÇA DO BOCAGE

Um livro… uma sugestão

09Sexta-feiraNov 2012

 
É nas noites frias e chuvosas que, deitado, viajo pelo universo… com os meus livros.
Hoje fui conhecer a capital da Madeira – terra linda – com suas belezas naturais… e “feridas” profundas que causam mais dores que alegrias aos que lá vivem. Eu conto.
A vida – eu já o sabia – tem sido difícil para todos, em particular para os mais pobres, para os que vivem do seu trabalho. Ontem como hoje o desemprego, a emigração e o empobrecimento são verdades que não carecem de demonstração, porque são reais e visíveis – com pequenas oscilações intermitentes – e que não descolam deste nosso mal viver.
E é da vida das gentes do Funchal, no já longínquo início do século XIX, que o autor – António Breda Carvalho – centra a narrativa do seu último livro, O fotógrafo da Madeira, que pela qualidade da escrita e pelo retrato original e fidedigno da época – escrita que reconstrói o ambiente social, político e económico de então – merece a melhor atenção.
A vida dos mais desfavorecidos – por oposição à boa vida dos “fartos” –, a justiça – a que existe não satisfaz, porque injusta, a que se anseia… tarda –, o bem e o mal, a liberdade religiosa, as relações de poder instituídas e os seus interesses, os pequenos enredos, mesquinhos, os jogos e as ambições desmedidas, a insaciável busca de protagonismo dos mentecaptos, o sofrimento e a vida rude e dura da maioria, em desconformidade com o prazer e a luxúria de alguns, são realidades descritas com uma “transparência lúcida” e de forma inteligente.
E mesmo em tempos de escuridão, a vida também é feita de relações de amizade, de amores e paixões, com ou sem sexo, de heróis e vilões, de aparências, de intrigas e de jogos políticos que minam os valores e os verdadeiros interesses que urge prosseguir.
Esta é uma terra de contrastes onde a cor e a dor marcam o viver de cada dia.
Um livro a ler… sem qualquer dúvida.

Sobre O FOTÓGRAFO DA MADEIRA

António Canteiro, autor dos romances premiados Ao Redor dos Muros e Largo da Capella, ambos editados pela Gradiva, leu e comentou o meu romance.


O FOTÓGRAFO DA MADEIRA - António Breda Carvalho

(Romance) Oficina do Livro, 2012, 286 págs.

 
Como leitor atento, às vezes, um pouco minucioso, tenho para mim que um bom livro é sempre aquele que interroga o leitor, que questiona a sua sabedoria e que acrescenta valor em ensinamentos/aprendizagem; digamos que um bom livro é aquele que nos fica na memória por muito tempo, porque o sentimos e reescrevemos enquanto viajámos nele e com ele. O “Fotografo da Madeira”, de António Breda Carvalho (ABC), tem esse condão, conseguido através de uma narrativa fluente, salpicada de frases com grande conteúdo literário, mesclado de uma sintaxe rica e adaptada ao contexto temporal e espacial em que decorre a narrativa.  
A prova do que se acaba de referir está na imagem do livro acabado de ler: com a ponta do lápis foi riscado, sublinhado e anotado, deixando agora sim, pouco espaço em branco, com frases manuscritas nas margens e nas páginas finais (local predileto para anotações). No final da leitura/estudo/aprendizagem, por caminhos de prazeroso deleite literário deste “Fotógrafo”, o escrevedor destas linhas dirigiu-se à estante cá de casa, e fez uma análise de circunstância comparativa a outros livros do género outrora lidos em idênticas circunstâncias. Então, foi com algum espanto, que se constatou, que alguns romances históricos como o “Equador” ou “A Filha do Capitão”, não apresentam tantos sublinhados e riscos a lápis de leitor, o que induz menor qualidade literária, comparativamente com “O Fotógrafo da Madeira”. Mas direi mais, é que a dada altura me senti como que a reler os clássicos de Eça e de Camilo, embrenhado em ambientes e linguagens com afinidade à época oitocentista, idêntica àquela que se desenrola esta ação na Madeira.
Portanto, o primeiro lugar no pódio do Prémio Literário João Gaspar Simões encaixa que nem uma luva, é merecido o galardão literário, tendo como teve concorrência de monta, não só em qualidade como em quantidade. O autor de “O Fotógrafo da Madeira” surpreendeu, também, porque conseguiu vestir com riqueza (exterior e interior) as personagens, porque é dono de um singular espírito criativo, e, por vezes, uma trama surpreendente (na pág. 40), aquando da entrevista de Laura para ingressar no consulado, em que deixa o leitor suspenso sobre se fica ou não com o emprego, culminando num diálogo simples de aceitação, um diálogo de mestre.
Existe também um grande equilíbrio na narrativa, embora, quase no final da pág. 268 e seguintes, talvez pudesse evitar, de novo, aquelas explicações, pois já existiram antes, ou se não existiam, subentendiam-se, ficando mais rica a obra literária com essa construção interna do leitor.
Em suma, ABC apresenta um excelente domínio do diálogo, uma vivacidade na circulação das personagens no espaço (como se tivesse vivido lá, à época), com uma caraterização madura do tempo e dos cheiros, num romance quase sem mácula.
 
                                                                        António Canteiro

NO BUÇACO


                                                                               Convento de Santa Cruz (Buçaco - séc. XIX)


Vim ao Buçaco reavivar as minhas impressões doutros tempos, quando, sozinho e devorado por teorias romanescas, eu percorria estas alamedas, fincando o meu bordão de forasteiro na terra mole das últimas chuvadas de novembro.
(…)
Naquele Natal chuviscoso de 85, eu tinha vindo ao Buçaco, para casa do Gayo (que assim ficou chamada, desde que o terníssimo romancista do “Mário” viveu lá), sequestrar do convívio efémero dos amigos as grandes tristezas do meu coração ferido por inconfessáveis e recônditas amarguras. Para um camponês da minha índole, aquela véspera de Natal, desterrada de banquete de família, depois da missa do galo, na minha aldeia do Alentejo, ainda mais reverdecia a melindrosa doença moral que me desmantelava e confrangia; e eu via a noite cair das árvores, toucar de crepe os cocurutos do Calvário e Santo Antão, com o pavor dum sonâmbulo que sente os gatos-pingados pregarem-lhe por cima da cabeça a última aduela da tumba, e quer gritar e não consegue, e querendo mexer um braço sente o braço paralisado.
Nenhum aficionado da mata, naquele mês desabrigado, ousaria vir ali divagar pelas tebaidas derruídas, nem o próprio Silvestre Bernardo de Lima, que é na hierarquia dos fanáticos do Buçaco o deão daquela catedral soberba de verdura.
(…)
Padre Maurício, octogenário calado, que é há trinta anos prior do conventinho, mandou tocar à missa do galo, apenas meia-noite foi dada no lúgubre sino da Cartuxa.
A floresta naquele tempo quase que não tinha polícia.
Meia dúzia de soldados guardavam as portas durante o dia.
Três ou quatro couteiros passavam a vida nas alamedas, deitados ao sol pelas clareiras, sem a intendência inteligente dum chefe, no outono, trincando as avelãs que caíam das árvores, no inverno fazendo magustos de castanhas dentro das tocas das grandes carvalheiras. E à meia-noite eu saí de casa sem lanterna, embrulhado num varino, e com o meu bordão de romeiro na mão direita, de cujo pulso pendia o saquitel do livro de Horas. No mirante tomado da portaria, defronte no chalé onde agora fica o hotel, a vista descortina toda a Bairrada, num soberbíssimo Ieque de montanhas e campinas, e as dunas brancas da Figueira e Costa Nova; e sobre o pano desdobrado desse leque, aguarelas em pálido, num fundo anil mui caprichoso, trinta ou quarenta povoações esmaltam a monotonia da paisagem, formada na emurchecida luz das tardes hibernais.
O Buçaco é para assim dizer o botão terminal para cujo eixo convergem as varetas todas dessa maravilhosa ventarola a aguarela, e o foco acústico de quantos rumores se esgarcem por qualquer ponto daquela enseada formosíssima de vinhedos e couvais.
Meia-noite dada, os apelos de quarenta campanários de paróquias rústicas, chegaram, chamando à missa, ao mirantezinho quadrado da portaria, e por todas as quebradas do vale, luzes errantes, vagas como pirilampos, começaram a mover-se, em diversíssimos sentidos, deixando os casais caminho dos presbitérios, sob a neve diáfana de dezembro, como uma emigração de almas em busca da celeste bem-aventurança.
Com o meu bordão eu apontava e conferia o repique festival daqueles sinos, desde os lugarejos bisonhos de Botão e do Paço, até às paredes brancas de Grada, Anadia, Vila Nova e Vacariça: e em espírito recompunha as cenas emotivas dessa hora sagrada no catálogo das alegrias de família, em cada um daqueles casalitos enterrados na fuligem da noite, por cujas janelas brilhava aos mendigos das estradas o olho benéfico do candeeiro de três bicos, aceso ao centro da mesa ornamentada para a ceia do Natal.

Fialho de Almeida, In “Pasquinadas”, Jornal dum Vagabundo, Porto, 3 ed., s/d.

Avô Tó


Avô Tó olha a tarde de calor presa no pátio da casa. Abre o portão, espreita a rua deserta, o sol transpira fogo volátil. Fecha rapidamente o portão de chapa metálica que morde lume nas mãos.
— Que tempo! — exclama.
Procura a sombra morna da parreira do pátio. Está um mocho à sua espera e um toldo estendido sob o enredo de um monte de feijões por debulhar.
Olha amiúde o velho relógio de bolso, perscruta o sol oxidado por cima dos telhados. As costas das mãos lambem-lhe o suor do rosto, com este calor só consegue pensar num copinho de vinho na fresquidão da adega. Separa os feijões debulhados, levanta-se, o trabalho realizado bem merece a bebida. Na adega saboreia o copo de vinho a fervilhar de frescura. Agora sente-se bem melhor.
Volta ao trabalho, faz um trejeito ao ser bafejado por uma onda de calor. Não passaram ainda quinze minutos, a garganta é um forno aceso. «A culpa é deste tempo», pensa. Levanta-se, resoluto, abre a porta da adega, apaga o fogo na garganta com outro copo de vinho.
Volta ao trabalho, o sol deixou a tarde arrefecer um pouco, mas Avô Tó não pensa assim. Ele é que está mais fresco graças ao vinho. Recomeça a tarefa, a debulha estala esquiva nos dedos. Passaram mais dez minutos, considera que o trabalho não avança, talvez seja culpa do tempo parado. Quanto mais pensa no calor mais se lhe acende a sede na boca. Pensa em beber outro copo de vinho fresco. Por instantes, hesita.
«Talvez seja melhor beber um púcaro de água do cântaro. Também está fresquinha.»
Zanga-se com a ideia. Beber água até lhe fica mal, ele que trata o vinho por tu, conhece-lhe a alma, toda a vida passada no campo a trabalhar, sempre o primeiro a começar e o último a acabar de beber. Um garrafão só para ele. Bons velhos tempos! Está velho, bem sabe, já não pode com um garrafão, mas uma garrafa é coisa fácil. Agora abençoa a ideia. Com uma garrafa ao pé de si, evita o constante levantar. Olha o monte de feijões, parece-lhe cada vez maior, enche-se de coragem, já está na adega.
Senta-se de novo no mocho, a garrafa do vinho metida num balde com água. Entre o crepitar da debulha, vai beberricando goles de vinho. Está feliz, vê-se a flor do contentamento a boiar à tona do vinho. O trabalho corre-lhe bem, era tudo uma questão de sede, a garrafa quase vazia é testemunha.
O sol desenferrujou-se na perseguição do poente, a folhagem da parreira estremece com o roçagar da brisa que se aproxima. Avô Tó não se apercebe. Continua com calor, a cada dose de refresco duplica-se a temperatura, não só do corpo mas do espírito também. Para ele, a tarde continua na pancada do sol.
— Tarde infernal — amaldiçoa os feijões que lhe fogem das mãos. — Parece que estão vivos!
Então, ao pronunciar as palavras, aquieta-se pensativo. O cheiro do calor que lhe foge da boca é deveras conhecido. «Estarei bêbado?» Julga que é efeito do sol, não protegera a cabeça com um chapéu.
— Bêbado!... — exclama, aborrecido. — Eu, o campeão das tabernas! — Num gesto exemplar, pega na garrafa e emborca o resto do vinho.
Pouco depois, as ideias flutuam-lhe na névoa quente da visão. Um mar de felicidade espraia-se em ondas sinfónicas. Apetece-lhe entoar a velha quadra brejeira que tantas vezes ouvira quando era garoto. Como era?

O velho mais a velha
Foram beber água à bica,
O velho caiu para trás
E a velha cortou-lhe a pica.

Acha graça e ri-se muito. A cor do vinho começa a aflorar no rosto. Continua a rir-se, bate com as palmas das mãos em cima dos joelhos. Apetece-lhe mais um copinho.
Só mais um para terminar.
Procura a garrafa, encontra-a vazia a seus pés. Levanta-se. Não chega a dar um passo. O portão da rua abre-se e vê entrar o filho que regressa do trabalho.
O filho para à entrada, ainda não fechou o portão, mira por instantes o pai e esboça um sorriso.
É por este sorriso que Avô Tó sabe que vai ser repreendido como uma criança.

Naquele domingo de uma tarde de setembro acalorada, Avô Tó chegou à taberna do Quim Magro mais cedo. A taberna ficava no largo, mesmo em frente à fonte de pedra.
Quim Magro, que estava a ler «A Bola» por detrás do balcão com tampo de mármore manchado de tons violáceos, espreitou sobre o jornal na direção do cliente que acabara de entrar.
— Já? Tão cedo? — perguntou, sem esconder a surpresa. Avô Tó era sempre dos últimos a chegar.
— Pois «atão»! — respondeu secamente. — Havia hora marcada para a consulta?
O taberneiro ficou sem resposta por momentos, ao mesmo tempo que os seus olhos claros escureciam. Era um homem quarentão de corpo atarracado com abundantes cabelos reboliços a saírem da camisa às riscas amarelas aberta no peito.
— Claro que não! — respondeu, vincando bem as palavras. — Claro que não!
Era notório que Avô Tó não estava bem-disposto. «O que vale é que tem bom vinho», pensou Quim Magro com o sorriso gratuito que atirou para o cliente.
Avô Tó sentou-se num banco de madeira comprido, bem junto à janela aberta para a fonte.
— Vai um copo? — arriscou o taberneiro.
Não era preciso perguntar, ele sabia pedir.
Quim Magro encolheu os ombros e retomou a leitura do jornal. Era visível que estava para implicar.
Avô Tó ficou pensativo, à janela, de cabeça virada para o largo mas de olhos virados para dentro de si próprio. Desde a tarde em que o filho decidira proibi-lo de beber vinho a rodos, sentiu-se, de repente, como pássaro de gaiola. Tudo quanto era vasilha de vinho na adega passou a estar fechado por uma torneira especial cujas chaves o seu filho guardava. «Vinho só às refeições. Por indicação do médico», dizia o filho com ameaças paternalistas. Recorda-se então que até à morte da sua Belmira passara o mesmo martírio com o matraquear das suas quezílias: «Não tens vergonha nenhuma. Bebes vinho como um camelo a beber água.» Agora, que Deus a tinha, ficara o filho, fraca imagem do pai, a substituir o demónio da sua mulher, desculpando-se com a ordem dos médicos. Felizmente ainda tinha uns tostões amealhados que davam para as estroinices de domingo. Nascera do vinho, havia de morrer com o vinho.
O tilintar das campainhas de duas bicicletas despertou-o destes pensamentos. Dois colegas da pândega, quase da mesma idade, chegaram frescos do seu banho semanal, galantes na calça vincada, camisa branca e chapéu novo na cabeça. O domingo era sagrado. As agruras e o cansaço da semana ficavam enterrados na taberna do Quim Magro.
Avô Tó levantou-se do banco, contente com a chegada dos companheiros, coçando o bigode hitleriano.
— Três tintos! — pediu com uma palmada no balcão de mármore.
Era o sol madrugador que só ele conhecia bem dentro do seu reino. Desde muito cedo aprendera a ler no vinho o imperativo da vida. Sem vinho, sem a fruição do sabor do vinho em copadas de camaradagem, a vida perdia todo e qualquer significado num espaço onde viver se reduzia à mísera condição de cumprir um calendário sempre igual pregado na parede.
Avô Tó não saberia exprimir-se com este vocabulário nem intelectualizar o seu comportamento. O vinho era a forma que ele conhecia para explicar a vida, o bordão da sua existência. Se lhe perguntarmos porque gosta tanto de vinho, ele responderá sem hesitação: «Cá na terra, a pinga é a nossa segunda mulher». Estará ele consciente da profundidade desta simples frase?
Vou deixar Avô Tó entretido na taberna com os amigos. Muitos outros chegarão para se irmanarem em cânticos dionisíacos, à volta de um baralho de cartas ou de ouvido atento ao relato de futebol transmitido pela rádio.
Quando Baco fremir de êxtase, Avô Tó, o rei das tabernas, contará as anedotas por ele inventadas. Uma será a invenção da sua verdade, do dia em que foi observado pelo médico. Tremia de nervosismo, era a primeira vez que ia ao consultório. O médico, interpretando mal o tremor, perguntou:
«O senhor bebe muito?»
«Nem por isso, senhor doutor», respondeu. «Entorno a maior parte.»
Quando chegar a casa, tremerá perante o sorriso lacónico e incisivo do filho.

Às oito horas de domingo, altura em que o sacristão se preparava para abrir a porta da igreja, um grunhido rouco de morte, fugido do pátio do Avô Tó, bem perto do adro da igreja, trespassou o silêncio alvo da manhã. Os netos, duas crianças de oito e doze anos, acordaram sobressaltados e assomaram à janela virada para o pátio, observando com serena curiosidade o espetáculo corroborante de que até os suínos têm cu na iminência da morte, consubstanciado nas fezes com que nos presenteiam nos últimos instantes de imunda vivência.
Na banca de madeira preparada para a consumação de tão popular ato de matança, o reco estrebucha na agonia da morte com convulsões respiratórias a verter golfadas de sangue vulcânico para um alguidar de barro, que será aproveitado para confecionar o saboroso sarrabulho. Esticado o pernil, as sedas do porco são chamuscadas com feno ardente e, enquanto jaz morto e arrefece, o animal vê-se, de um momento para outro, despido de todos os elementos em que a mãe natureza e o pai humano se basearam para o batizar. O corpo é esfregado com água abundante, os chispes ficam descalços de tão grosseiros sapatos e as orelhas acossadas até aos pontos mais recônditos. A operação termina quando o reco estiver ferido de limpeza. Depois é transportado para a adega, onde é içado numa corda de focinho para baixo. Nesta posição, o corpo oferece-se ao magarefe que, em empíricos golpes exatos, o esventra para proceder à completa dissecação do animal. Então é chegada a hora de se provar uns couratos e umas febras na brasa, e de beber uns copos de vinho para restabelecer as energias perdidas.
Neste quadro de alegria familiar, Manuel Zé, o filho de Avô Tó, anuncia a novidade da manhã:
— Agora, como quero que a festa seja rija, porque um porco não se engorda todos os dias, vou abrir uma pipa de vinho que eu guardei para este dia.
Vozes de aprovação entusiasmaram-se com ansiedade.
— Vamos a isso — ordenou o matador de serviço.
— Vai-se embora, avô? — falou um neto, apercebendo-se da retirada do velho. — Não bebe com a gente?
Avô Tó virou-se para o neto e respondeu bem alto:
— Não. Só bebo às refeições.
Nunca perdoara ao filho o facto de ter ordenado a Quim Magro, o taberneiro, que não atendesse o pai em mais de dois copos ao domingo.
O filho, pensando que o pai queria demonstrar ser um homem com personalidade, respondeu com humor:
— Ó pai, chá só de parreira!
E, contente com a resposta inteligente, abeirou-se da pipa que, tal como as outras vasilhas, estava fechada à chave. Rodou o dispositivo de segurança, mas o copo continuou vazio à espera do vinho que não caía.
— Então esse chá, ó Manel? — zombou o magarefe, abafado por uma risada geral.
— Deve estar avariada — balbuciou Manuel Zé, enquanto rodava a chave da torneira em tentativas inúteis.
De repente, os seus olhos abriram-se num fogacho luminoso. Contornou a fiada de pipas. Na traseira da pipa especial, a certeza da conjetura abriu-lhe ainda mais os olhos de espanto e incredulidade.
— Sacana do velho! — murmurou.
Na parte posterior da pipa um espicho de verga vedava o orifício por onde saíra todo o vinho.
 
 
In Vino Veritas, 1990