O AQUARIO


Quando entrei na sala do meu minúsculo apartamento, numa rua velha de Belém, numa tarde quente do último agosto, fiquei atónito com o que via à minha frente. Tenho de ser mais exato: fiquei surpreendido com o que não via dentro do aquário. Quando saí para o turno da tarde, onde cumpro o importante e eloquente papel de guia num dos pavilhões do Parque das Nações, o aquário estava intato, a funcionar maravilhosamente, tal como no dia em que uma gentil alma feminina teve a feliz ideia de mo oferecer como prenda de aniversário. Havia na sala um canto pouco expressivo que causava a quem o olhava um sentimento de incompletude, a rogar a caridade de uma mão sensível que o soubesse abrilhantar. E ela soube fazê-lo com bastante imaginação. Tratava-se, como se deduz, de alguém especial (outra coisa não seria de esperar no meu leque de conhecimentos). De facto, só uma pessoa distinta se lembraria de preencher aquele espaço com um objeto aparentemente trivial. O aquário, como disse, ali estava, luminoso, ainda ligado à corrente elétrica. Tinha a forma de um globo e quem o visse por fora descobria no vidro o mapa-múndi. Na água não havia peixe. Aliás, naquele exíguo habitat, como o meu apartamento, nunca lá nadou um peixinho qualquer. Afinal, o que não via eu dentro do globo e que muito me deixou espantado? Já lá irei, na altura certa, agora vou ao princípio desta história, que nem sequer seria história escrita, se acaso eu tivesse visto no aquário aquilo que lá deveria estar.
Presto serviço no Oceanário. Depois de um projeto universitário falhado no âmbito da Biologia Marinha, consegui o emprego de guia numa altura em que começava a desesperar por não ver qualquer horizonte no meu futuro. É uma profissão que me agrada. Garante-me a subsistência confortavelmente, alimenta-me o sonho de um dia poder acabar o curso e tem a grande vantagem de me proporcionar imensas oportunidades de comunicar diariamente com pessoas diferentes. É uma permanente renovação de rostos na cassete que debito de cor e salteado. Da miríade de visitantes, retenho na memória alguns rostos femininos de turistas estrangeiras. Eu cumpro estritamente a minha função, isento de qualquer intenção subliminar quando esclareço uma dúvida em língua estrangeira a meninas e senhoras que mergulham no lago dos meus olhos como sereias sem mar. Hoje conheço tão bem as espécies de que falo cientificamente como o peixe ambulante que se enrola na minha rede. Com tanta fartura de peixe, é natural que ainda continue solteiro e me sinta à vontade no meu reduzido apartamento. Como peixe dentro de água.
Naquela tarde, por acaso a última tarde antes das ansiadas férias, eu já tinha deixado de boca aberta um grupo de visitantes ingleses depois de ter exibido a minha erudição acerca da fauna bentónica. Uma atuação rotineira, uma reação fantástica do outro lado que confirmava a normalidade da visita. Quando um grupo reage às informações de forma apática, é caso para eu ficar preocupado com a minha capacidade comunicativa e com a qualidade dos episódios que vou inventando em torno das espécies para melhor ilustrar a ideia que quero transmitir.
Naquela tarde fui eu quem ficou de boca aberta. Não por guelrar fora de água, mas por ter descoberto a certa altura, bem à frente do magote, um rosto desconhecido na minha geografia sentimental. Um rosto invulgar que me atraía bastante a atenção, assim como o seu corpo de baixa estatura que destoava dos restantes elementos do grupo. A mulher quer-se pequenina como a sardinha, pensei sorrindo para dentro de mim, e o meu apartamento é a medida de todas as mulheres. Era no rosto que eu estava todo concentrado, valendo-me a cassete discursiva que pus a desbobinar mecanicamente por uns tempos. Recordo-me que até aí ela me passara despercebida, um zero naquele conjunto numérico até à chegada ao Oceano Antártico, uma zona fria onde reinam pinguins. Focas ali não há, mas imagino que passam por lá milhares de fofoqueiras.
Foi nesse espaço frio e branco de gelo que as coisas começaram a aquecer. Eu estava preso àquele rosto como um barco à sua âncora. Se exotismo é sinónimo de beleza, então era nessa marca que residia o seu encanto. Não tenho palavras certas para descrever esse retrato. Poderia desenhá-lo aqui. Ficaria magnífico a lápis, com sombras que realçariam todo o esplendor desse rosto feminino. Mas isto é idealismo, projeção de alguém que nada percebe de pintura. Mais pragmático seria a digitalização de uma fotografia sua, se eventualmente eu tivesse tido a sageza, num dos muitos passeios que demos à beira-rio, de a flagrar com a câmara do meu sofisticado telemóvel. Não sou pintor nem dela tenho retrato algum, e assim me resigno a pintá-la com palavras. A indumentária era simples e jovem, como jovem e elegante era a sua fisionomia. Sabrinas da cor das calças jeans e uma t-shirt branca. O impacto visual concentrava-se todo no rosto. Duas tranças de azeviche a tocar os ombros. Os olhos negros rasgando-se. As maçãs do rosto ligeiramente proeminentes. A tez morena. Tudo isto numa moldura indígena. Não era, por conseguinte, a personificação de Vénus, mas tinha uma novidade que me encantava, me excitava a curiosidade e seduzia. Era uma espécie de fauna estranha no meu oceanário sentimental. Eu desconhecia o que era amar uma esquimó.
Era a primeira vez na minha ainda curta mas entusiasmante carreira de guia que eu observava uma visitante esquimó. Era, também, a primeira vez que via com olhos vivos uma esquimó em carne e osso, bem diferente das imagens nada sensuais que o mundo da Internet oferecia. Rápido na imaginação, baseado em muita literatura avulsa sobre a cultura deste povo, inquiri-me maliciosamente se os esquimós ainda mantinham o costume ancestral de aquecer os hóspedes com a dádiva da esposa nas eternas noites frias. Afastei-me desta cogitação. O momento era sério e regressei ao meu profissionalismo. Estávamos no Antártico, e desta região polar fiz uma breve caraterização do clima e da vida animal, pretexto coerente para pular até ao Ártico, em palavras, propositadamente para introduzir a menção ao povo esquimó. Este segmento do discurso é dos tais que não fazem parte da cassete de guia. Serve como bom exemplo da minha polivalência discursiva e cultural. Quando ela me ouviu pronunciar a palavra esquimó esboçou um sorriso, e nessa altura os nossos olhos tocaram-se a primeira vez. E para surpreender tudo e todos, mais a ela do que a todos, esclareci no meu inglês turístico que o povo esquimó, consoante a região que habita, é conhecido por inuit ou yupik. Foi o momento em que lancei a ponte, convidando-a a confirmar ou corrigir as minhas palavras. Os visitantes envolveram-na com um grande olhar silencioso e interrogador. Pequenina e diferente, uma boneca impossível de se comercializar, mas peça única capaz de banalizar todas as deslumbrantes barbies.
«Yes, you are correct.»
A multidão sorriu, orgulhosa por ter à sua frente um guia muito culto.
«Thank you, miss. And you are…»
«Inuit. Inuit from Nunavut, Canada.»
«A nice inuit.»
Empolgado pela situação, numa sonata de pinguim, acionei a cassete, imprimindo ao discurso um registo científico e neutro. Queria deixar bem claro na mente dos ilustres visitantes ingleses que aquele aparte nada mais fora do que um golpe de mestria e competência. Queria, pelo contrário, que a nice inuit me visse, a partir desse instante, como o seu guia sentimental. E confesso o meu pecado: essa foi a minha estreia sedutoramente invasiva na história do meu reinado dentro do Oceanário.
Minutos depois, quando falava de icebergues, glaciares, focas, baleias, morsas, ursos e caribus, aproveitando uma breve pausa, a inuit interveio:
«You are Idliragijenget.»
Aquela voz de pinguim levantou-se como um iglu no meio do Ártico. Já me tinham chamado muitos nomes esquisitos, mas este conseguia arruinar todos os anteriores. Ela chamava-me o quê? Idlira…?
«What?»
«Idliragijenget»
E explicou que eu era o deus dos oceanos, segundo a mitologia inuit. E elogiou a qualidade do meu serviço, que dominava os assuntos de todos os oceanos.
Ó meu deus, em que píncaro ela me pôs! E respondi, agradecido e humilde, que eu era um simples cação, not a Idliragijenget (que raio de nome!), esclarecendo:
«My name is Cação. James Cação.»
«What is a cação?»
De apelido, sou uma espécie de tubarão. Soltou-se uma risada na assistência. E pensei que no oceano do amor eu era efetivamente um predador. Um tubarão-homem que caçava. Um grande cação.
O meu trabalho foi premiado no fim da visita com uma estrondosa salva de palmas. Os visitantes foram à sua vida turística e eu fui tratar de uns assuntos burocráticos, feliz e realizado culturalmente por um novo encontro ecuménico tendo como pano de fundo os oceanos, e sobretudo por ter sido promovido à categoria de Idliragijenget, o deus dos oceanos; feliz e realizado mas com uma pontinha de tristeza e desilusão por a nice inuit ter saído sem me dedicar algumas palavras em privado. E isto não se faz a um Idliragijenget.
Para minha boa surpresa, encontrei-a logo à saída. Acho que fingia arrumar uns folhetos na mochila. Cumprimentei-a e convidei-a para um café. O resto da tarde era uma menina de tranças pretas e a noite prometia ser cheia de luz como um verão ártico. Fomos. Estacionámos numa esplanada perto da Torre de Belém. Perguntei-lhe o nome.
«Nerrivik.»
Nerrivik é a mãe do oceano, explicou.
Maravilhosa coincidência! A mãe do oceano via-me como o deus dos oceanos. Que perfeita combinação! Agarrei a oportunidade, deslizei um breve carinho pelas tranças, afaguei levemente as suas mãos e perguntei-lhe se era um encontro de deuses irmanados pela água num cais de chegada e partida de nações.
«Silap Inua.»
«Silap Inua», murmurei como um búzio, os meus olhos de cação beijando o denso ónix dos seus olhos.
Na mitologia Inuit, Silap Inua é a respiração de vida, a entidade que controla tudo o que entra na vida das pessoas. Ou o destino.
E naquele instante, sem palavras, num silêncio audível, de mãos dadas, respirámos o mesmo sopro de vida e sentimos a Silap Inua fundir as nossas almas.
Nesse fim de tarde, e todos os dias seguintes, bafejado pela sorte de estar em período de férias, a minha vida foi um oceano pacífico. No meu apartamento instalou residência e iniciámos uma navegação de amor. Com ela, viajei por mares nunca dantes navegados, perdido no tempo, sem memória do futuro.
A seu pedido, tornei-me cicerone. Ela já visitara o Pavilhão da Realidade Virtual e o Pavilhão do Conhecimento, e já conhecia o Centro Comercial Vasco da Gama; e queria agora ver in loco os sítios recomendados pelas agências de turismo, e queria surpreender-se com a Lisboa desconhecida. Optei então por lhe revelar a cidade histórica e as faces quotidianas que surpreendem e encantam a cada canto. Completo o roteiro diurno e noturno, elegeu a zona fluvial. Pressenti que no seu íntimo persistia o apelo da água. Apreciou a Torre de Belém e o Mosteiro dos Jerónimos, mas foi o Padrão dos Descobrimentos que motivou uma interessante conversa que me permitiu perceber a substância que fazia a sua alma.
«A água que banha esta obra de arte sente o conflito que rói o interior da pedra. Há tanta mobilidade no seu peso estático», observou ela em certa ocasião, em francês, por ser a língua oficial no seu território natal.
Colheu-me de surpresa. Vivia num enleio de paixão, indiferente a reflexões intelectuais. Mas não podia ignorar este desafio porque percebi que o conhecimento do seu corpo era ainda a simples superfície da profundeza do oceano. E ela era a mãe do oceano.
«Que queres dizer com isso?»
«Repara no monumento. É um símbolo dos descobrimentos, de um povo que outrora uniu o mundo com a sua vocação universalista. Buscou na dispersão territorial a sua pátria existencial.»
Olhei-a boquiaberto. Seria ela, também, a deusa da sabedoria? Sentia-me envergonhado por uma pequenina e distante esquimó saber tanto de História de Portugal.
«Sim, temos um passado glorioso», retorqui enchendo o peito de orgulho. «Demos novos mundos ao mundo, como diria Camões.»
«Camões, o glorioso poeta que esculpiu na palavra o hino ao amor do império português e se achou perdido no império do amor.»
Subitamente, dei por mim a cantarolar o início d’Os Lusíadas. Não sabia o que dizer nesse momento poeticamente sublime.
Ela bebeu as minhas palavras. E foi então que confessou:
«Sabes, eu identifico-me com os teus antepassados navegadores.»
«Porquê?»
«Porque o sentido da minha vida é viajar de porto em porto.»
Questionei-a. Onde radicava o fundamento dessa filosofia de vida? Na inexistência de um país esquimó desenhado no mapa político? No extenso e deserto habitat geográfico tão branco que uma vida nele era um vazio existencial?
Não sei de onde tirei estas reflexões tão profundas, eu tão pouco habituado a questões intelectuais. A minha competência era a arte da sedução e a minha filosofia de vida o hedonismo. Era, portanto, uma experiência nova em mim. E eu começava a ver à minha frente uma mulher com alma, não a novidade de um corpo de esquimó, mas uma mulher que ameaçava transformar o meu entendimento de mulher.
O ónix dos olhos brilhou sobre as minhas interrogações. Nunca tinha questionado a sua existência nessa perspectiva.
«O que eu quero…», disse-me boiando o olhar na água do Tejo, «o que eu quero é alimentar-me de novas geografias e novas culturas. Ser una na pluralidade. O meu nomadismo é uma epopeia infinita onde inscrevo todos os impérios. Impérios feitos de oceanos vivos, não de memórias de pedra. É esta a Silap Inua que me rege.»
Esta personagem confirmava a revelação de um espírito que me fazia transcender o conhecimento da vida, que me fazia sentir um homem novo. Tive um lampejo de inteligência. Era a oportunidade de lhe falar de Fernando Pessoa, esse ser navegador de outros seres. Uma pessoa feita de muitas pessoas. Escutou-me com atenção. Já tinha ouvido falar deste poeta, mas pouco sabia da sua obra. E decidiu, ali mesmo, que no dia seguinte iria a uma livraria comprar as pessoas de Pessoa.
Acabámos a tarde num passeio de teleférico entre a ponte Vasco da Gama e o Parque da Nações.
No dia do meu aniversário, depois de uma saída breve, entrou no apartamento com um aquário. Era o aquário que descrevi no princípio desta narração. Um aquário que era o mapa-múndi, onde navegava a diminuta réplica de uma caravela. Tinha-o descoberto no Centro Comercial. Achara-o tão simbólico, tão adequado a prenda de aniversário. Era, na verdade, um aquário original e brilhante de cor e interpretação.
Ela explicou:
«A caravela, navegando por todo o globo, representa o passado heróico dos portugueses. Um país agindo sobre o mundo. Mas hoje o vosso mundo é fechado. Como este globo. Uma navegação interior, sempre ancorada no passado.»
E então eu evoquei uma frase dela:
«A água que banha esta obra de arte sente o conflito que rói o interior da pedra. Há tanta mobilidade no seu peso estático.»
Ela olhou-me, talvez surpresa. Eu inquiri:
«Afinal, qual é o conflito que rói o interior da pedra? Seja pedra, vidro, madeira, ou qualquer outro material que solidifique a memória.»
Com um beijo nos meus lábios, disse:
«Hoje Portugal é um cais que não parte, um barco ensimesmado num cais onde só atracam embarcações. Outrora as nações foram o seu parque, hoje é o parque das nações.»
Uma esquimó ensinava-me o que era ser português. Um país é uma pessoa que se olha ao espelho e não se reconhece a si própria, obnubilada pelo bafo da boca colado ao vidro. Sentia-me incomodado com a visão que ela tinha do meu país. Tentei refutar a sua tese, com sofismas em que eu próprio não acreditava. Ela sorria, condescendente. Deixou-me falar e no fim desafiou-me, surpreendendo:
«Aproxima-se o dia da minha partida, como sabes. Outro porto espera por mim. Levanta a âncora que te prende a este cais. Liberta-te, expande-te e universaliza-te. Sê navegador, sê Camões, sê Pessoa. Sê Idliragijenget, o deus dos oceanos. Dá a mão a Nerrivik e faz da tua vida o império dos descobrimentos, o verdadeiro império da vida. Vem comigo!»
Estremeci. Balbuciei umas reticências sem nexo. Era uma onda súbita e imprevisível sobre a minha vida, sobre o meu oceanário de horizontes bem definidos, sobre a minha simples felicidade terrena. Ia pensar no assunto, prometi-lhe com um simpático beijo à esquimó.
Todos os dias me sondava a decisão, todos os dias eu era a resposta adiada. A proposta dela tinha-me abalado os alicerces. Sentia-me um barco naufragado, um viajante perdido no oceano branco de gelo. Nerrivik, mãe dos oceanos, barco de mar e mar, de ir e ir. Eu, Idliragijenget, um falso deus dos oceanos, barco de cais, de ir perto e voltar.
Acabaram as férias e voltei ao trabalho. No fim de tarde desse primeiro dia no Oceanário, regressei a casa apressadamente. Tinha cumprido a minha missão completamente ausente do mundo real, sempre com o pensamento em Nerrivik. Queria muito, muito urgente, contar-lhe a minha decisão, dizer-lhe o nosso futuro, a nossa Silap Inua.
Quando cheguei ao apartamento encontrei um silêncio esmagador. Entrei na sala. O aquário foi a primeira coisa que me atraiu a atenção. Ela tinha levado consigo a caravela. Era esta a minha Silap Inua.

(Menção honrosa no Prémio de Conto Parque das Nações/Casino de Lisboa 2011)