A ver navios

Acordara com a sensação de um mar encapelado a querer libertar-se do peito.
Olhou sofregamente para a claridade embaciada que se estampava na vidraça da janela. Sabia de cor as cores e os ares derramados para lá da vidraça. Apesar desse conhecimento, algo o impelia, nas manhãs de maresia e nevoeiro, a precipitar-se para a janela. Aberta de par em par, enchia os olhos com a paisagem de um mar invisível a arfar os navios ancorados no cais. E era então, diluída a contemplação na raiz da alma, que sentia essa opressão marítima a esvair-se lentamente, tão lentamente que deixava no rasto uma espuma de alívio — e de tédio pelo que momentos antes fora ansiedade.
Mas desta vez o apelo era mais intenso; nunca o sentira assim nos seus dias. E estranhava-o agora, na fase derradeira da vida.
Ergueu-se com dificuldade. Vagaroso, caminhou até à janela, amparado entre os varões da cama e a cómoda antiga. Abriu a janela. Recebeu no rosto um sopro de luz suado de mar. Inspirou até às cavernas da alma, deixando-se dilatar de satisfação. Assim esteve talvez um minuto, o tempo suficiente para se aperceber de súbitas diferenças no ar que respirava. Hesitante na definição, inspirou duas, três vezes seguidas, acreditando na perda de faculdades olfativas. Nova inspiração. Este nevoeiro, esta maresia, qualquer coisa de diferente sentia neles. Qualquer sabor misturado nesse sal, nessa brancura, qualquer coisa feita de água, sal e... terra. Sim, era isso. A aragem matinal que lhe enchia os poros da alma cheirava a terra empapada em sal.
Que estranha coisa nesta madrugada, que estranho apelo indizível, cada vez mais forte, como se escutasse a voz do mar a chamar por ele.
Fechou a janela. Vestiu as roupas coçadas e pegou na bengala de oliveira. Trémulo de emoção, saiu de casa, em direção ao cais.
Dentro de si levava um navio.

Chorara muitas vezes o desejo de ver o mar e de falar com ele.
A mãe iludia a vontade do filho.
«Ver o quê? Mar? Água em cima de água e mais água? Não tenhas pressa, filho, que o mar não seca tão depressa. Lá virá o tempo em que deites água pelos olhos.»
Afastava-se triste, com lágrimas silenciosas.
No quarto, trepava a uma cadeira junto à janela. Com a imaginação dos seis anitos, esforçava-se por ver o que a vista não alcançava. E assim ficava entretido, a sentir a brisa fazendo ondas no cabelo.
Mas o miúdo era mesmo de ideias fixas. De tempos a tempos, principalmente quando o mar exalava vapores de sal, lá vinha ele abeirar-se da mãe.
«Quero ver o mar. Quero ouvir a sua voz.» — e desatava numa choradeira.
Entristecia a mãe tal pedido. Uma criança que não pede brinquedos nem guloseimas! Apenas o mar! Ali tão perto o mar, sentia-lhe o respirar, e não haver maneira de lhe fazer a vontade. Ela não podia, está claro! Às cinco da manhã, no cais a descarregar peixe; depois, a manhã na praça a fazer render o peixe: «Olha a linda faneca! Carapau fresquinho! É a 200$00, minha senhora, e não ganho para a despesa.»
O irmão, coitado, metido também no negócio do peixe, só quando calhava é que vinha a terra matar saudades da casa. Homem feito, graças a Deus, mas solteiro, que mulher sozinha em terra nessa cantiga não ia ele. Mas o problema era este filho, nascido num tempo em que ela não acreditava já na sua força de desovar. E aqui estava ele agora, mortinho por ver o mar! A querer falar com o mar, ainda por cima! Ná, aqui havia coisa do diabo, de certeza! Seria o seu Toino, que Deus tem, a chamá-lo, a querer levar o seu menino para junto de si?
Presa a este pensamento, inventava pretextos ao filho nas tardes passadas em casa, apegada às lides domésticas.
O filho desistia de protestar. Aninhava-se a um canto. Com um coto de lápis velho, desenhava no soalho o mar da sua imaginação.

Percorrera devagar parte da zona ribeirinha da cidade.
Apesar da lentidão do andamento, nada e ninguém reconhecia na sua passagem anunciada pelo toque cadenciado da bengala de encontro à calçada, na madrugada feita ainda de silêncio.
A maresia, mais densa, entrava-se-lhe húmida na pele. E, por entre as brechas do nevoeiro, os transeuntes lançavam olhares de curiosidade a esse rosto hirto parecido com a quilha de um barco a rasgar mares.

Certo dia, apareceu em casa o irmão. Regressava da Terra Nova, com direito a oito dias de férias.
Tinha-lhe prometido um presente, dissera a mãe, que bem ouvira na carta lida por um vizinho.
Manel Zé ia abrindo a mala. O pequenito admirava o tronco nu do irmão, temperado pelo mar das longínquas terras frias. E imaginava-se dentro de um navio, indo por esse mar sem fim. Teria todo o mar que quisesse.
«Toma, um búzio do tamanho de uma gaivota.» — ofereceu-lhe o irmão.
«Um búzio?!...» — pegou no objeto e examinou-o com atenção. — «O que é um búzio?»
Manel Zé esboçou um sorriso de ternura.
«É o nome de uns bichinhos chamados moluscos que vivem no mar e que têm a forma desta concha que estás a ver.»
«E para que serve isto sem o mar?» — perguntou, desconsolado.
O irmão estremeceu, apanhado pela pergunta inesperada.
«Sei lá! Talvez para enfeitares o teu quarto. E quando olhares para ele, é como se eu estivesse ao pé de ti.»
Mas o miúdo não manifestou alegria.
«O que eu quero é o mar! Quero vê-lo e falar com ele. Ouvir a sua voz.» — desabafou. — «Conta-me, como é a sua voz? Já falaste com ele, não já?»
O irmão fez-lhe uma carícia no rosto curioso. Aproximou-lhe o búzio do ouvido e disse:
«Escuta. Ouves? Esta é a voz do mar. Agora fala baixinho, está feliz! Às vezes, quando se enerva, até o búzio treme em cima da mesa.»
Então o pequeno exclamou:
«É lindo!...» — e após breve pausa: «Mas ver o mar deve ser mais lindo, não é?»
No dia seguinte foram ver o mar.
Dessa tarde, ficou a imagem do mar. Tanto azul bordado a serpentinas de espuma. Gaivotas beijando a pele brilhante do mar. A euforia de criança correndo ao longo da beira-mar, chapinando de calças arregaçadas. E, das ondas que se arqueavam no ar, um murmúrio doce a sair do fundo do mar.

A opressão no peito era agora um glaciar.
Parado e ofegante, escutava os gritos das sereias penetrando na muralha de nevoeiro.
Resoluto, retomava a marcha, cada vez mais mergulhado no seu mar interior.

Soubera-o mais tarde, no dia do funeral de sua mãe.
Do cemitério, os poucos acompanhantes, sobretudo velhos da mesma infância que a mãe, saíam com passos lentos e cansados, deixando um rasto de xailes pretos e de silêncio.
Ficara com o irmão junto à campa, como quem procura evitar uma despedida. Quando conseguiu finalmente abandonar o local, apercebeu-se pela primeira vez que não soltara uma só lágrima.
Cá fora, atravessou a estrada e refugiou-se na praia.
Sentado na areia, contemplava o mar. Então, de repente, compreendeu que não havia qualquer mar dentro de si que pudesse chorar a morte da mãe. De todas as vezes que pensava neste nome, a imagem do mar transformava-se numa mortalha sem rosto e sem voz.
O irmão veio até à praia. Sentou-se a seu lado.
«Há uma coisa que tens de saber» — disse, também com os seus olhos pousados no mar.
Que já sabia, respondeu, que já sabia ter idade suficiente para ganhar a vida com as suas próprias mãos.
«É verdade, esse é outro assunto de que falaremos mais tarde. Temos tempo. Agora ouve-me, por favor!»
E ficou a saber, naquele fim-de-tarde, que a mãe, atacada repentinamente por dores, o parira no cais, nesse braço de pedra entre a terra e o mar, precisamente numa madrugada de nevoeiro.
Essa mãe que nunca lhe mostrara o mar!

Como espelho que se desembacia, vê agora recortar-se na distância curta os mastros dos navios. A maresia alastra-se mais forte. O nevoeiro são agulhas de gelo na face e nos olhos. O mar expande lamúrias inquietas. Sente a fraqueza a invadi-lo. Para um pouco, a arfar de cansaço. O mar solta nova lamúria. E, agarrado a esta voz que o chama, atira-se, a rebentar de sofreguidão, em direção ao cais que se adivinha bem próximo.

Foi com ansiedade que chegara ao cais juntamente com o irmão. Passara os últimos dias da semana a imaginar febrilmente a hora da partida. Quando o Manel Zé o convidara a embarcar e a fazer vida nessas terras distantes, quase saltara de alegria por antever que a oportunidade da sua vida estava nessa hora: mergulhar de corpo e alma nesse mar sem fim e conviver com ele como se fossem dois irmãos.
De mala ao ombro, avançava pelo cais ao lado de seu irmão. Com frequência, inspirava o ar marítimo — e sentia-se insuflado de alegria. O navio que os esperava ia crescendo à medida que se aproximavam.
Estava mais perto do navio. Podia compreendê-lo no seu verdadeiro tamanho. Por instinto, olhou a imensidão de mar que se perdia na lonjura da vista; e, neste gesto, sentiu-se uma onda a desfazer-se em estrondo contra a areia lisa. Uma sensação de enjoo apoderou-se dele. As pernas começaram a recusar o peso da mala.
«Coragem, irmão, que o mundo não acaba aqui! Faz-te forte, se não queres ser gozado por todos no barco. Vamos lá, nem pareces um Vilarinho!» — incitou Manel Zé, amparando-o na caminhada.
Pois sim! As pernas não queriam obedecer. O peito ameaçava estalar. E só de olhar o mar, uma vertigem percorria-lhe o corpo todo.
«Irmão, se dou mais um passo, eu morro! Não sei o que se passa comigo. Só sei que não tenho forças para mais. Vai tu, não percas tempo.» — e sentou-se, desanimado.
Deixou-se ficar nessa posição, como náufrago expulso pelo mar, até ver o navio lançar-se ao mar alto.
Com ele seguia o seu sonho impossível.
Em terra ficava um torpor tão profundo e mole como um mar morto.

E, finalmente, ao contornar a última esquina, a súbita aparição do cais.
À sua frente os mastros nus das embarcações empertigavam-se no ar. Da poalha branca e húmida que se derramava no ar, ele sentia invadir-lhe as narinas o intenso odor de qualquer coisa feita de água, sal e... terra. A aragem matinal que lhe enchia os poros da alma cheirava a terra empapada em sal, e qualquer coisa de estranho o fazia lançar-se na perseguição desse feitiço feito de fragrâncias.

Trazia a Florbela debaixo de olho há já muito tempo. Boa rapariga, sem dúvida, em tudo o que é preciso na vida. Uns olhares marotos lhe lançava quando percorria o cais e a praça, e a moça parecia corresponder com uns sorrisos cheios de esperança.
Até que um dia, numa tarde de inverno com sol acolhedor, encheu-se de coragem e procurou-a no largo da feira, em frente à praia. Das muitas raparigas ali presentes não a descobrira; e, como quem não quer a coisa, afastou-se com destino à Rua da Traineira.
Lá a encontrou, sentada na soleira da porta, entretida a coser meias de lã do pai.
«Aqui sozinha, a trabalhar num domingo à tarde, enquanto as tuas colegas divertem-se no largo?» — disse, cumprimentando-a.
«Ora... cada um sabe da sua vida e das suas vontades.» — respondeu, risonha, mas sem levantar os olhos.
«Tens razão. Por muito que se conheça a vida das pessoas nunca se sabe as suas vontades.» — observou com uma ponta de malícia. Obtendo silêncio como resposta, continuou: «Assim estivesse a tua vontade de acordo com a minha e seríamos um casal feliz.»
Florbela estremeceu. Ergueu o rosto e disse, bem para dentro dos olhos que a fitavam com expetativa:
«Homem que queira estar dentro de mim terá de ser capaz de entrar pelo mar dentro também.»
Sentiu à sua volta um vazio profundo. Teve coragem ainda para olhar o rosto de Florbela. E, como nele visse a carcaça apodrecida de um navio, afastou-se enjoado sem dizer um adeus.

Entrou no cais. A neblina oprimia-lhe o peito. Mas continuava a arrastar-se ao longo do cais, saudando com os olhos rasos de lágrimas os navios que sempre estiveram ancorados na sua memória.
Terra Nova; Boa Viagem; Neptuno; Atlântico; Gaivota.
Tardes de sol e de chuva a passear no cais, a fazer viagens imaginárias em cada navio que levantava âncora. E só ele, enfraquecido por essa eterna vertigem dolorosa, nunca conseguira levantar um pé da terra firme.
Está agora no meio do cais.
Não consegue avançar mais, enjoado pelo denso sabor de terra e mar.
Num grito de agonia, solta a opressão interior. De imediato, estende-se no chão, de rosto aberto à claridade matinal.
Um fio de espuma começou a escorrer lentamente pelo canto da boca.
Perto de si, uma gaivota levantou voo.
1º lugar, ex-aequo, no Prémio de Conto Joaquim Namorado/91, da Câmara M. da Figueira da Foz