O casamento

Graça chegou a casa, quase ao fim da tarde, juntamente com o marido, e de imediato se fechou no quarto. Ele que fizesse o jantar porque ela nada mais queria do que um xanax para dormir até de manhã. Vinha destroçada. No tribunal, onde entrara confiante, saboreando já um futuro risonho e livre que se desenhava na sua imaginação, a audiência com o juiz teve um desfecho inesperado para ela.
«Há acordo pré-nupcial?», inquiriu o magistrado a certa altura da novela sentimental. Não esperava esta pergunta, pois esta possibilidade nunca lhe ocorrera, nem antes do casamento nem durante o processo de divórcio. Colhida de surpresa, estremeceu e balbuciou um não. Não havia nada acordado por escrito. Assinaturas, só com palavras faladas.
E com este NÃO chegara a casa desiludida, eufemismo de arruinada e desgraçada, também ironia do seu nome e destino. É certo que a iniciativa partira de si. Ele não se queixava da esposa e muito espantado ficou quando ela lhe declarou que pretendia o divórcio. Na verdade, não vislumbrava qualquer motivo que justificasse a sua pretensão. Nunca lhe faltara com nada, ela tivera tudo com abundância, das coisas materiais às espirituais, passando pelas físicas; enfim, uma vida de rainha que muitas invejavam. Para mais, nunca lhe descobrira um sinal de aborrecimento, de contrariedade ou de fingimento. Graça, no correr do pensamento, considerava que nem tudo estava perdido, ainda havia uma solução para não cair nas ruas da amargura e voltar ao princípio, ou seja, à vida de miséria que levava antes de conhecer o marido. Continuar casada era, pois, a sua única salvação temporária, até melhores dias virem ao seu encontro, em que finalmente estaria liberta do casamento com o empecilho do homem que tinha de aturar e, pior ainda, com quem tinha de se deitar.
Tomou, portanto, um xanax, que rima com relax, e estendeu-se na cama à espera da escuridão total. E nesse torpor que antecede o adormecimento foi obrigada a rever o filme da sua vida, contra sua vontade, já o sabia de cor e salteado, mas ele estava ali, sem ela o pedir, projetado na sua mente, e não havia comando que o desligasse.
Como podia esquecer-se daquela bela tarde de verão na praia fluvial de Vale de Canas? E a palavra bela aqui não tem qualquer conotação sentimental, é apenas uma referência atmosférica, porque era de facto uma tarde esplendorosa de sol e rio à sua espera para ser gozada na horizontalidade letárgica da toalha. Pelo menos era assim que estava previsto quando saiu de casa e para lá se dirigiu sozinha, após a sua melhor amiga e companheira de fins de semana, a divertida Nice, lhe ter comunicado a sua indisponibilidade para esse dia.
Estendida na areia, a poucos metros da água do Mondego, que naquele sítio fazia um lago de águas calmas para logo se precipitar, a uma vintena de metros, por uma vertiginosa queda de água, saboreava de olhos fechados o calor que o seu corpo, coberto de luzidio protector solar, recebia do carinhoso sol. Deu-se o caso, porém, de a certa altura sentir a presença de alguém que a seu lado, no recato da distância decente, estacionava com armas e bagagens. Impelida pela curiosidade, virou ligeiramente a cabeça para o lado e disfarçou a semi-abertura de olhos, o suficiente para ver e não ser vista, enganando-se a si própria, porque há situações, e esta é uma delas, em que o corpo denuncia o pensamento muito antes dos olhos. O que viu deixou-a indiferente e voltou ao seu descanso absoluto, expondo aos banhistas curiosos e cheios de imaginação os soberbos atributos do seu corpo de 25 anos. O homem sentou-se na toalha, olhou uma vez para ela descaradamente, duas pelo canto do olho, esboçou um ténue sorriso labial, e decidiu-se pela leitura do jornal.
Essa tarde não teria história, excetuando a elegância sedutora do corpo de Graça a luzir no areal e nos olhos dos mirones, se acaso não tivesse ocorrido um pequeno mas lastimável incidente. Um petiz de oito anitos, afastado da atenção dos pais e da segurança das águas do rio, preso à boia, ia arrastado pela corrente em direção à queda de água, quando os seus gritos de aflição ecoaram nas escarpas da serra. Os banhistas correram à margem do rio, mas estáticos ali ficaram, sem coragem de meter o pé na água e ir em auxílio da criança. Qual deus ex-machina, o banhista que deixara Graça indiferente levantou-se da toalha, correu para a água, iniciou uma enérgica natação de socorro e, em poucas braçadas, a favor da corrente, alcançou o fedelho quase sobre a linha da queda de água. Aquilo que poderia ter sido uma tragédia, e mais um caso para os jornais explorarem a insegurança das praias fluviais, à falta de novidades políticas ou futebolísticas, foi um final feliz muito aplaudido quando o herói subiu ao areal com o menino nos braços. Por ter sido tão aplaudido, ninguém viu e ouviu uma senhora, com ar de beata, benzer-se e afirmar que tinha sido um milagre de Santo António. Se de Lisboa ou de Pádua, ninguém a questionou.
Esta ocorrência proporcionou aos vizinhos de praia, Graça e Justino Fortes, o salvador, um resto de tarde de amena conversação, a partir da qual nasceu uma amizade e, mais tarde, como se vai ver, muito mais do que isso. De facto, os encontros entre estes dois personagens começaram a acontecer com alguma regularidade, sempre em nome da verdadeira e sã amizade. A vida de Graça e de Justino foi seguindo o seu rumo, tal como as águas do Mondego, e lá chegou o dia em que se acharam namorados após terem medido e pesado convenientemente as palavras. Assistiu-se, então, a um namoro feito de banalidades: cinema, passeios em jardins, jantares em locais públicos, uns beijos fugidios e… stop!... Por inverosímil que pareça, não havia outras ousadias nem atrevimentos, ambos respeitando-se um ao outro, ambos sem coragem de transgredir as fronteiras delineadas por eles próprios.
Assim decorreu o namorico durante largos meses, sempre num ambiente de enlevo tépido e bafiento, até ao dia do casamento. Ele sabia o que esperava dela: uma jovem bonita e atraente, sem estudos e desempregada, por culpa da crise, naturalmente, e que exigia o seu espaço privado e liberdade de movimentos. «Fêmea de jaula, não!», frisara-lhe ela uma vez com convicção. Ele aceitara a condição, resignado, pensando que, apesar de tudo, ela era uma rara e preciosa companhia para a sua vida, que ele caprichava em ter como a uma boneca de ornamentação. Por sua vez, ela sabia o que esperava dele: um homem não muito atraente e careca, mas um verdadeiro companheiro, amigo, confidente e, sobretudo, amparo em todas as aceções da palavra, como atestavam as provas da incalculável fortuna que ele detinha. Mais não esperava dele, pois conseguira a promessa de a deixar dormir em quarto separado, cujo consentimento a deixou maliciosamente feliz.
A primeira noite de núpcias trouxe-lhe o primeiro desapontamento. Despediu-se dele com um beijo na face e desejou-lhe uma boa noite de sono. Foi para o seu quarto, preparada para ter uma noite de descanso, receando apenas que o ouvisse ressonar no quarto ao lado. Quinze minutos depois, já na escuridão do quarto, enquanto fazia contas à vida, de somar, sentiu que a porta se abria e que ele se aproximava da cama. Ficou surpreendida. E, para maior espanto seu, sentiu que ele se metia debaixo dos lençóis começando logo a acariciá-la. Esforçou-se por ser simpática, lembrando-o do acordo celebrado entre ambos e que devia ser respeitado, pois o tinha como um cavalheiro que honra a sua palavra. Do meio do escuro ele respondeu, também com cordialidade: «Querida, nós apenas combinámos que dormiríamos em quartos separados. E prometo que não dormirei nesta cama.» Graça fechou os olhos. Só sentir a pele dava-lhe uma sensação de alergia àquele corpo que a cobria, mas não teve outro remédio senão consentir que a natureza dos corpos agisse por conta própria. No fim do ato, formulou um pensamento positivo, que ele não a incomodaria durante um mês, que não há bela sem senão, e que todos na vida tinham de engolir o seu sapo.
Graça desconhecia que tinha de engolir um sapo bem grande. Logo na noite seguinte ficou a sabê-lo quando o marido voltou a entrar nos seus aposentos. E o ritual repetiu-se. Nessa noite e em todas as outras, com pontualidade, excetuando o domingo, religiosamente dia de descanso, Justino Fortes entrava no quarto, às escuras, para visitar Graça e desfrutar os seus prazeres.
Dois meses após o enlace matrimonial, Graça sentia-se a mulher mais desgraçada do mundo, não conseguindo imaginar a sua vida nesse martírio, entregando-se a um homem que não amava, durante anos indeterminados, pois a morte só é certa quando a vida acaba. Se ao menos ele lhe desse algum descanso, procurando-a somente quando o rei faz anos, ela poderia criar os seus momentos de felicidade, a seu bel-prazer, vivendo uma aventura descomprometida com quem lhe agradasse.
Foi neste quadro conjugal que Graça resolveu pedir o divórcio, cuja audiência em tribunal ditara a sua derrota por não ter celebrado com Justino Fortes um acordo pré-nupcial por escrito. Contudo, esta não era a única pedra que a enfurecia e que a fazia dizer cobras e lagartos da sua vida. O que lhe doía, o que a picava, o que a fazia sentir-se achincalhada era a situação ridícula por que passara no tribunal sem que tivesse aberto a boca para isso.
«Mas agora, diga-me cá, senhor Justino Fortes…» __ perguntara o juiz cheio de curiosidade e perplexidade __ «Como consegue essa capacidade de visitar todas as noites a sua mulher? Toma Viagra?»
E ele, inchando o peito: «Nada disso, senhor doutor juiz! Eu tenho 70 anos! Mas, para mim, idade não é velhice.»

2009