O ÚLTIMO DESEJO

«Eu sou dom Caetano Martim de Albuquerque Serpa e Pimentel, senhor de Carqueja, descendente de antiquíssimo monarca fornicador, que me escuso aqui de nomear, e a quem sempre honrei a memória fazendo uso da minha nobre arte de bem cavalgar todo o mulherio.»
Era assim, com esta imponente frase, que todas as tardes, depois do lanche, o utente do Lar da Misericórdia saía para o habitual passeio ao ar livre, acompanhado pela funcionária do lar.
 À moça, nova e atrevida, agradava-lhe a conversa, ar fresco que lhe entrava pela janela de um trabalho aborrecido e saturado de velhos rabugentos.
«Ai o garanhão, parece um disco riscado, todos os dias a mesma cantilena», desafiava, com tom disfarçado de enfado.
Dom Caetano sorria. A moça entendia-o bem, sabia o que ele queria.
«Com a mesma cantilena, menina, pombinhas como você me vieram comer à mão.»
«Coitado, agora nem força tem para fazer andar a cadeira de rodas», espicaçava, saboreando o sal e a pimenta que as respostas dele lhe deixavam na boca, sabor que lhe despertava sentidos experienciados.
«Ai, menina, deixe-me fazer de si a minha cadeira de rodas.»
«Pois sim. Até a pulga tem catarro. Cego e parado. Ai que vontade de rir!»
Cego e parado! Esta tinha-lhe doído fundo. E velho! Três desgraças! Era este o retrato que ela lhe tirava. Cego! Mas via bem o que se passava lá fora. Era a vantagem de quem já tinha percorrido todos os caminhos da vida. Ainda há pouco, a certa altura do percurso…
«Tome atenção a essa pedra, menina. Tropece nela e caia em cima de mim. Faça-me esse favor.»
A rapariga parada, surpreendida. Olhou para ele com olhos de quem não via bem. Era mesmo cego?
«Até a cor das suas cuequinhas lhe posso dizer.»
E parado! Que afronta! Nem ela sonhava o que ainda mexia por dentro dele. De cor azul as milhentas recordações e saudades das camas e palheiros que desfez. E o plasma que lhe corria no sangue era desejo do mais puro. Do mais puro!
«Eu sou dom Caetano Martim de Albuquerque Serpa e Pimentel. Ouviu?»
«E então?»
«Então…. Então leve-me para a sombra da tília. Está uma tarde bonita e quente, como a menina. Leve-me para lá, o meu sítio preferido. Eu lhe direi quem é dom Caetano Martim de Albuquerque Serpa e Pimentel.»
Ai se ele pudesse voltar atrás no tempo, longe dali, senhoreando os seus domínios de Carqueja. Agora estava reduzido a esta triste coutada, a este moribundo e misericordioso lar. E montado num cavalo de rodas.
«Não seria melhor escrever um livro de memórias? Olhe este título sugestivo: “Memórias de um Marialva”. O que lhe resta, afinal: memórias e nada mais.»
A ajudante gostava do jogo de palavras, deste passatempo diário que lhe tornava os dias de serviço macios e ligeiros. E lamentava, em pensamento, a chochice do namorado e de toda a rapaziada nova, incapazes de uma conversa interessante, de rendilhar umas palavras que a arrebatassem.
«Palavras escritas não me alimentam», retorquiu ele. «Como a sua conversa de menina sabida. Eu quero é ação.»
«Ação!... Deixe-me rir. Até os pássaros lhe cagam em cima.»
Dom Caetano sacudiu com a mão o dejeto esborrachado em cima da careca.
«Por cima andei eu toda a vida. Por cima do meu galhardo Ciclone, por cima dos meus fiéis servidores, por cima da minha mulher e bem por cima das mulheres dos outros.»
«E agora nem por baixo anda», respondeu, provocatoriamente, lembrando-se da sua última noite de gozo.
«Não, menina. O cavaleiro também pode ser cavalgado. E eu, dom Caetano Martim de Albuquerque Serpa e Pimentel, senhor de Carqueja, estou cansado de ser cavalgado pelas suas palavras. Ação, menina! O que eu quero é ação. Ouviu?»
«Nem reação, quanto mais ação...»
«Não estivesse eu preso a este cavalo de rodas e demonstrava-lhe, já aqui na relva, como se monta uma égua. Até a passarada batia asas de contente», e riu-se, satisfeito com a resposta, a boca aberta, os lábios espumados de saliva.
«Sim, senhor! Vontade lhe seja feita. Vamos dar um passeio no seu cavalo de rodas.»
O velho silenciou-se, pensativo. Sentiu a rapariga por detrás de si, as mãos dela nas costas da cadeira, o peito saliente a roçar-lhe a nuca. Uma, duas vezes.
«Ai, Jesus! Valha-me Santo Viagra!»
«Convidou-me para ouvir lamúrias? Logo vi. Conversa de velho é o que dá. Foi-se abaixo.»
Ele empertigou-se, beliscado no seu brio de marialva.
«Abaixo vai você. Durante uma semana não vai poder levantar-se.»
«Só se for de desilusão.»
«Desilude-se. Eu sou dom Caetano Martim de Albuquerque Serpa e Pimentel, senhor de Carqueja, descendente de antiquíssimo monarca fornicador. Sabe o que isto quer dizer?»
«Já mo explicou muitas vezes.»
«Então é de compreensão lenta.»
«Você nem lento é.»
«Veremos.»
Entraram no lar. Era a hora de convívio com os outros utentes.


Uma semana depois. Ainda a tarde de sol primaveril no parque de lazer do lar. A sombra da tília, o velho e a funcionária. O mesmo cenário, a mesma movimentação e os rostos iguais aos dias pretéritos.
«Eu sou dom Caetano Martim de Albuquerque Serpa e Pimentel, senhor de Carqueja, descendente de antiquíssimo monarca fornicador, que me escuso aqui de nomear, e a quem sempre honrei a memória fazendo uso da minha nobre arte de bem cavalgar todo o mulherio.»
O mote estava lançado.
«E zumba na caneca. Faça sol ou chuva, sempre a mesma lengalenga.»
«Água mole em pedra dura, tanto dá até que fura.»
«Muito mole, e a água sumiu-se.»
«Ainda chega para lhe matar a sede», disse com ênfase, passando a mão sobre a braguilha num gesto insidioso.
«Mate-a à sua vizinha de quarto.»
«Não sou necrófilo.»
«Ora… seria ossos com ossos, cadáver com cadáver», e riu-se, imaginando a cena num filme.
«Não me importava de morrer debaixo da menina.»
«Credo…»
«Morria e chorava por mais.»
«Já chega de conversa. Está na hora de irmos para dentro.»
«Para dentro é que eu gosto.»
«Em breve lá estará. Bem dentro… da cova.»
Dom Martim carregou o sobrolho, o rosto perdeu o ar de chalaça e ficou-se num mutismo que despertou a atenção da rapariga.
«Desculpe, dom Caetano, era a brincar…»
«Eu sei, menina. Mas é a sério que lhe quero fazer uma proposta.»
«Diga lá. Coisa séria não deve ser, de certeza.»
O velho lançou os olhos cegos para ela e confessou num tom de criança aguada:
«Tenho tantas saudades de acariciar uns seios inebriantes.»
«Imagino…», respondeu, fingindo-se desentendida.
«A imaginar passo eu os dias e as noites. Trocava o resto da minha vida pela palpitação de um seio na concha das minhas mãos.»
«Que grande troca, dom Caetano.»
O velho calou-se por instantes. Depois recuperou:
«Teria uma generosa atenção para com a menina…»
«O quê?!...», os olhos da moça luziram de ambição. «Repita lá isso.»
«Se a menina Augusta me desse esse gosto, não ficaria esquecida no meu testamento», reforçou tateando uma mão dela.
«Fala a sério ou é só conversa de encher tempo?»
«Ai, menina, nunca brinquei com coisas sérias. Palavra de fidalgo. Acredite, é o meu último desejo. Depois nada mais quero da vida.»
E foram para dentro do lar com a promessa de a funcionária ir pensar no assunto.


Alguns dias depois, numa tarde de chuva e ventania, a funcionária Augusta conduziu dom Caetano ao seu quarto, ensurdecida pelo constante trautear do velho:
«Eu sou dom Caetano Martim de Albuquerque Serpa e Pimentel, senhor de Carqueja, descendente de antiquíssimo monarca fornicador, que me escuso aqui de nomear, e a quem sempre honrei a memória fazendo uso da minha nobre arte de bem cavalgar todo o mulherio.»
«Cale-se, dom Caetano. Ainda estraga a festa.»
«Festa é o que eu mais quero. Ora ponha as suas rolinhas tontas nas minhas mãos para eu lhes fazer umas festinhas.»
Ela pediu um minuto. Que ia arranjar-se na casinha e voltava logo prontinha para lhe satisfazer o seu desejo. O seu último desejo.
Dom Caetano ficou a remexer-se na cadeira de rodas como um cavalo impaciente a farejar o cio da fêmea. Parecia-lhe uma eternidade a demora. Usaria ela um corpete aperreado como antigamente?
Finalmente a funcionária regressou.
«Aqui tem as minhas maminhas», e chegou-as às mãos gulosas.
Dom Caetano atirou-se sôfrego a elas, a língua de fora, os olhos equestres a saltar das órbitas. Num frenesim, como cavalo desenfreado, reviveu mentalmente todas as apalpadelas da sua vida. Augusta soltou um gemido e ele delirou. Durou segundos o êxtase. A expressão facial dele alterou-se, duvidosa. As mãos dividiam-se entre carícias e toques incertos descodificando pormenores do relevo montanhoso. A rapariga soltava arrulhos de pomba que o deixavam baralhado. Apalpava e recuava. Apalpava e recuava. Por fim, lançou o fogo dos olhos contra a moça e berrou:
«Eu, dom Caetano Martim de Albuquerque Serpa e Pimentel, senhor de Carqueja, descendente de antiquíssimo monarca fornicador, que me escuso aqui de nomear, e a quem sempre honrei a memória fazendo uso da minha nobre arte de bem cavalgar todo o mulherio, morro desgraçadamente agarrado a umas tetas de plástico

2011