UM AMOR NAQUELA TARDE


Foi a 24 de dezembro. Era um dia chuvoso e frio. A chuva caía forte, com descargas diluvianas. Ficou na história dos invernos de má memória por causa das inundações trágicas que afogaram dezenas de localidades. Hoje talvez já me não recordasse desse dia triste. Mas ficou-me para sempre, mais por aquilo que de mim nele aconteceu. Dizendo melhor: foi ela que me aconteceu nessa tarde de chuva e frio.
Eu chegava a casa depois de uma caminhada heróica debaixo de um frágil guarda-chuva. As roupas molhadas colavam-se ao corpo, sobretudo às calças, pesadas de água. Imaginava o conforto do lar, quente e doce, mal entrasse em casa. Levava comigo a solidão e a leveza dos dias do meu contentamento, preso a uma rotina de vida que não incluía qualquer outro ser no meu habitat privado. Opção de vida tomada depois de sucessivos fracassos amorosos. Sozinho há seis anos. Por estranho que pareça, nunca cheguei a sentir o sindroma da solidão, doença tão propalada pela imprensa e por certos sociólogos. Convencera-me de que, afinal, soubera reencontrar o meu próprio caminho, e essa convicção dava-me a sensação de plena felicidade.
Naquela tarde, porém, naquela tarde quase noite de Natal, favorável à união familiar debaixo do mesmo teto, ela aconteceu-me. À entrada do prédio, abrigada no vão da porta, ela estava encolhida contra o canto da parede. Tremia de frio e fome, com um aspecto físico assustador.
O meu primeiro instinto foi ignorá-la, com indiferença, e abrir a porta do prédio. Nesse instante, ela mexeu-se e lançou-me os olhos como um pescador lança a rede. Não sei o que dela entrou em mim. Nem sequer me lembrei, nesse momento, de que era véspera de Natal e que, portanto, eu poderia estar imbuído do espírito natalício que nos sentimos obrigados a manifestar, pelo menos uma vez por ano, para tranquilidade da consciência. Só sei que lhe dei a mão. Só sei que juntei o seu corpo molhado ao meu corpo molhado. E assim, unidos e mudos, com palavras silenciosas que só os olhos e os gestos sabem dizer, entrámos no meu humilde apartamento.
Cuidei dela, acarinhei-a. Depois da quadra natalícia, com o corpo e a alma completamente renovados, com a liberdade à sua inteira disposição, quis ficar comigo. Adotou-me. Adotei-a.
Aprendi a viver com ela, aprendi a reviver uma vida a dois. Ela sabia ocupar o espaço que lhe pertencia e sabia respeitar o meu. Nessa base de entendimento, dei-lhe o que de melhor estava ao meu alcance. Reconhecia a gratidão nos seus olhos que aos meus se colavam como a água da chuva que nos uniu pela primeira vez. Nunca pronunciou uma palavra. Nem sequer era necessário. Para comunicar, tínhamos os olhos, as mãos e o coração. Não era uma relação estranha e absurda. Era uma relação completa e perfeita, que só se consegue quando duas solidões concentram à sua volta a sabedoria da vida. Era uma forma de amar que eu nunca havia experimentado.
No ano seguinte, o cíclico calendário trouxe outro Natal. Sem chuva, sem frio, com uma meiguice de sol.
Ela deu-me sinal, nessa tarde, de que sairia de casa durante alguns minutos. O tempo convidava ao cumprimento de um hábito diário. Fui à varanda. Queria ver o seu contentamento. Queria contemplá-la à distância, sentir a sua alegria de viver.
Vi-a atravessar a rua. Do outro lado, encostado ao vidro de uma loja, alguém ali estava, parado na tarde. Parecia não ter objetivo traçado. Também parecia não estar perdido. Ela chegou-se a ele. Percebi que o cheirava ostensivamente. Ele fez o mesmo. Os olhos deles falaram rápidos. E rápido vi os dois partir, lado a lado, juntinhos como na tarde em que a levei para minha casa.
Nunca mais regressou. Nunca mais a vi. Durante algumas semanas, a minha solidão ressentiu-se da falta dessa outra solidão. Mas os laços que se atam também se desatam. A vida continua. E nesta vida, com ou sem Natal, há sempre uma cadela capaz de trocar o seu dono por um cão qualquer.

Jornal da Mealhada, 431, 04.12.2002

O Pregador


A tempestade assolava toda a região. O vento rodopiava com fúria. A chuva derramava-se em torrentes diluvianas. Os relâmpagos rasgavam o manto negro da noite com espadas resplandecentes, iluminando por breves momentos a estrada inundada.
Parado na berma da estrada, os mínimos acesos do automóvel pareciam ao longe dois olhos de gato presos na noite intensa. Dentro da viatura o viajante encolhia-se de frio e medo. Havia duas horas que o carro avariara. Esperava com paciência de Noé que outro automóvel anunciasse à distância a sua passagem.
Precipitava-se para a estrada e gesticulava preces ao fugaz andamento de cada viatura rompendo a negridão da noite. Debalde. Tão rápido como saía, refugiava-se no auto- móvel, açoitado pelas vergastadas de água que lhe colavam a roupa ao corpo frio.
«Que mundo desumano! Já ninguém acredita nas pessoas», pensava, enquanto acendia um cigarro animador. Por instantes, a chama do isqueiro iluminava o São Cristóvão na placa do tabliê:

CARLOS AMARAL DE DEUS
SANTARÉM

Depois de uma hora de angustiosa solidão, o bailar de luzes no espelho retrovisor anunciou-lhe a passagem de outra viatura. A noite continuava rasgada de intempérie e ele, adivinhando o insucesso, hesitava em abrir a porta. O automóvel aproximava-se lento, e a lentidão enervava-o. Não se decidia. Ficar? Sair?
O carro aproximava-se cada vez mais, tão vagarosamente que...
De repente, saltou para a estrada, quase no mesmo momento em que o automóvel se cruzava consigo. Por pouco não foi atropelado. Correu para o condutor e gritou:
— Por amor de Deus... Preciso de boleia. Tenho o carro avariado.
— Entre rápido.
Tivera sorte.
Entrou. E com ele a interrogação: o gesto piedoso fora voluntário ou forçado?
O automóvel arrancou novamente.
Um silêncio inventado instalara-se no interior da viatura. Ambos sabiam que estavam a estudar-se mutuamente pelo canto do olho. A indumentária, a fisionomia, as mãos: tudo isto é a expressão da alma humana?
— Você está em péssimo estado. Dispa esse mar de água e agasalhe-se com aquele cobertor — disse o condutor, indicando o banco traseiro.
Agradeceu.
A viagem prosseguiu.
— Mau tempo este, hem?... — observou o condutor.
— É verdade. Parece o fim do mundo.
Um trovão sacudiu a noite.
— Ouviu? É a resposta à sua observação. Deus não dorme. Não haverá fim do mundo.
Calou-se. Não valia a pena teimar. Pouco depois, o condutor quebrou a mudez.
— Acredita no Advento?
— No vento? — O ecoar de um novo trovão abafara as palavras.
— NO ADVENTO!
— Quem acredita na Bíblia...
— E no segundo Advento? — O condutor quase parava o automóvel.
— Só conheço um.
O pregador sorriu:
— Pois conhece! Mas prepare-se para conhecer o próximo, não tarda muito.
O homem mirou-o. Estaria doido ou a querer gozá-lo?
O pregador insistiu:
— Acredita em Deus?
Acreditava.
— E se Deus enviasse o seu filho à terra pela segunda vez?— continuou.
— É uma hipótese bonita. Estamos sempre à espera do que há de vir — disse animado, mais confortado com o calor da manta.
O pregador pareceu não gostar da resposta. Sacudiu a cabeça e disse:
— Também você é como os outros. Acredita na ideia de Deus e, no entanto, se Ele lhe aparecesse, corporizado, negava-o.
— Teria de fazer um milagre para eu acreditar Nele.
— A história repete-se: você é o São Tomé da era moderna — exclamou com voz exaltada. — Todos dizem acreditar em Deus. Todos rompem muralhas em nome de Deus. Mas, se Ele aparecesse corporizado, escarnecê-lo-iam. Flagelavam-no, crucificavam-no, porque ousara afirmar-se como filho de Deus. Acreditam na ideia mas não acreditam na forma.
— Talvez a fé os cegue. Talvez precisem de acreditar no invisível.
— Deixe-se de filosofias, que você também o há de renegar — rematou bruscamente.
O condutor acelerava o andamento. A tempestade morria de cansaço. A sua voz exaltada tomava-se mais nítida.
— É desta região? — Mudou de assunto.
— Não. De Santarém.
— Bem longe. Conheço perfeitamente. E já agora... como se chama?
— Deus! — E deixou escapar um sorriso.
O condutor quase deu um salto.
— Deus?!... Está a gozar comigo? — Corou, de olhos cravados no viajante.
— Não. — respondeu muito sério. — Sou mesmo Deus. Em carne e osso.
O pregador emudeceu de espanto. Nervoso, começou a sentir uns calafrios infernais a percorrer-lhe o corpo.
«Podia lá ser Deus?!... Ah, mas havia de pagar pela blasfémia, o atrevidote! Queria ver a sua arrogância divina em público. Qual Deus, qual carapuça!»
A noite ia largando o manto negro do temporal à medida que o automóvel se deslocava para Oeste, quase, quase a entrar no Buçaco. Ganhava velocidade, a galgar a estrada sinuosa num ímpeto de indignação.
«Com que então Deus?!...»
Cego de raiva, com os olhos pousados no seu Deus, nada via na condução tresloucada.

2º prémio nos Jogos Florais da Quimigal/1990

 

QUE ESTÁS A VER?


Vejo uma criança, não tem mais de sete anitos, diz-me o aspeto franzino e a curiosidade brilhante a saltar dos olhos.
Do outro lado do biombo, a irmã é um corpo de sons a despir-se na penumbra do quarto. Todas as noites o mesmo ritual: a irmã, muito mais velha, abre o biombo e tapa as nesgas visíveis. Despe o pequeno, querubim nas mãos meigas, veste-lhe o pijama e aconchega-o sob os lençóis. Depois apaga a chama do candeeiro e esconde-se no outro lado do biombo, junto à sua cama. Só os movimentos dos sons configuram a presença no quarto. O miúdo fica acordado, a cismar... Os corpos são diferentes? Que segredo haverá por dentro das roupas? O que tem a mana e as outras pessoas que eu não possa ver? Que esquisitos os adultos! Ainda no outro dia, andava com o pai a sachar na horta e reparou que ele se pôs de costas para fazer um simples chichi. E a mãe, sempre atafegada nas roupas, desbobinando reparos: «Filha, aperta-me o botão dessa blusa! Parece que estás com os calores, mas eu tiro-tos com duas estaladas bem assentes nas bentas. Tira-me essa saia que está muito acima do joelho. Filha minha não há de andar nas bocas do mundo!»
Vejo a criança na escola, ao fundo da sala, pasmada com a descoberta de mulheres nuas nas páginas de uma revista. Era este então o mistério que a irmã lhe não queria revelar! Era disto que as pessoas morriam de vergonha?
Pressinto a professora desconfiada com os sorrisinhos dos garotos.
«Que estás a ver?»
«Que estás a ver? Que estás a ver, avô?»
É o meu neto que me sacode com as mãos, que me afasta o passado longínquo do pensamento. Quer saber o programa que passa na televisão. Digo qualquer coisa sem nexo, que satisfaz a curiosidade do garoto. Corre à cozinha, a contar a novidade à mãe, que o avô está a ficar xexé, não diz coisa com coisa. Ouço a minha nora explicar que a idade faz destas coisas às pessoas. Encolho os ombros. Até me dá jeito esta aparente senilidade. É o biombo da velhice. Nem sequer é preciso apagar a luz. A mãe muda de assunto e avisa o filho de que está na hora do banho. Não quer tomar banho sozinho. Vai esperar que o pai e a irmã regressem da praia. Tomarão banho os três na banheira grande.
É um fim de tarde de verão, a brisa marítima entra pela varanda aberta da nossa casa de férias. Levanto-me do sofá e vou até à varanda. Fico de mãos apoiadas na grade de ferro a observar os veraneantes que começam a abandonar a praia. É gente de todas as idades. Possivelmente vêm todos satisfeitos por terem gozado mais um dia de férias. E as jovens... essas devem estar com o ego todo bronzeado. Estendidas sem pudor na areia, ao sol, pouco ou nada coberto no corpo. Mas ninguém lhes dá importância. Até a juventude passa à ilharga com indiferença, como se elas fossem peças de roupa a corar ao sol.
O meu neto grita que chegaram o papá e a mana. De tão distraído que estava nem dei pela sua passagem na rua. O miúdo apressa-se a contar a novidade: o avô está xexé, não diz coisa com coisa. Eles confirmam, que me acenaram da rua e não os reconheci. Mais uma vez encolho os ombros. O garoto convida-os para o banho na banheira grande. O pai responde que podem ir indo, que já vai lá ter. Os meus netos afastam-se com alvoroço.
Faz-se silêncio na cozinha. Talvez estejam a beijar-se, se isso ainda tem algum significado para eles. Escuto agora vozes mais baixa. Pressinto que o meu filho vem espreitar a sala. Finjo-me distraído, entregue à minha senilidade. Voltou à cozinha. Entro na sala e sento-me na cadeira junto à porta. Minha nora fala em lares da terceira idade com bastante convicção. Meu filho argumenta que eu não lhe perdoaria, e que ele ficaria com problemas de consciência. E os nossos filhos, diz enérgica, ficarão marcados por uma morte dentro de casa. Pode ser prejudicial para o seu desenvolvimento. E além disso dá cá uma trabalheira! Caixão dentro de casa, na sala grande, velório, cheiro a velas e a flores, e os miúdos a verem tudo. Ninguém suporta a ideia da morte dentro de casa. Os velórios em casa acabaram — é interrompida, mas continua rematando: — Temos de pensar no lar o mais depressa possível.
Volto à varanda. Está um pôr-do-sol igual a tantos outros. Também a minha morte será um acontecimento tão banal como o topless de uma mulher. Atirado para o silêncio frio de uma igreja far-me-ão o funeral com suspiros de enfado até respirarem de alívio após a cremação evidenciar que nesta vida tudo se resume a cinzas. A memória de mim terá o tamanho de uma pequena gaveta com o meu nome gravado. E as crianças longe das exéquias porque a morte incomoda. Ficarão em casa a ver um filme, talvez vestidos de cores alegres, porque as cores não têm sentimentos, diz a minha nora. E à noite, a minha neta terá ainda a possibilidade de saudar a vida na discoteca mais próxima.
Contemplo o pôr-do-sol. Vejo a mesma criança, um pouco mais crescida, a espreitar a sala cheia de pessoas vestidas de preto. Há lágrimas a correr pelas faces como a cera derretida das velas. Ao centro da sala um caixão aberto mostra o rosto serenamente pálido do avô.
A mãe descobre o pequeno à entrada da sala. Faz-lhe um sinal e ele obedece. Depois pega-o ao colo, aproxima-se do caixão, e diz-lhe para dar um beijo de despedida ao avô. Nesse instante, a avó solta um grito cheio de dor.
O funeral começa. O caixão chega à rua e a avó lança os últimos gritos, mais fortes. Não acompanhará o marido à última morada, por falta de pernas, mas as pessoas levarão a certeza da sua dor.
Volto à sala e sento-me no sofá. Finjo que estou bastante interessado na televisão. Meu filho sentar-se-á a meu lado, abrirá o jornal e comentará algumas notícias pedindo-me a opinião. Quererá saber, sub-repticiamente, se estou senil. Não sei como vou reagir. Confundi-lo com provas de infalível lucidez? Propor-lhe pessoalmente a minha ida para um lar? Não sei!
Os garotos reclamam a presença da mãe. Uma lufada de ar invade a sala. Regresso novamente à varanda. O panorama modificou-se. A praia está deserta. O sol afundou-se no horizonte do mar. Nem um navio sequer. Gostava tanto de ver uma luz a bailar no crepúsculo do mar!
«Que estás a ver, pai?»

 
1994

PALAVRAS NA AREIA


Palavras na Areia é o título do livro apresentado ao público em São Caetano, Febres (Cantanhede), no dia 7 de agosto. Trata-se de uma antologia que reúne os contos premiados no Prémio Idalécio Cação, do qual fui eu o vencedor no escalão adulto, com o conto A Mala Verde, e muitos outros contos selecionados entre os trabalhos que foram submetidos ao concurso.
A edição é da Junta de Freguesia de São Caetano, promotora do prémio literário.





OS AZARES DE VALDEMAR SORTE GRANDE

MENÇÃO DE HONRA

para

OS AZARES DE VALDEMAR SORTE GRANDE

 
 
 
 
 
Nota: Onde se lê que O Fotógrafo da Madeira foi editado pela Porto Editora, deve ler-se que foi editado pela Oficina do Livro. E o prémio é de 2010, não de 2011.

AS PORTAS DO CÉU

Enquanto não publico um novo romance (talvez no próximo ano), decidi disponibilizar o meu primeiro romance, AS PORTAS DO CÉU (menção honrosa no Prémio Literário António Feliciano de Castilho, em 2000), em formato digital, EPUB, na plataforma Escrytos da Leya. Tem um preço simbólico de 4,99 Euros e a vantagem de não ocupar espaço na estante. Quem tiver curiosidade pode consultar o site: http://www.leyaonline.com/catalogo/detalhes_produto.php?id=57365



 

A Estação


Na última visita descobri que a minha aldeia pertence cada vez mais ao espaço da memória. Quase nada me prende à terra natal desde o falecimento do meu avô. À exceção da velha casa e da estação, e de dois ou três amigos, que ainda lá permanecem presos às raízes, o resto é apenas uma ideia muito vaga perdida na neblina da memória.
O encerramento da pequena estação há alguns anos tinha acentuado o respirar moribundo que se lhe ouvia. O meu avô, nessa época, dissera-me tristemente que o tempo parara com a ausência dos comboios. Sentia a falta dos apitos rompendo a manhã, dos rostos dos viajantes encostados às janelas e das pequenas novidades que desciam na estação. Posso dizer, aliás, que o encerramento da estação foi o golpe fatal na vida da aldeia e, principalmente, na de meu avô.
Quando era pequeno, ouvia a minha avó desabafar, nos momentos de exaltação, com os cabelos desalinhados sobre a testa e a colher de pau na mão, que estava cega quando casou com o avô. Estas cenas repetiam-se quando ele decidia fazer as malas e anunciar que ia partir para uma viagem sem regresso, que ia finalmente ao encontro do seu el-dourado. O meu pai, habituado a estas cenas, emprestava-lhe um pouco de realismo: «Pois vamos os dois! É só fazer a trouxa num segundo.» A minha avó lançava as mãos à cabeça, que tal pai, tal filho. Mas o avô é que rejeitava logo a proposta: «Não te metas na minha vida. A viagem é minha e do Necas. Só de nós os dois, ouviste?»
O Necas era outro sonhador como ele. Desde a infância que combinavam sair da aldeia, de ir à procura de uma outra vida num outro lugar. A primeira vez que isto aconteceu, deu falatório durante meses. Eles chegaram à estação e sentaram-se no cais à espera. O chefe estranhou a presença dos garotos e quis saber das suas intenções. Esperavam um amigo no próximo comboio. O homem deixou-os em paz. Só descobriu a matreirice quando os garotos subiram para o comboio em movimento. Avisada a estação seguinte, a viagem terminou aí e o atrevimento em casa com uma grande sova.
As tentativas de evasão repetiram-se. Era uma força que chegava de repente, sem qualquer motivo aparente, e impelia-os a imaginar planos de viagens. Durante uma semana deliravam com os preparativos. Não havia casa que não soubesse dos seus projetos. Chegaram a despertar invejas e a serem vistos como heróis aquando da primeira vez que anunciaram publicamente a partida. De outra coisa não se falava na taberna, à mesa, à lareira, em qualquer sítio onde estivessem pelo menos duas pessoas. Os habitantes perguntavam o destino da viagem e eles respondiam que só pensariam nisso na estação. E esta resposta aguçava ainda mais a curiosidade, dando azo a efabulações de tal ordem que chegou mesmo a espalhar-se o rumor de que haviam sido eleitos por Deus para uma missão divina.
No dia da partida, a aldeia acompanhou-os à estação. Os mais idosos recomendavam mil cuidados com as sete partidas do mundo, as moças solteiras pediam prendas e promessas de casamento, os familiares queriam uma carta sem demora, e só os cães e os gatos assistiam a tudo de boca calada. Durante o percurso fizeram-se apostas. Um alqueire de milho, uma carrada de estrume, duas galinhas e um porco asseguravam a certeza do destino dos jovens aventureiros. Entraram na estação e sentaram-se em cima das malas à espera do comboio. Assim estiveram algum tempo; calados, de olhos perdidos na lonjura dos carris. Os espectadores murmurando destinos.
O chefe da estação veio perguntar-lhes se não tiravam bilhete. E a multidão arrastou-se em peso, desejosa de uma palavra que ditasse a sua sorte na aposta. Era, realmente, necessário tirar bilhete, pensaram os dois simultaneamente. Mas para onde?
Um silvo ao longe e o ranger dos carris anunciaram a aproximação do comboio. Procuraram-no com a vista e leram o futuro no rosto que vinha ao seu encontro. Vamos? Para onde?
A locomotiva chegava ao cais. Os passageiros abriram as janelas e mostravam espanto e curiosidade por verem tanta gente. Estariam à espera de alguém importante? Talvez um ministro? O chefe, impaciente, perguntou se iam ou ficavam. Havia horários a cumprir.
Vamos? Para onde?
«Então, o que decidem?»
Olharam os passageiros, os conterrâneos e o comboio.
«Que fazer? Ir? Neste comboio que, só agora reparamos, não nos inspira confiança? Vamos mas é embora! Este não é o nosso comboio. Outros virão!»
Pegaram nas malas e voltaram à aldeia. Atrás deles ficavam a desilusão dos apostadores e o apito do comboio que tinha um destino a cumprir.
A estação é um esboço pálido no lugar de outrora. Só a minha memória a conserva na vida que já lhe não pertence. O telhado desabou e ficaram as tábuas apodrecidas à beira da agonia. As ervas invadiram a linha cobrindo os carris ferrugentos. Ao longe, uma antiga carruagem lembra viagens imaginárias. Mas está tão parada como o avô, nas tardes de melancolia, a espreitar os comboios que chegavam e os rostos dos passageiros que vislumbrava às janelas. E nem um só apito a anunciar o novo dia.
Sei, avô, das tentativas que fizeste ao longo da vida para embarcar. Era uma súbita vontade de partir que te nascia, a ti e ao Necas. A população ria-se dos vossos intentos — até que os vossos sonhos se tornaram rotina e passaram a ser encarados como um simples habitante da aldeia. E quando anunciavam a data da viagem nem uma aposta nascia da boca das pessoas, nem sequer para apostar que dessa vez era a sério. Mas tu sabias que a aldeia precisava das vossas encenações.
Certo dia, resolveste partir sozinho, sem a companhia do Necas. Começaste a desconfiar de que a culpa era dele, que impedia uma decisão rápida e irreversível, e que, além disso, o mesmo destino não podia ser tomado por dois. Chegaste à estação, pela primeira vez dono de uma viagem clandestina. Passeaste pelo cais enquanto ias pensando no teu destino. Pouco depois, entrou na estação o Necas. Mediste o tamanho da tua traição e imaginaste a fúria do teu amigo. Olhaste para o chão, envergonhado, e quando levantaste os olhos reparaste que ele se afastava de ti. Nem uma palavra te dirigiu, mas as malas que transportava disseram-te toda a verdade.
Chegou o comboio e parou à frente do vosso destino.
Ir? Agora mesmo? Para onde? É este o meu comboio?
O comboio partiu.
Estou no centro da aldeia. Pergunto pelos amigos e respondem-me que emigraram. Partiram! Paciência! Terei de me contentar com a velha casa. Subo a rua e imagino a sua aparição: uma casa térrea, caiada de amarelo com a pitoresca porta de postigo incorporado. Viro à direita e paro subitamente. Não! Não esperava ver isto: o telhado arrombado, a porta aberta às ervas e urtigas. A casa em ruínas. Fico parado a curta distância, de olhos fechados. Não é esta casa que há de habitar dentro de mim.
É tempo de partir, de deixar para trás esta aldeia.
Sabes, avô, lamento que não tenhas acompanhado o Necas no último comboio. Lamento que tenhas ficado tão só como a estação!
 
1994

O Infinito


O homem esquecera-se já da data em que abandonara a terra natal. Tinha a certeza de ter decorrido muito tempo: tanto tempo que a vida deixara de ser uma sucessão de anos, meses e semanas, para se traduzir num somatório de dias e noites, sol e chuva, montanhas e vales, e caminhos, muitos caminhos. Porém, o dia da partida, assim como todos os dias da sua vida, estava ainda vivo dentro de si.
 
Nascera no litoral, numa pequena praia de pescadores.
A infância fora para ele um berço de areia com lençóis feitos de água. Do seu canto, aninhado no lastro dum barco abandonado, acompanhava diariamente a faina dos pescadores. Via-os partir, vencendo a princípio a teimosia das ondas, até se perderem na linha do horizonte. Nessa altura, acreditava que o pai e os outros pescadores tinham entrado no céu, sítio onde eles lançavam as redes. Depois esperava o regresso, a aparição lenta, para ver os bois puxar as redes e a aflição dos peixes em saltos de prata. A vontade de ser pescador era do tamanho do barco que tinha na imaginação.
Mais tarde, na escola, aprendera a declamar de cor: Pescador da barca bela, Onde vais pescar com ela, Que é tão bela, Ó pescador! E, com bastante entusiasmo, escreveu, certo dia, uma composição que dizia a sua forte vontade de ser pescador, porque era ao céu que se ia buscar o peixe. Com um sorriso maternal, a professora explicou-lhe a ilusão de ótica, que o mar e o céu estão sempre à mesma distância, nunca se tocam, e que não é pelo mar que se entra no céu.
De regresso a casa, evitou os colegas e desatou em correria até à praia. Contemplou o infinito do mar, mesmo no ponto onde o mar e o céu se beijam, e assim esteve absorto durante alguns minutos. Imaginou tanto céu por cima dele, e sentiu tristeza e desilusão por estar fora do alcance das mãos. Compreendeu então que a distância entre céu e mar era sempre a mesma porque se navegava em plano, porque o mar não tinha subidas nem montanhas. E decidiu que, ao contrário de seu pai, não seria pescador do mar, mas pescador da terra. Teria todas as montanhas do mundo para chegar ao céu.
Mesmo assim, enquanto não sentiu dentro de si um homem crescido, teve de suportar o único modo de vida que a aldeia conhecia. Durante largos anos foi conhecendo a alma do mar. Sabia que a pesca não ultrapassava uma linha imaginária nas águas. Por vezes, interrogava-se ainda acerca do mistério, do desconhecido para lá dessa fronteira invisível.
Certo dia, ganhou coragem e lançou-se ao mar numa pequena embarcação. Remou para lá de todas as barreiras até perder de vista o último sinal existente em terra. Sentiu--se mergulhado num silêncio surdo. Por instantes, firmando a vista num horizonte sem linha, teve a sensação de que céu e mar confundiam-se numa poalha azulada, e que o seu espírito flutuava no infinito. Mas era à sua volta que a realidade se estampava evidente. Da pequena ilha flutuante media a distância incomensurável que o separava do céu. Insatisfeito, navegou rumo ao desconhecido. E, mais uma vez, a realidade repetiu-se. Voltou a terra, completamente esclarecido.
Para ele, o mar era o caminho da ilusão, o caminho que não conduzia ao céu. Para ele, o mar era a infinita prisão.
O apelo de virar costas ao mar, e navegar pela terra adentro, foi crescendo como as marés de inverno.

Aventura-se, agora, a olhar a extensa planície, tão extensa que lhe faz lembrar o infinito do mar. Um esboço de montanha recorta-se no fundo do horizonte, indefinido como um sonho.
De bicicleta, consegue chegar ao topo da serra. Contempla a paisagem que se estende a seus pés e, do alto da sua felicidade, sente pela primeira vez a brisa do céu. Longo tempo está assim extasiado, ave espiritual suspensa no espaço. Mas, subitamente, estranha sensação que se adensa: o céu a encolher-se, a retomar a distância que o separava do mar. Efémero conquistador do espaço, ele desce, desiludido, a serra, e regressa à planície do seu mar.
Precisa de uma montanha mais alta, tem a certeza disso. Uma montanha que o aproxime mais do céu. Uma outra serra, a mais alta serra do seu país, cresce agora dentro de si.
Depois de muitos planos de viagem, chega ao cimo da montanha na tarde fria e cinzenta. A neve estendida pela lonjura é um lençol que convida a vista a repousar nele. Almofadas de nuvens envolvem-no como um hálito densamente vaporoso. E no meio de toda esta brancura, onde o ar límpido é absorvido como éter, ele sente-se borboleta, ele sente pela primeira vez o peso de uma leveza indizível, uma penugem de ave branca suspensa no espaço, e que se dilui vagarosamente até ser o nada palpável, o infinito incarnado. Assim se mantém intemporal até à ressurreição dos sentidos.
Olhando as nuvens que vagueiam levemente, abrindo-se às meiguices da aragem que se levanta, recebe nos olhos a nesga de céu que cresce sobre si. Desperto do sonho, percebe o tamanho da realidade que sobre ele se abate. Conseguira chegar mais longe, quase tivera o céu nas mãos. Sentia-se algo feliz, mas sabia que esta não era ainda a porta do céu.
De todas as vezes que via o mar, sentia logo um calafrio percorrer-lhe o corpo inteiro. Estava farto daquela terra presa ao mar, daquela gente falando palavras salgadas e daquele mar que refletia a miragem do céu. Nem podia vê-lo já; bastava o pensamento para sentir um enjoo profundo.
 
Numa madrugada em que a aldeia se mostrou coberta de flocos de espuma, de uma baba pegajosa, após uma noite de temporal, com o mar a querer inundar a terra, pegou na trouxa e avançou correndo pela planície, nunca olhando para trás, ao encontro da montanha que lhe abriria a porta do céu.
Chegou à aldeia, igual aos milhares de aldeias que conhecera durante a sua vida peregrina. Entrava nelas com desinteresse, instalava-se num canto qualquer, e ao fim de alguns dias, com poucas palavras trocadas, retomava a viagem sem levar consigo uma ideia completa das casas, das ruas, das pessoas, do modo de vida. A importância de um lugarejo qualquer media-se pela distância que o separava do céu. Mas esta aldeia, sabia ele, era a mais importante: a última que em breve deixaria para trás, para finalmente alcançar a montanha do mundo que termina dentro do céu.
Era uma aldeia de casas rudimentares, quase encoberta por uma toalha de neve. A noite começava a derramar-se em manchas escuras e frágeis línguas de luz escoavam-se das frestas dos casebres. Sem pressa, deu uma volta completa à povoação. Sabia que os cães captariam o seu odor; em breve anunciá-lo-iam como pessoa intrusa. Era assim que se apresentava; depois, era só aguardar a ordem natural das coisas. Às vezes, as coisas corriam mal: os cães não ladravam, talvez farejando nele a inofensiva pobreza igual à dos seus donos, ou então eram os próprios moradores que ignoravam os apelos dos cães.
Desta vez, também o silêncio o recolheu. Longe ia o tempo em que a força da idade superava estas situações, bastando tão-somente um pequeno abrigo ao ar livre e uma côdea de broa. Corria-lhe agora nas veias sangue menos fogoso e temia não resistir ao frio da noite. Mesmo às portas do céu, não era agora que iria deitar por terra todo o esforço que despendera ao longo da vida.
No largo da aldeia, descobriu alguma animação numa taberna. Olhou com agrado o crepitar das chamas numa lareira. Foi, aliás, a primeira coisa em que reparou. Só de- pois prestou alguma atenção aos poucos homens, todos idosos, que conversavam à volta de um copo. Miraram-no com alguma curiosidade. Não era frequente a aparição de gente estranha. Tartamudeou santas noites e sentou-se num banco de madeira perto do lume. O dono da taberna serviu-lhe uma tigela de sopa, um naco de pão e um copo de vinho.
Perguntou ao taberneiro se podia ali pernoitar. De madrugada, estaria já a caminho do pico cia montanha. Todos o olharam surpreendidos. E, pela primeira vez, repararam que o velho trazia no rosto as rugas de todas as montanhas do mundo. Um dos clientes esboçou um sorriso incrédulo.
— Amigo, olha para nós. Com esta idade, que mais poderemos desejar a não ser o calor da fogueira e o afago de um copo?
O viajante hesitou antes de responder:
— Sois naturais daqui?
— Até à morte. Somos como as árvores: morremos no sítio onde nascemos sem nunca ter de lá saído.
Por momentos, o forasteiro divisou a forma difusa de um barco a ancorar na sua memória. Imaginou-o a navegar pelo mar infinito e, no entanto, parecia estar sempre no mesmo ponto.
— E nunca subistes ao topo da montanha?
Os velhotes riram-se.
— Para quê? Para ver neve, frio e vento?
— Não. Para entrar no céu
Os copos ficaram suspensos nas mãos. Nunca tal ideia lhes tinha ocorrido. Mas não seria também uma doidice?
— E é assim tão fácil entrar no céu? É só chegar lá acima, à montanha?
— Se esta é a montanha mais alta do mundo, então estamos mesmo às portas do céu. Espero lá chegar amanhã.
Os bebedores não acreditaram. O homem era mesmo maluco.
— Já agora esperamos que a morte nos leve lá. É mais fácil.
E desataram uma ruidosa gargalhada.
O homem que trazia as montanhas do mundo inteiro esculpidas no rosto ignorou a piada e preparou-se para descansar. Esta seria a última noite mais próxima do céu e, por isso mesmo, queria recordar todos os caminhos gravados nos seus pés, todas as montanhas adormecidas na sua alma, e todos os reflexos do céu espelhados nos seus olhos desde que abandonara o barco na sua aldeia natal.
Uma vida inteira gasta em buscas peregrinas até conseguir aproximar-se da montanha mais alta do mundo. Chegar perto do céu não fora tão fácil como julgara a princípio, quando a intensa vontade da juventude vence todas as montanhas. Passou dificuldades e sacrifícios mas nunca desistira de encontrar o caminho certo que o levasse à montanha ambicionada. De caminho em caminho, de povoação em povoação, de montanha em montanha, assim fora escrevendo a vida.
Conhecia de cor os segredos da natureza; a linguagem das aves, dos animais, das plantas, do vento, do sol e da chuva; e também a linguagem do sonho, do amor e do ódio, que existia nos seres humanos. Aprendera a ser mendigo, homem de sete ofícios e, por vezes, ladrão e até assassino. Aprendera, sobretudo, a conhecer-se a si próprio, a ter vergonha, escárnio e asco de si, mas também a descobrir dentro de si nascentes efémeras de amor e felicidade.
Dos instantes de plenitude espiritual, uma montanha ergue-se mais nítida na memória. Acreditou durante bastante tempo que essa era a montanha que lhe oferecia o céu. Nela viveu alguns anos, dela fruiu a entrega do seu corpo erógeno que o fazia atingir o orgasmo cósmico. Acima de si nada mais existia; ele era finalmente o infinito, ele era o sopro original dos confins do universo.
Como sempre sucedia, notava que a montanha se ia desagastando, envelhecendo, perdendo lentamente o contacto com o céu. Quando a erosão era demasiado intensa, sentia a agonia dolorosa da montanha, sentia o desmoronamento do seu corpo até repousar inerte como uma planície. A caminhada recomeçava. Ainda não chegara a hora da montanha que o faria entrar no céu. Eternamente.
Acordou, de madrugada, pujante de felicidade adivinhada. Abandonou a taberna silenciosamente. Lembrava-se agora que não dera pela saída dos homens durante a noite.
Caminhou ao longo da neve, espreitando o corpo altivo da montanha. Sabia que a empresa não iria ser fácil. Sabia que a montanha mais alta do mundo era um corpo que não se abria a qualquer um. Ao fim de duas horas estava apenas a meio do percurso. O cansaço e o frio gélido começavam a tolher-lhe os movimentos. Insistiu na subida, veterano em trilhos invisíveis. Pouco a pouco deixou de se ver a si próprio, tanta era a neve que o envolvia. À sua volta, os arbustos e os rumores eram brancos. O ar que respirava dizia-lhe que pisava alturas desconhecidas. Sentiu-se invadido por súbita e estranha alegria. Apesar de estar exausto, com dificuldades em respirar, retomou a escalada por mais algum tempo. Parou. Notara que caminhava em plano. Teria chegado ao topo da montanha? Limpou os olhos e olhou à sua volta. Tudo branco. De um branco luminoso que cegava. Por cima de si, o branco era ainda mais intenso. E também ele branco, de um branco transparente. Inspirou com dificuldade o ar rarefeito. Sorriu. Sentia-se leve, tão leve que até parecia flutuar.
Estendeu-se no chão: neve sobre neve, branco sobre branco, transparência sobre transparência. Sentia-se volátil e recebia com gratidão a neve que o ia cobrindo. Quando se confundiu plenamente com a montanha, teve ainda tempo para ver um barco a navegar no céu.
 
1994

A COLHEITA


Sete horas da manhã.
No pátio interior da casa rústica de Matias agitam-se os preparativos da vindima: das tesouras às dornas tudo se avoluma. E, aos passos e vozes do pessoal ganhador, acordado em chapadas de água na pia de pedra farta de bois, as aves de capoeira exibem-se em estridentes onomatopeias.
Outras pessoas vêm de suas casas espalhadas pelo povoado: homens, mulheres e jovens; todos abraçados às cestas de vime, chegando-se aos companheiros de trabalho com sorrisos de frescura, prontos para a colheita do ganha-pão.
A uma ordem muda do patrão, todos se concentram mentalmente no destino combinado, abrindo o portão para as vinhas estendidas na paisagem. Por descidas e subidas que a aldeia oferece aos vindimadores, conversas soltas despertam a manhã.
Hora depois, os primeiros poceiros de vime cheios de uvas começam a afirmar-se no limite da vinha. Com frequência, agiganta-se no ar um poceiro, coleando o caminho inventado por entre cepas, até se alojar na berma do carreiro à espera da dorna que há de chegar. Neste afã itinerante, os homens auxiliam as mulheres, mais fracas em puxar o poceiro dos pés à cabeça.
Berta, na fragilidade dos dezoito anos, socorre-se amiúde de um jovem vindimador que, oferecendo-lhe os braços, pelos olhos a segura nos seus em repetidas insistências, ficando a moça, quase esquecida do peso que sustenta sobre a cabeça. Como aragem que passa, ela segue o seu caminho, enquanto o rapaz fica especado no terreno saboreando o andamento ligeiro da moça. Ao longe, na distância da vinha, ele adivinha as faces afogueadas da jovem que as outras raparigas interpretam como efeito da sobrecarga, chegando mesmo a reconhecer que em tão grande força é maior a beleza.
A vindima continua.
À medida que a vinha se vai libertando do peso dos frutos, esmorecendo de corpo despido, Berta começa a vestir-se de floridos pensamentos a que a sua idade é pródiga neste mister. Ela alheia-se cada vez mais do burburinho da vindima, das conversas que escuta sem ouvir, colhendo as uvas com tesouradas distraídas. Por vezes, liberta com a mão gavinhas do lenço de cotim, e rápida se prende em outros elos, atenta que está ao domador exemplar de gestos obreiros. Berta sabe que a si os oferece ele com seu tronco nu, soberbo no altar da vinha. Impelida por curiosidade indizível, na paleta do seu olhar aviva os contornos do rapagão que a almeja. E, construindo a figura de corpo inteiro, não se esquece já desse rosto farto de homem que começa a interessá-la.
Presa nos liames da imaginação, torna-se agora cúmplice de olhares furtivos em redor de inúmeras videiras. Subitamente, interroga-se acerca do mistério aliciante, do élan condutor. O cesto de vime que recebeu uvas à boca-cheia é despejado na rotina da vindima. De novo Berta regressa ao afã de o encher, aceitando que no enleio do jogo amoroso um par de olhos a dispa de sonhadas parras.
E a tarde escapa-se inteira de cachos.
Outro dia de vindima chega, que Berta aguardara com secreta ânsia, desejosa da continuidade do sortilégio amoroso. A novidade do jogo só a ela pertence, rainha na descoberta do império do amor. Do alto do seu trono, o mundo afigura-se-lhe como um vinha imensa de dádivas.
A vindima vai avançando e a curiosidade de Berta também. Por simuladas conversas desinteressadas, aqui e ali, vai captando das amigas uns instantes de biografia do seu romântico Crisóstomo. Viera ele dos lados de Mortágua para cumprir nas terras da Bairrada a colheita prometedora dos vinhedos. Aliás, todos os anos cumpria este ritual. Com vaidade, gabava-se, sorridente, de que parte da sua vida era já uma vinha bastante extensa. Era chegar o mês de setembro e vê-lo calcorrear, uma vez no Douro, depois no Alentejo, este ano na Bairrada. E até hoje, dizia ele, mais sorridente, nunca se queixara das colheitas. Jovem mas homem feito, herdeiro de boa fortuna e letrado, procurava nas vindimas o alento para enfrentar uma vida de futuro. Gostava da natureza e da vida rústica, das coisas simples da vida, não sentisse ele no sangue a raiz telúrica dos antepassados. Da terra fecunda colhia o seu alimento, a sua vida.
Entusiasmada com estas informações, Berta sonha-o um deus. O encanto da vindima é agora Crisóstomo a dominar as vinhas. Dos seus braços promessas tácitas libertam-se, que os olhos de Berta decifram no ritual da vindima, aberta à colheita que o tempo apela.
A hora de acarretar os poceiros para a borda da vinha de novo os junta. O pessoal vindimador vê neles duas folhas que se uniram pelo acaso do vento. Demorando-se junto a Crisóstomo, Berta apressa-se a largar a vasilha no sítio indicado. No final do vaivém, tempos depois, ela apercebe-se pela primeira vez do mosto que por dentro da blusa de chita, bem sobre os seios despertos, docemente a incomoda. Por instinto, move-se fugidia no alcance da ribeira à ilharga não distante. Por entre a folhagem chega o rumor entardecido da vindima. Entrando na água, Berta não resiste a contemplar-se, protegida por frágeis salgueiros. De faces rosadas e cabelos loiros que a água branqueia, ela esquece a trança de água subindo na fogosidade do corpo, tão embebida está nos pensamentos que lhe correm. Finalmente, um gesto seu quebra as límpidas águas da ribeira. Um alcatruz de mãos ergue a limpeza à altura dos seios translúcidos de mosto.
Perturbado por masculinos passos que da ribeira se aproximam, um pintassilgo interrompe o canto. Alheia aos avisos da natureza, Berta surpreende-se quando as águas lhe refletem a imagem de Crisóstomo. Um gesto brusco encobre o pudor que a consciência recomenda, atida às palavras primeiras de Crisóstomo.
— Berta, quem me dera ser a água da ribeira para nos teus seios me deleitar!
Palavras assim valem ouro, a que uma resposta de quilate se ajusta, agora recomposta da surpresa e do seu lugar.
— Confiei nesta águas que me limparam; espero que as tuas palavras não me sujem.
Retirando-se com um sorriso nos lábios, Crisóstomo assegura-lhe:
— De todas as vindimas do mundo, tu és a uva mais apetecida. Quero colhê-la, não estragá-la.
E Berta se narcisa, enlevando-se na volúpia das águas.
Pouco depois, junto aos poceiros enfileirados na orla da vinha, o pessoal resmunga o atraso de Manel das Dornas. O cansaço e o anseio do repouso são visíveis nas linhas dos rostos. Um homem e uma mulher bastam para ajudar a encher o carro. E, nesta conclusão herdada dos avós, os nomes de Berta e Crisóstomo saem eleitos pelo acaso da situação, sem que a vida vivida do povo se aperceba dos lampejos momentâneos que dois pares de olhos trocam entre si.
A noite estampa-se vagarosa.
À distância somem-se os últimos vultos dos jornaleiros apressados na lentidão da noite. Presos à vigília da colheita, os enamorados tentam adivinhar nos estalidos invisíveis a aparição de Manel das Domas, sempre teimoso em chegar tarde.
A mordiscar bagos de uvas que rapina da colheita, Crisóstomo fala com voz segura:
— Tenho a tropa feita, sou rico, tenho emprego de futuro, só me falta...
Suspende a frase que Berta cala no peito ardente, sem coragem de o fitar.
— Só me falta… — continuou — só me falta uma companheira honesta, trabalhadora e bonita... como tu.
Berta estremece de emoção e rejeita o elogio com dois gaguejos.
Crisóstomo insiste, agora com voz mais melíflua:
— Sim, como tu. Bem sabes que te amo desde a primeira vez em que te vi.
E, sem esperar a resposta da moça, dela se aproxima abrindo a mão em dádiva de bagos. Unidas as mãos que os bagos esquecem derramados pelo chão, promessas sedutoras saem da boca de ouro em troca de beijos sôfregos.
O crepúsculo da noite paira sobre eles como as asas negras do milhafre. Grilos e cigarras ensaiam a primeira sinfonia noturna.
Depois, num momento de palavras inacabadas a que o silêncio anoitecido completa o sentido, Crisóstomo avança seguro pelo coração da noite, recebendo de Berta trémula súplica de mulher.
Sobre os poceiros da farta colheita, os corpos saboreiam-se no mosto de uvas apetecidas.
Lá ao longe, entre choradeira de rodas, uma luz anuncia gente que se aproxima.
A colheita cumpria-se.


Prémio de Conto Câmara Municipal de S. Pedro do Sul- 1991: Menção Honrosa.

NO SILÊNCIO DA CASA

Prémio Literário Horácio Bento de Gouveia/1994 (Câmara Municipal de S. Vicente - Madeira): 1º Prémio. Nota: Maria da Fonte e O Infinito, juntamente com o conto No Silêncio da Casa, constituem o conjunto de três contos distinguidos com o 1º prémio.
 
 
Avisto ao longe o muro de pedra e cal sob a mancha das roseiras. Sei que a velha casa rural está à minha espera. Telefonei há uma semana pedindo à Ana Catraia para dar um jeito à casa tomando-a habitável. Do outro lado do fio escutei a voz contente, que finalmente ia ver de novo o seu menino. Fora a empregada lá de casa e mantinha boas recordações de meus avós e de mim também. E agora ia eu novamente, depois de longos anos de ausência, ao encontro do silêncio da casa e da paz bucólica da aldeia.
Ana Catraia esperava-me junto ao portão de ferro. O rosto tinha envelhecido bastante, mas o penteado e a maneira de vestir não tinham mudado. Reparo que está corada de alegria, de um tom rosáceo como as flores bem tratadas no pequeno jardim à entrada da casa. Ainda mal saí do automóvel, e já me lança as mãos cheias de afagos maternais. Solta-se de repente, examina-me de alto a baixo, e diz que o seu menino está mais velho, veem-se algumas madeixas brancas, mas de um branco tingido de desgosto. E que só agora reparava, o que era feito da esposa, a senhora dona Sofia? E filhos? Não era já altura de pensar nisso?
Respondo que estou só, que Sofia está a fazer uma viagem muito grande. Fica aturdida com a resposta ambígua, não tem coragem de esmigalhar perguntas. Tiro a bagagem da mala do automóvel, e ela prontamente a leva para dentro. Olho em redor, contemplo as ruas da minha infância e vou arrumar a viatura na garagem.
Dou uma volta rápida pela casa. Não quero hoje reviver nos objetos a memória do passado. Subo ao piso superior, à sala, e abro a portada de acesso à varanda. Neste fim de tarde, a brisa ligeira faz tremelicar as folhas secas do plátano secular erguido à ilharga da varanda. Chegam até mim as exalações agradáveis de uma sopa labrega e de um frango caseiro assado no forno. Lembro-me de descer à adega, escolher uma das garrafas mergulhadas no pó do tempo. Amanhã terei a casa inteira à minha disposição. O seu silêncio será só meu como o silêncio profundo das tardes de sesta em que a casa parecia suspensa no tempo.
A madrugada traz-me um coro de chilreios e um banho de luz sobre o corpo. Levanto-me e saio para o pátio da casa. Ana Catraia não virá tão cedo, prevendo uma manhã de sono. Inspiro o ar fresco da manhã e sinto-me invadido por um súbito apetite de figos pingo-de-mel. A velha figueira estará ainda de pé? Está. Ao fundo do jardim, por detrás da casa, teima em resistir à velhice, mais encostada ao ombro do muro. Solta um leve ranger de ramos, à medida que me aproximo, saudosa dos anos em que eu trepava por ela compartilhando os doces frutos. Provo dois figos pingo-de-mel, ainda doces como a juventude, e passeio ao longo do muro. A passarada esvoaça de árvore em árvore, assustada com os passos do homem que tem as mãos em forma de fisga.
Volto ao pátio. No mesmo sítio de outrora está a casinhota do cão, a lembrar uma outra vida que ali habitou. E lembro-me — é um ladrar apagado, trazido pela brisa distante, que me ecoa nos ouvidos — do Rex perdigueiro que adorava Sofia. Era a ti, Sofia, durante as visitas que fazíamos aos avós nos períodos de férias, que ele se atirava assanhado de alegria, desafiando-te para passeios e correrias pelos montes fora, ávido de dispersão total. Talvez farejasse em ti os odores da natureza, talvez visse nos teus olhos o reflexo de uma perdiz provocadora. Vai, vai com ele Sofia, que eu fico na cozinha a ver a avó entregue à sua geleia especialmente feita para mim; depois, se entretanto não voltares, há um livro que me interessa no silêncio da casa.
Ana Catraia está na cozinha, tenho de te deixar, Sofia. Não quero que voltes desse teu passeio com o Rex. Sabes muito bem que vim aqui à procura do tempo perdido para me encontrar comigo próprio, para recriar um tempo e um espaço que não deves preencher. Mas os objetos atraiçoam-nos: olhamos para eles e há impressões digitais, pedaços de vida que a memória transporta. Esta memória que não me larga, esta pele da vida.
Chegou a hora de revisitar o interior da casa. Cada objeto é um pequeno instante de eternidade dentro de mim: a mobília antiga, o misterioso relógio de cuco, a caixa de costura da avó, as armas de caça do avô e um brinquedo de madeira empenado. Toco nos objetos e o tempo para à minha volta.
Entro no quarto dos avós e contemplo o retrato esmaecido. Falo com os olhos deles durante alguns minutos. Eles sabem que preciso novamente da sua presença, da sua voz, das caçadas no campo e do pão barrado com geleia.
Por último, hesito à porta do quarto de meus pais. Entrar nesta divisão foi sempre, para mim, entrar num mundo estranho e vago. A memória que procuro nos objetos ordenados é imaginada, narrativa construída a partir de vozes dispersas. A única certeza é dois rostos alegres e felizes, cheios de juventude, eternizados no retrato de casamento. A presença dos pais na minha vida teve sempre a forma de uma sombra fugidia. A ideia que fazia de meus pais era a de uma viagem sem regresso.
«Avó, o papá e a mamã? Quando voltam? Nunca mais me vêm buscar, avó?
Fingindo assoar-se, passava o lenço pelos olhos, e respondia: «Estão a fazer uma viagem muito grande, queridinho! Olha, queres pão com geleia?»
Certo dia, entrei no quarto para viajar um pouco com meus pais. Ana Catraia limpava o pó dos móveis. Não resisti a perguntar-lhe: «Ana, quando regressam os papás?» Parou a limpeza e respondeu para dentro dos meus olhos:
«Os papás estão a fazer uma viagem muito grande. Já sabias, não já? Mas vou contar-te um segredo, que fica entre nós: quando fores da altura desta vassoura, os teus pais virão buscar-te. Até lá, tens de ter coragem, fazeres-te homem.»
Contente, sentia os meus pais tão perto de mim, à distância de uma simples vassoura. Efémera ilusão! Com o decorrer do tempo compreendi que a altura da vassoura estava a séculos de distância.
De vez em quando voltava ao quarto. Queria descobrir nas expressões dos pais o fim da viagem. Mas eles estavam sempre alegres, sinal de que a viagem continuava sem fim. Desde esse dia fiquei a saber que viajar é estar em permanente ausência, que viajar é a anulação completa do ser.
Escolhi a varanda à beira do plátano. Nestas tardes de verão sonolento, gosto de me sentir entre o silêncio da casa e os sons difusos que chegam da aldeia e dos campos. Preciso desta terra e destes ares, desta varanda e deste tempo sem relógio. Preciso recuperar a memória da infância para que se sobreponha à do presente. Preciso de recriar outras memórias para acreditar na ressurreição de mim.
Abro o livro que trouxe comigo: No silêncio da casa à tarde, de Fausto Lopo de Carvalho. Decidi comprá-lo no dia da partida. Aconteceu por acaso: ao comprar o jornal na livraria, reparei no título do livro, que logo me despertou o interesse. Ele era aquilo que eu vinha procurar à casa da aldeia: silêncio. Talvez me ajudasse também a encontrar o silêncio interior que tanto busco. Que personagens dariam vida ao livro? E aqui está ele, aberto diante de mim, tal como a tarde inchada de sol. 

No silêncio da casa à tarde, na sombra que as árvores deixavam, na quietude das portas, na solidão da vida parada, tinha ele iniciado aqueles dias de férias. Para ele, só naquele mundo, fresco de vozes e maduro de recordações, se iniciava uma caminhada através do tempo, desse fluir de instantes revividos, nessa transposição no futuro do que de si trazia o passado: paixões, desespero ou indiferença. Nessas férias sem repouso...

No silêncio da casa à tarde, na sombra que a árvore derrama sobre a varanda, descanso o livro sobre o regaço e contemplo distraidamente a montanha erguida na distância. Este outro silêncio que habita o livro ecoa por dentro de mim. Há silêncios que perturbam, que avivam a memória. Não resisto ao impulso de iniciar uma caminhada através do tempo, de percorrer os caminhos que quis deixar para trás. Talvez seja necessário pisá-los uma vez mais para que possam desaparecer completamente da pele da vida. Creio que tenho mesmo de apagar-te a imagem, Sofia!
No silêncio da casa chegam-me instantes de ti. O rumor da tua voz enche a varanda, sinfonia invisível, as palavras crescem claras e límpidas, e o teu corpo floresce inteiro dentro de mim.
Estás quase a falar, são os olhos que te revelam, vais agora mesmo repetir a tua frase mágica: «A vida são viagens!»
Foi, aliás, durante uma viagem que nos conhecemos. Era uma excursão de estudantes finalistas. Eu seguia muito quietinho, sempre no mesmo lugar, quase nem saía do autocarro nos pontos de visita obrigatória. Estranhaste a minha atitude e quiseste saber se me sentia bem. Claro que me sentia? Apenas detestava viajar! A partir desse mo- mento apostaste contigo mesma que serias capaz de me fazer descobrir as maravilhas do mundo, de me fazer sentir que viajar é viver. A partir desse momento começou também a viagem da nossa vida.
Tempos depois, já casados, planeavas todas as férias com entusiasmo pueril.
«Este mês, aproveitamos o feriado de sexta-feira e damos um salto à Grécia.»
Com elegância, descobrias o peito, simulavas uma estátua grega, e exclamavas:
«Afrodite! Gostas?»
Eu tocava levemente o teu peito, simples toque de dedo, quase a medo, e quebrava todo o mistério.
«Não. Demasiado fria. Prefiro a nossa casa, prefiro viajar pelo teu corpo. Amar-te é possuir todas as viagens, todas as férias do Mundo.»
E viajávamos até à última estrela, onde construía o império das minhas férias.
No silêncio da casa, uma brisa ligeira banha-me o rosto de frescura. Tenho o tempo inteiro à minha espera para recordar as nossas viagens, as nossas férias, tempo para reviver o teu nome, a tua necessidade imperiosa de inventar férias, de imaginar viagens; um apelo inexplicável de ir ao encontro do Mundo e fazer das férias o teu rejuvenescimento cósmico.
Meu amor, deixa-me fazer as viagens inesquecíveis, deixa-me fazer-te inteira até à explosão das estrelas.
Era Brasil desta vez.
Quiseste respirar com o pulmão do Mundo e foste árvore, planta e flor, imagem exótica de uma tela impressionista.
Quiseste ser Amazonas e foste caudal lânguido de mistérios insondáveis.
Quiseste ser índia e foste natureza simples e fértil.
«Ah, hoje sou o sortilégio da vida! Férias, para mim, é viajar, é procurar o pó de que somos feitos, é ser universal!»
Cansado de tantas férias peregrinas, apenas desejava possuir as férias do teu corpo. E, ao tocar a tua pele macia, tu eras a aparição de Iracema, tu eras a índia dos lábios de mel.
Meu amor:
Quero ainda recordar África, onde foste gazela das estepes.
Quero ainda recordar Ásia, onde foste muralha da China.
Quero ainda recordar Gronelândia, onde foste esquimó.
Quero ainda recordar Escandinávia, onde foste sol da meia-noite.
E quero ainda recordar todas as viagens, todas as férias, onde foste até à exaustão de ti.
No silêncio da casa, um avião traça o destino no céu azul.
Sofia, partiste para as tuas férias eternas! Partiste numa viagem só tua, sem companhia! Mas partiste com a serenidade de quem leva o Mundo inteiro dentro de si. Eu fico por cá, com a sensação de que o meu corpo aberto a férias, aberto a viagens quiméricas, foi o único local do Mundo que não chegou a acontecer em ti.
No silêncio da casa ouve-se o canto de um pássaro.
Sinto agora que estou preparado para entrar no silêncio do livro. No meu silêncio. Na minha casa.


1. O bloco de texto em itálico pertence ao romance No silêncio da casa à tarde, de Fausto Lopo de Carvalho.