O Infinito


O homem esquecera-se já da data em que abandonara a terra natal. Tinha a certeza de ter decorrido muito tempo: tanto tempo que a vida deixara de ser uma sucessão de anos, meses e semanas, para se traduzir num somatório de dias e noites, sol e chuva, montanhas e vales, e caminhos, muitos caminhos. Porém, o dia da partida, assim como todos os dias da sua vida, estava ainda vivo dentro de si.
 
Nascera no litoral, numa pequena praia de pescadores.
A infância fora para ele um berço de areia com lençóis feitos de água. Do seu canto, aninhado no lastro dum barco abandonado, acompanhava diariamente a faina dos pescadores. Via-os partir, vencendo a princípio a teimosia das ondas, até se perderem na linha do horizonte. Nessa altura, acreditava que o pai e os outros pescadores tinham entrado no céu, sítio onde eles lançavam as redes. Depois esperava o regresso, a aparição lenta, para ver os bois puxar as redes e a aflição dos peixes em saltos de prata. A vontade de ser pescador era do tamanho do barco que tinha na imaginação.
Mais tarde, na escola, aprendera a declamar de cor: Pescador da barca bela, Onde vais pescar com ela, Que é tão bela, Ó pescador! E, com bastante entusiasmo, escreveu, certo dia, uma composição que dizia a sua forte vontade de ser pescador, porque era ao céu que se ia buscar o peixe. Com um sorriso maternal, a professora explicou-lhe a ilusão de ótica, que o mar e o céu estão sempre à mesma distância, nunca se tocam, e que não é pelo mar que se entra no céu.
De regresso a casa, evitou os colegas e desatou em correria até à praia. Contemplou o infinito do mar, mesmo no ponto onde o mar e o céu se beijam, e assim esteve absorto durante alguns minutos. Imaginou tanto céu por cima dele, e sentiu tristeza e desilusão por estar fora do alcance das mãos. Compreendeu então que a distância entre céu e mar era sempre a mesma porque se navegava em plano, porque o mar não tinha subidas nem montanhas. E decidiu que, ao contrário de seu pai, não seria pescador do mar, mas pescador da terra. Teria todas as montanhas do mundo para chegar ao céu.
Mesmo assim, enquanto não sentiu dentro de si um homem crescido, teve de suportar o único modo de vida que a aldeia conhecia. Durante largos anos foi conhecendo a alma do mar. Sabia que a pesca não ultrapassava uma linha imaginária nas águas. Por vezes, interrogava-se ainda acerca do mistério, do desconhecido para lá dessa fronteira invisível.
Certo dia, ganhou coragem e lançou-se ao mar numa pequena embarcação. Remou para lá de todas as barreiras até perder de vista o último sinal existente em terra. Sentiu--se mergulhado num silêncio surdo. Por instantes, firmando a vista num horizonte sem linha, teve a sensação de que céu e mar confundiam-se numa poalha azulada, e que o seu espírito flutuava no infinito. Mas era à sua volta que a realidade se estampava evidente. Da pequena ilha flutuante media a distância incomensurável que o separava do céu. Insatisfeito, navegou rumo ao desconhecido. E, mais uma vez, a realidade repetiu-se. Voltou a terra, completamente esclarecido.
Para ele, o mar era o caminho da ilusão, o caminho que não conduzia ao céu. Para ele, o mar era a infinita prisão.
O apelo de virar costas ao mar, e navegar pela terra adentro, foi crescendo como as marés de inverno.

Aventura-se, agora, a olhar a extensa planície, tão extensa que lhe faz lembrar o infinito do mar. Um esboço de montanha recorta-se no fundo do horizonte, indefinido como um sonho.
De bicicleta, consegue chegar ao topo da serra. Contempla a paisagem que se estende a seus pés e, do alto da sua felicidade, sente pela primeira vez a brisa do céu. Longo tempo está assim extasiado, ave espiritual suspensa no espaço. Mas, subitamente, estranha sensação que se adensa: o céu a encolher-se, a retomar a distância que o separava do mar. Efémero conquistador do espaço, ele desce, desiludido, a serra, e regressa à planície do seu mar.
Precisa de uma montanha mais alta, tem a certeza disso. Uma montanha que o aproxime mais do céu. Uma outra serra, a mais alta serra do seu país, cresce agora dentro de si.
Depois de muitos planos de viagem, chega ao cimo da montanha na tarde fria e cinzenta. A neve estendida pela lonjura é um lençol que convida a vista a repousar nele. Almofadas de nuvens envolvem-no como um hálito densamente vaporoso. E no meio de toda esta brancura, onde o ar límpido é absorvido como éter, ele sente-se borboleta, ele sente pela primeira vez o peso de uma leveza indizível, uma penugem de ave branca suspensa no espaço, e que se dilui vagarosamente até ser o nada palpável, o infinito incarnado. Assim se mantém intemporal até à ressurreição dos sentidos.
Olhando as nuvens que vagueiam levemente, abrindo-se às meiguices da aragem que se levanta, recebe nos olhos a nesga de céu que cresce sobre si. Desperto do sonho, percebe o tamanho da realidade que sobre ele se abate. Conseguira chegar mais longe, quase tivera o céu nas mãos. Sentia-se algo feliz, mas sabia que esta não era ainda a porta do céu.
De todas as vezes que via o mar, sentia logo um calafrio percorrer-lhe o corpo inteiro. Estava farto daquela terra presa ao mar, daquela gente falando palavras salgadas e daquele mar que refletia a miragem do céu. Nem podia vê-lo já; bastava o pensamento para sentir um enjoo profundo.
 
Numa madrugada em que a aldeia se mostrou coberta de flocos de espuma, de uma baba pegajosa, após uma noite de temporal, com o mar a querer inundar a terra, pegou na trouxa e avançou correndo pela planície, nunca olhando para trás, ao encontro da montanha que lhe abriria a porta do céu.
Chegou à aldeia, igual aos milhares de aldeias que conhecera durante a sua vida peregrina. Entrava nelas com desinteresse, instalava-se num canto qualquer, e ao fim de alguns dias, com poucas palavras trocadas, retomava a viagem sem levar consigo uma ideia completa das casas, das ruas, das pessoas, do modo de vida. A importância de um lugarejo qualquer media-se pela distância que o separava do céu. Mas esta aldeia, sabia ele, era a mais importante: a última que em breve deixaria para trás, para finalmente alcançar a montanha do mundo que termina dentro do céu.
Era uma aldeia de casas rudimentares, quase encoberta por uma toalha de neve. A noite começava a derramar-se em manchas escuras e frágeis línguas de luz escoavam-se das frestas dos casebres. Sem pressa, deu uma volta completa à povoação. Sabia que os cães captariam o seu odor; em breve anunciá-lo-iam como pessoa intrusa. Era assim que se apresentava; depois, era só aguardar a ordem natural das coisas. Às vezes, as coisas corriam mal: os cães não ladravam, talvez farejando nele a inofensiva pobreza igual à dos seus donos, ou então eram os próprios moradores que ignoravam os apelos dos cães.
Desta vez, também o silêncio o recolheu. Longe ia o tempo em que a força da idade superava estas situações, bastando tão-somente um pequeno abrigo ao ar livre e uma côdea de broa. Corria-lhe agora nas veias sangue menos fogoso e temia não resistir ao frio da noite. Mesmo às portas do céu, não era agora que iria deitar por terra todo o esforço que despendera ao longo da vida.
No largo da aldeia, descobriu alguma animação numa taberna. Olhou com agrado o crepitar das chamas numa lareira. Foi, aliás, a primeira coisa em que reparou. Só de- pois prestou alguma atenção aos poucos homens, todos idosos, que conversavam à volta de um copo. Miraram-no com alguma curiosidade. Não era frequente a aparição de gente estranha. Tartamudeou santas noites e sentou-se num banco de madeira perto do lume. O dono da taberna serviu-lhe uma tigela de sopa, um naco de pão e um copo de vinho.
Perguntou ao taberneiro se podia ali pernoitar. De madrugada, estaria já a caminho do pico cia montanha. Todos o olharam surpreendidos. E, pela primeira vez, repararam que o velho trazia no rosto as rugas de todas as montanhas do mundo. Um dos clientes esboçou um sorriso incrédulo.
— Amigo, olha para nós. Com esta idade, que mais poderemos desejar a não ser o calor da fogueira e o afago de um copo?
O viajante hesitou antes de responder:
— Sois naturais daqui?
— Até à morte. Somos como as árvores: morremos no sítio onde nascemos sem nunca ter de lá saído.
Por momentos, o forasteiro divisou a forma difusa de um barco a ancorar na sua memória. Imaginou-o a navegar pelo mar infinito e, no entanto, parecia estar sempre no mesmo ponto.
— E nunca subistes ao topo da montanha?
Os velhotes riram-se.
— Para quê? Para ver neve, frio e vento?
— Não. Para entrar no céu
Os copos ficaram suspensos nas mãos. Nunca tal ideia lhes tinha ocorrido. Mas não seria também uma doidice?
— E é assim tão fácil entrar no céu? É só chegar lá acima, à montanha?
— Se esta é a montanha mais alta do mundo, então estamos mesmo às portas do céu. Espero lá chegar amanhã.
Os bebedores não acreditaram. O homem era mesmo maluco.
— Já agora esperamos que a morte nos leve lá. É mais fácil.
E desataram uma ruidosa gargalhada.
O homem que trazia as montanhas do mundo inteiro esculpidas no rosto ignorou a piada e preparou-se para descansar. Esta seria a última noite mais próxima do céu e, por isso mesmo, queria recordar todos os caminhos gravados nos seus pés, todas as montanhas adormecidas na sua alma, e todos os reflexos do céu espelhados nos seus olhos desde que abandonara o barco na sua aldeia natal.
Uma vida inteira gasta em buscas peregrinas até conseguir aproximar-se da montanha mais alta do mundo. Chegar perto do céu não fora tão fácil como julgara a princípio, quando a intensa vontade da juventude vence todas as montanhas. Passou dificuldades e sacrifícios mas nunca desistira de encontrar o caminho certo que o levasse à montanha ambicionada. De caminho em caminho, de povoação em povoação, de montanha em montanha, assim fora escrevendo a vida.
Conhecia de cor os segredos da natureza; a linguagem das aves, dos animais, das plantas, do vento, do sol e da chuva; e também a linguagem do sonho, do amor e do ódio, que existia nos seres humanos. Aprendera a ser mendigo, homem de sete ofícios e, por vezes, ladrão e até assassino. Aprendera, sobretudo, a conhecer-se a si próprio, a ter vergonha, escárnio e asco de si, mas também a descobrir dentro de si nascentes efémeras de amor e felicidade.
Dos instantes de plenitude espiritual, uma montanha ergue-se mais nítida na memória. Acreditou durante bastante tempo que essa era a montanha que lhe oferecia o céu. Nela viveu alguns anos, dela fruiu a entrega do seu corpo erógeno que o fazia atingir o orgasmo cósmico. Acima de si nada mais existia; ele era finalmente o infinito, ele era o sopro original dos confins do universo.
Como sempre sucedia, notava que a montanha se ia desagastando, envelhecendo, perdendo lentamente o contacto com o céu. Quando a erosão era demasiado intensa, sentia a agonia dolorosa da montanha, sentia o desmoronamento do seu corpo até repousar inerte como uma planície. A caminhada recomeçava. Ainda não chegara a hora da montanha que o faria entrar no céu. Eternamente.
Acordou, de madrugada, pujante de felicidade adivinhada. Abandonou a taberna silenciosamente. Lembrava-se agora que não dera pela saída dos homens durante a noite.
Caminhou ao longo da neve, espreitando o corpo altivo da montanha. Sabia que a empresa não iria ser fácil. Sabia que a montanha mais alta do mundo era um corpo que não se abria a qualquer um. Ao fim de duas horas estava apenas a meio do percurso. O cansaço e o frio gélido começavam a tolher-lhe os movimentos. Insistiu na subida, veterano em trilhos invisíveis. Pouco a pouco deixou de se ver a si próprio, tanta era a neve que o envolvia. À sua volta, os arbustos e os rumores eram brancos. O ar que respirava dizia-lhe que pisava alturas desconhecidas. Sentiu-se invadido por súbita e estranha alegria. Apesar de estar exausto, com dificuldades em respirar, retomou a escalada por mais algum tempo. Parou. Notara que caminhava em plano. Teria chegado ao topo da montanha? Limpou os olhos e olhou à sua volta. Tudo branco. De um branco luminoso que cegava. Por cima de si, o branco era ainda mais intenso. E também ele branco, de um branco transparente. Inspirou com dificuldade o ar rarefeito. Sorriu. Sentia-se leve, tão leve que até parecia flutuar.
Estendeu-se no chão: neve sobre neve, branco sobre branco, transparência sobre transparência. Sentia-se volátil e recebia com gratidão a neve que o ia cobrindo. Quando se confundiu plenamente com a montanha, teve ainda tempo para ver um barco a navegar no céu.
 
1994