O RETRATO À JANELA


Foi ontem, meu filho, ao limpar o pó da estante do teu quarto, que senti a fragrância de cravos. Abri a janela e espreitei as rosas e os cravos que não existem no exterior. De súbito, como emergida da escuridão, lembrei-me de que abril estava quase na voragem do tempo. Tenho andado muito esquecida ultimamente. É o porta-chaves que ficou na mercearia, a carta com o cheque na prateleira, o programa de televisão que não vi por ter adormecido no sofá, enfim, tantas coisas miudinhas que preenchem a vida de uma pessoa. Mas esquecer completamente que este é o mês de Abril, ai, isto é que me faz doer bem fundo! Desculpa, meu filho, sabes que não é por mal. É esta inexorável velhice que começa a atraiçoar-me. Ainda agora, olhando-me no espelho, mais não vejo do que uma moribunda de cabelos brancos à espera da viagem final. Todos, todos partiram já desta casa; só resto eu, para cumprir, à minha maneira, o destino que não coube em vós.
Inspirei o aroma das flores que pairava no ar e sorri para ti. Obrigada, meu filho, por esta forma tão subtil de comunicares comigo. Larguei o pano do pó, fiz-te uma carícia no cabelo, aproximei o meu rosto do teu e vi que os teus olhos não tinham perdido ainda a esperança. Não resisti a beijá-los com ternura. Prometo, meu filho, que amanhã estarás à janela, como habitualmente acontece há dezanove anos.
No momento em que sobre ti me inclinava, os olhos de teu avô e de teu pai rogaram-me um pouco de atenção. Reclamaram que também eles mereciam, por direito próprio, figurar no parapeito da janela. Ai esta velhice que tudo me faz esquecer! E esta vista tão cansada que me não deixa perceber a coloração esverdeada dos vossos olhos. É o fim, de certeza; mas prometo, fiquem descansados, que amanhã estarão à janela aberta para a rua.
E nesta noite sem sono, aguardando ansiosamente a manhã, quero conversar um pouco convosco, antes que a memória se apague por completo. Talvez seja a última conversa nesta casa. Pai, fala-me de ti, diz-me a cor verde que trazes nos olhos.
Minha filha, falar de mim é contar-te um sonho breve, um sonho que se dissipou com o nascer do dia.
Era uma madrugada de janeiro de 1891, a última do mês. Acordara incomodado pelos rumores que iam crescendo nas ruas enevoadas do Porto. Abri a janela e sons revolucionários d’A Portuguesa ecoaram dentro de mim. Ao longe, a multidão subia a rua gesticulando vivas à República. Vesti-me à pressa, avisei a tua mãe dos meus intentos, e despedi-me de ti com um beijo. Dormias serenamente com a inocência dos teus tenros meses de idade.
O teu beijo, pai, ainda o sinto sobre mim como o peso gélido do mármore. O teu beijo, pai, foi a despedida que nunca mais me largou até hoje.
Há forças, minha filha, que nos fazem partir à procura de algo indizível. Há forças, minha filha, que nos fazem acreditar que vale a pena oferecer a vida pela conquista de um ideal.
Desci então à rua e juntei-me aos manifestantes civis que acompanhavam o batalhão de Caçadores 9 e a Infantaria 10. Lembro-me de que segui entre o ator Miguel Verdial e o jornalista João Chagas. Das janelas recebíamos expressivos apoios que nos enchiam de confiança e entusiasmo. Chegámos à Câmara Municipal e hasteámos a bandeira vermelha do Centro Democrático Federal. Eram sete horas da manhã, anunciadas por um sino não muito distante. Da janela da Câmara o Dr. Alves da Veiga proferiu um discurso e, logo depois, foram nomeados os membros do Governo Provisório. A República era nossa! Dirigimo-nos à Praça da Batalha, e logo os acordes de A Portuguesa se calaram. Para nosso espanto, a Guarda Municipal esperava-nos de armas em riste. As primeiras descargas caíram sobre nós. A nossa resposta foi imediata. Lutámos com coragem e bravura. Os corpos dos companheiros que iam tombando a nosso lado incitavam-nos ainda mais.
Minha filha, é chegado o instante em que uma bala vem ao meu encontro. Diz-me o epílogo deste episódio, porque é aqui que deixo de ser personagem.
E eu te digo, pai, que o final é triste e desolador. Do número de mortos sabes tu, nem vale a pena falar. Quanto aos vivos, foram julgados e condenados a bordo do vapor Moçambique, do Índia e da corveta Bartolomeu Dias. Mas não desanimes, pai! Mesmo sendo herói apenas por uma manhã, a semente da República ficou lançada para germinar dezanove anos depois, em Lisboa. Lisboa! Dezanove anos! Que coincidência, meu filho! Faz precisamente amanhã dezanove anos que os cravos encheram a nossa rua pela primeira vez.
São vinte anos, mãe!
Ai a minha cabeça! Como o tempo passa! Que pena o teu pai não ter assistido! Sabes que conheci o teu pai no dia da implantação da República? Tinha eu 19 anos! Que coincidência: outra vez dezanove anos!
É verdade, querida! Tempos difíceis e conturbados, esses da Primeira República. Mas éramos felizes. Nada queríamos saber do mundo e da politiquice que grassava pela capital. Só o nosso amor interessava.
Acabaste por descobrir, meu querido, que a vida não era só o nosso amor, que há coisas fundamentais na vida muito mais fortes do que a união apaixonada entre dois seres humanos.
Sim, tens razão. Sabes que sempre admirei a tua capa- cidade de compreender e aceitar os outros?
Sabes quanto me custou essa resignação?
O mesmo preço do destino que escolhi.
E que preço! Só me ficaram os retratos para recordar. Mas continua. Continua, meu amor, a dizer-me a cor verde que te nasceu nos olhos.
Foi com a implantação do Estado Novo que despertei para a realidade. A princípio, ainda acreditei e defendi os seus propósitos. Pouco a pouco, fui descobrindo que há direitos fundamentais que não podem ser negados ao homem seja qual for a fundamentação ideológica.
E a história repete-se, meu querido, novamente na casa de meus pais.
Foi na madrugada de 3 de fevereiro de 1927. A revolução estalou por iniciativa do regimento de Caçadores 9, duma companhia de Infantaria 6 e de duas companhias da Guarda Nacional Republicana. Rapidamente aderiram à sublevação outras unidades militares provenientes de cidades próximas. Numerosos civis armados juntaram-se aos revoltosos.
Acordei sobressaltado com o tumulto que se aproximava da nossa porta. Espreitei pela janela e reconheci a figura do militar Jaime Cortesão. Saltei da cama e despedi-me de ti e do nosso filho com um beijo.
Desta vez, meu querido, não foi só um beijo que me ficou para recordação. A meu lado tinha um filho com um ano para seguir os vossos passos sem voz.
De surpresa, ocupámos rapidamente os edifícios do Quartel-General, do Governo Civil e dos Correios. Tudo estava a ser fácil. Talvez demasiado fácil. Digo-te sincera- mente que adivinhava a aparição das forças governamentais a qualquer momento. Assim aconteceu. Ficámos isolados na Praça da Batalha e duramente combatidos. Este Porto sempre predestinado a revoluções com sangue.
E eu sempre predestinada a sofrer em silêncio a perda dos meus entes queridos! Nem a Lisboa que mais tarde escolhi para viver me trouxe algum sossego.
Não chores, mãe! Tenho muito orgulho em ti e no pai, apesar de nunca o ter conhecido pessoalmente.
Tu conhecia-lo perfeitamente, meu filho! Ao escolheres o teu destino estavas a ser o teu pai. E o teu avô.
Quero falar da cor verde dos meus olhos, mãe.
Queremos. E é com bastante dor que o faço. A tua cor verde é muito mais intensa. A tua cor verde tem o tamanho da tua vida inteira: 48 anos!
A presença dos retratos de meu avô e de meu pai foi sempre um enigma para mim; até ao dia em que tu me explicaste o segredo da tonalidade verde que emergia dos seus olhos.
Estava escrito que tinha de ser assim, repito. Estava escrito que os únicos olhos negros seriam os meus, meu filho! Imolada pelo destino que vós escolhestes.
E eu, mãe? Uma vida inteira de celibato, sem usufruir da alegria de um lar.
A tua família era outra: a da luta clanc1estina.
A família do sofrimento. A família vivendo na sombra da perseguição. A família separada e flagelada em Caxias, em Peniche, no Tarrafal. A família fazendo da dor a força do sonho.
Sonho que acabou por florir. Por te ver feliz, foi o melhor instante da minha vida. Meu filho, fala-me desse dia.
Era Abril e não saía de nossa casa há dois dias, retido por uma gripe. As noites eram lentas e penosas, assombrado por fantasmas que me conheceram nas prisões. Valia-me a companhia da Rádio Renascença nestas noites de insónia e de febre.
Na madrugada do dia 25 de Abril escutei admirado a canção Grândola, Vila Morena, do meu amigo Zeca Afonso. Talvez devido ao estado febril, ou à circunstância descabida em que a canção foi transmitida, sonhei que ela era o anjo anunciador de uma nova era. A partir desse momento não mais desprendi os ouvidos do recetor. Ia à janela repetidamente e espreitava o edifício da PIDE no outro lado da rua. Recebia o seu silêncio pesado e seguro com bastante aborrecimento. Mãe, fugiste do Porto para escolheres uma casa na rua António Maria Cardoso!
Estava escrito, meu filho!
Sintonizava nervosamente todas as estações portuguesas e estrangeiras à procura da boa nova. Às quatro da madrugada o Rádio Clube Português difundiu a mensagem por que tanto ansiara. Não era explícito o teor, mas a canção de Zeca Afonso tinha-me dito tudo. Quis saltar para a rua e tu, mãe, aconselhaste-me a não o fazer. Temias a febre, o frio e o perigo no dobrar de cada esquina. Deixei-me ficar, cada vez mais agarrado ao aparelho. Finalmente, pelas sete da manhã, o RCP confirmava que a revolução era a flor que sempre habitara no meu peito. Ouço ainda nos meus ouvidos o comunicado transmitido nessa noite feita de suspense: «Aqui posto de comando do Movimento das Forças Armadas. Conforme tem sido difundido, as Forças Armadas desencadearam na madrugada de hoje uma série de ações com vista à libertação do País do regime que há longo tempo o domina.» Não resisti a este apelo. Indiferente à doença e aos teus rogos, vesti-me e saí para a rua.
Quando saíste, meu filho, exalavas o perfume dos cravos.
Corri loucamente à procura dos soldados de Abril. Fora personagem principal na luta clandestina; agora, merecia ser figurante na revolução.
Eram dez horas quando senti um arrepio por todo o corpo. Mais do que a febre, era o temor de ver os cravos murcharem na Ribeira das Naus. Houve aqui um choque de forças opostas. Felizmente, resumiu-se a uma pequena escaramuça resolvida a nosso favor. Foi nesta altura que eu vi cravos a nascer nos olhos dos soldados e dos populares.
Depois avançámos para o Carmo cujo objetivo era conquistar o Quartel da GNR. O cerco prolongou-se devido à teimosia dos sitiados em oferecer resistência. Recordo que o capitão Salgueiro Maia soube agir com serenidade num ambiente fortemente marcado pela impaciência e nervosismo dos civis. Olhava-se em volta e a paisagem humana era feita de soldados e populares. Das janelas, as pessoas assistiam sem medo à revolução. Ao fim da tarde, após algumas rajadas de metralhadora, o Governo rendeu-se. Marcelo Caetano saiu do seu reduto. A população podia finalmente, e em liberdade, despejar sobre ele todo o ódio que acumulara durante 48 anos. A revolução estava ganha!
Avançámos depois para a rua António Maria Cardoso. Era preciso romper a última bolsa de resistência. A multidão, aprendendo já a força da palavra liberdade, gesticulava o V de vitória e exigia a rendição dos pides.
Olhei para a nossa casa e surpreendi-te à janela. Tão linda que te vi, mãe, nesse teu ar de flor rejuvenescic1a. Acenei-te e sorriste-me. Atirei-te um beijo e tu correspondeste com um cravo que voou da janela para mim. Fiquei à espera dele, preso à nossa alegria.
E ainda hoje lá estás à espera do cravo que não chegou às tuas mãos, meu filho! Nesse instante, recorda-me a c1or profunda, uma bala disparada do edifício da PIDE foi mais rápida do que o cravo.
O cravo não chegou às minhas mãos mas cobriu Portugal inteiro, minha mãe!
Sim, houve a febre dos cravos durante bastante tempo. Houve o 1° de Maio e outras manifestações cobertas de flores. Eu vinha à janela, nesses anos de intensa comemoração, e recebia no rosto a fragrância de flores. Contente, pegava nos vossos retratos e punha-os à janela, a meu lado, porque a festa dos cravos era muito vossa.
Valeu a pena ter dado a minha vida por um cravo.
Vale sempre a pena lutarmos por aquilo em que acreditamos. Mas, não quero desiludir-te, olha que os cravos começam a murchar. Estão a perder a cor e o cheiro. Abre-se a janela e a rua aparece-nos triste e deserta. O ar que respiramos traz consigo o aroma do esquecimento e da indiferença. Hoje, as flores são outras. Fecho então a janela e fico absorta a olhar para os retratos.
Há que ter esperança, mãe!
Sim, meu filho, mas estou demasiado velha e cansada. Que esperança posso ter nesta idade centenária?
Mãe, sentes a fragrância de cravos que se liberta de mim?
Desde ontem, meu filho! Desde há vinte anos!
Mãe, promete-me uma coisa: enquanto viveres, coloca-me sempre à janela no dia 25 de abril. É preciso que a cidade capte o perfume dos cravos que se liberta do meu retrato. E, quem sabe, talvez um dia consiga apanhar a flor que ficou suspensa no ar à minha espera.
 
in A Ver Navios, 1994

O CASAMENTO


Graça chegou a casa, quase ao fim da tarde, juntamente com o marido, e de imediato se fechou no quarto. Ele que fizesse o jantar porque ela nada mais queria do que um xanax para dormir até de manhã. Vinha destroçada. No tribunal, onde entrara confiante, saboreando já um futuro risonho e livre que se desenhava na sua imaginação, a audiência com o juiz teve um desfecho inesperado para ela.
«Há acordo pré-nupcial?», inquiriu o magistrado a certa altura da novela sentimental. Não esperava esta pergunta, pois esta possibilidade nunca lhe ocorrera, nem antes do casamento nem durante o processo de divórcio. Colhida de surpresa, estremeceu e balbuciou um não. Não havia nada acordado por escrito. Assinaturas, só com palavras faladas.
E com este NÃO chegara a casa desiludida, eufemismo de arruinada e desgraçada, também ironia do seu nome e destino. É certo que a iniciativa partira de si. Ele não se queixava da esposa e muito espantado ficou quando ela lhe declarou que pretendia o divórcio. Na verdade, não vislumbrava qualquer motivo que justificasse a sua pretensão. Nunca lhe faltara com nada, ela tivera tudo com abundância, das coisas materiais às espirituais, passando pelas físicas; enfim, uma vida de rainha que muitas invejavam. Para mais, nunca lhe descobrira um sinal de aborrecimento, de contrariedade ou de fingimento. Graça, no correr do pensamento, considerava que nem tudo estava perdido, ainda havia uma solução para não cair nas ruas da amargura e voltar ao princípio, ou seja, à vida de miséria que levava antes de conhecer o marido. Continuar casada era, pois, a sua única salvação temporária, até melhores dias virem ao seu encontro, em que finalmente estaria liberta do casamento com o empecilho do homem que tinha de aturar e, pior ainda, com quem tinha de se deitar.
Tomou, portanto, um xanax, que rima com relax, e estendeu-se na cama à espera da escuridão total. E nesse torpor que antecede o adormecimento foi obrigada a rever o filme da sua vida, contra sua vontade, já o sabia de cor e salteado, mas ele estava ali, sem ela o pedir, projetado na sua mente, e não havia comando que o desligasse.
Como podia esquecer-se daquela bela tarde de verão na praia fluvial de Vale de Canas? E a palavra bela aqui não tem qualquer conotação sentimental, é apenas uma referência atmosférica, porque era de facto uma tarde esplendorosa de sol e rio à sua espera para ser gozada na horizontalidade letárgica da toalha. Pelo menos era assim que estava previsto quando saiu de casa e para lá se dirigiu sozinha, após a sua melhor amiga e companheira de fins de semana, a divertida Nice, lhe ter comunicado a sua indisponibilidade para esse dia.
Estendida na areia, a poucos metros da água do Mondego, que naquele sítio fazia um lago de águas calmas para logo se precipitar, a uma vintena de metros, por uma vertiginosa queda de água, saboreava de olhos fechados o calor que o seu corpo, coberto de luzidio protector solar, recebia do carinhoso sol. Deu-se o caso, porém, de a certa altura sentir a presença de alguém que a seu lado, no recato da distância decente, estacionava com armas e bagagens. Impelida pela curiosidade, virou ligeiramente a cabeça para o lado e disfarçou a semi-abertura de olhos, o suficiente para ver e não ser vista, enganando-se a si própria, porque há situações, e esta é uma delas, em que o corpo denuncia o pensamento muito antes dos olhos. O que viu deixou-a indiferente e voltou ao seu descanso absoluto, expondo aos banhistas curiosos e cheios de imaginação os soberbos atributos do seu corpo de 25 anos. O homem sentou-se na toalha, olhou uma vez para ela descaradamente, duas pelo canto do olho, esboçou um ténue sorriso labial, e decidiu-se pela leitura do jornal.
Essa tarde não teria história, excetuando a elegância sedutora do corpo de Graça a luzir no areal e nos olhos dos mirones, se acaso não tivesse ocorrido um pequeno mas lastimável incidente. Um petiz de oito anitos, afastado da atenção dos pais e da segurança das águas do rio, preso à boia, ia arrastado pela corrente em direção à queda de água, quando os seus gritos de aflição ecoaram nas escarpas da serra. Os banhistas correram à margem do rio, mas estáticos ali ficaram, sem coragem de meter o pé na água e ir em auxílio da criança. Qual deus ex-machina, o banhista que deixara Graça indiferente levantou-se da toalha, correu para a água, iniciou uma enérgica natação de socorro e, em poucas braçadas, a favor da corrente, alcançou o fedelho quase sobre a linha da queda de água. Aquilo que poderia ter sido uma tragédia, e mais um caso para os jornais explorarem a insegurança das praias fluviais, à falta de novidades políticas ou futebolísticas, foi um final feliz muito aplaudido quando o herói subiu ao areal com o menino nos braços. Por ter sido tão aplaudido, ninguém viu e ouviu uma senhora, com ar de beata, benzer-se e afirmar que tinha sido um milagre de Santo António. Se de Lisboa ou de Pádua, ninguém a questionou.
Esta ocorrência proporcionou aos vizinhos de praia, Graça e Justino Fortes, o salvador, um resto de tarde de amena conversação, a partir da qual nasceu uma amizade e, mais tarde, como se vai ver, muito mais do que isso. De facto, os encontros entre estes dois personagens começaram a acontecer com alguma regularidade, sempre em nome da verdadeira e sã amizade. A vida de Graça e de Justino foi seguindo o seu rumo, tal como as águas do Mondego, e lá chegou o dia em que se acharam namorados após terem medido e pesado convenientemente as palavras. Assistiu-se, então, a um namoro feito de banalidades: cinema, passeios em jardins, jantares em locais públicos, uns beijos fugidios e… stop!... Por inverosímil que pareça, não havia outras ousadias nem atrevimentos, ambos respeitando-se um ao outro, ambos sem coragem de transgredir as fronteiras delineadas por eles próprios.
Assim decorreu o namorico durante largos meses, sempre num ambiente de enlevo tépido e bafiento, até ao dia do casamento. Ele sabia o que esperava dela: uma jovem bonita e atraente, sem estudos e desempregada, por culpa da crise, naturalmente, e que exigia o seu espaço privado e liberdade de movimentos. «Fêmea de jaula, não!», frisara-lhe ela uma vez com convicção. Ele aceitara a condição, resignado, pensando que, apesar de tudo, ela era uma rara e preciosa companhia para a sua vida, que ele caprichava em ter como a uma boneca de ornamentação. Por sua vez, ela sabia o que esperava dele: um homem não muito atraente e careca, mas um verdadeiro companheiro, amigo, confidente e, sobretudo, amparo em todas as aceções da palavra, como atestavam as provas da incalculável fortuna que ele detinha. Mais não esperava dele, pois conseguira a promessa de a deixar dormir em quarto separado, cujo consentimento a deixou maliciosamente feliz.
A primeira noite de núpcias trouxe-lhe o primeiro desapontamento. Despediu-se dele com um beijo na face e desejou-lhe uma boa noite de sono. Foi para o seu quarto, preparada para ter uma noite de descanso, receando apenas que o ouvisse ressonar no quarto ao lado. Quinze minutos depois, já na escuridão do quarto, enquanto fazia contas à vida, de somar, sentiu que a porta se abria e que ele se aproximava da cama. Ficou surpreendida. E, para maior espanto seu, sentiu que ele se metia debaixo dos lençóis começando logo a acariciá-la. Esforçou-se por ser simpática, lembrando-o do acordo celebrado entre ambos e que devia ser respeitado, pois o tinha como um cavalheiro que honra a sua palavra. Do meio do escuro ele respondeu, também com cordialidade: «Querida, nós apenas combinámos que dormiríamos em quartos separados. E prometo que não dormirei nesta cama.» Graça fechou os olhos. Só sentir a pele dava-lhe uma sensação de alergia àquele corpo que a cobria, mas não teve outro remédio senão consentir que a natureza dos corpos agisse por conta própria. No fim do ato, formulou um pensamento positivo, que ele não a incomodaria durante um mês, que não há bela sem senão, e que todos na vida tinham de engolir o seu sapo.
Graça desconhecia que tinha de engolir um sapo bem grande. Logo na noite seguinte ficou a sabê-lo quando o marido voltou a entrar nos seus aposentos. E o ritual repetiu-se. Nessa noite e em todas as outras, com pontualidade, excetuando o domingo, religiosamente dia de descanso, Justino Fortes entrava no quarto, às escuras, para visitar Graça e desfrutar os seus prazeres.
Dois meses após o enlace matrimonial, Graça sentia-se a mulher mais desgraçada do mundo, não conseguindo imaginar a sua vida nesse martírio, entregando-se a um homem que não amava, durante anos indeterminados, pois a morte só é certa quando a vida acaba. Se ao menos ele lhe desse algum descanso, procurando-a somente quando o rei faz anos, ela poderia criar os seus momentos de felicidade, a seu bel-prazer, vivendo uma aventura descomprometida com quem lhe agradasse.
Foi neste quadro conjugal que Graça resolveu pedir o divórcio, cuja audiência em tribunal ditara a sua derrota por não ter celebrado com Justino Fortes um acordo pré-nupcial por escrito. Contudo, esta não era a única pedra que a enfurecia e que a fazia dizer cobras e lagartos da sua vida. O que lhe doía, o que a picava, o que a fazia sentir-se achincalhada era a situação ridícula por que passara no tribunal sem que tivesse aberto a boca para isso.
«Mas agora, diga-me cá, senhor Justino Fortes…» __ perguntara o juiz cheio de curiosidade e perplexidade __ «Como consegue essa capacidade de visitar todas as noites a sua mulher? Toma Viagra?»
E ele, inchando o peito: «Nada disso, senhor doutor juiz! Eu tenho 70 anos! Mas, para mim, idade não é velhice.»
 
2010