OS FILHOS DE SALAZAR (2)

Este romance começa com a Revolução de 28 de Maio de 1926 (que pôs termo à Primeira República Portuguesa, implantando-se uma Ditadura Militar, depois autodenominada Ditadura Nacional e por fim transformada, após a aprovação da Constituição de 1933, em Estado Novo) e termina com a Revolução dos Cravos. O leitor toma contacto com Salazar, um catedrático da Universidade de Coimbra, que se torna Ministro das Finanças da Ditadura Militar e, como todos sabemos, acaba como chefe do governo do Estado Novo. Salazar e outros amigos e colaboradores, incluindo o cardeal Cerejeira, são-nos apresentados nos serões de outro catedrático, Leandro de Albuquerque, entrando assim o leitor numa certa intimidade dessas personagens.

Na casa do Professor Leandro de Albuquerque crescem duas crianças: Mariano, filho biológico do catedrático, e Mariana, filha adotiva, que ficou órfã de pai ainda antes de nascer, depois de mãe, e cuja família era vizinha dos Albuquerque. Não se pense, porém, que houve apenas altruísmo no ato de adoção. Leandro de Albuquerque desconfia ser o pai da rapariga, pois tivera um caso com a mãe dela.

Mariano e Mariana desenvolvem carácteres muito diferentes. Ele é o filho obediente que se torna padre e defensor do regime. Nesta atitude, contudo, encontramos mais ingenuidade do que ideologia fascista. Mariano acredita nas boas intenções de Salazar em proteger o povo português. Ele próprio tenciona ajudar essa gente pobre, que trabalha de sol a sol, participando nas atividades de lavoura da sua paróquia, uma pequena localidade do interior, o que aliás causa estranhamento aos seus habitantes. Com o passar dos anos, porém, Mariano apercebe-se dos verdadeiros contornos da ditadura, o que o revolta.

Achei esta personagem muito interessante, porque, na verdade, ao tempo do Estado Novo, os portugueses não se dividiam exclusivamente entre os que eram contra e a favor da ditadura. Havia uma grande parte da população conivente com o regime devido à ignorância ou à ingenuidade, facto que me parece pouco explorado na literatura nacional.

Mariana é rebelde desde o início, leva uma vida libertina, contesta a ditadura e acaba por ser expulsa da casa dos Albuquerque. Instala-se numa pequena quinta que herdou da mãe, mas a sua cooperação em atividades consideradas subversivas leva-a a Caxias.

António Breda dá-nos assim um retrato do Estado Novo. Na minha opinião, contudo, depois de uma primeira metade excelente, o romance envereda, na segunda metade, por um enredo menos empolgante, pois, na fase de destruição das ilusões dos protagonistas, confesso que esperava outro tipo de atitude por parte deles. Enfim, talvez assim esteja mais em conforme com a vida real…

Cristina Torrão, Andanças Medievais.



OS FILHOS DE SALAZAR


Tudo começa com um mistério, na noite em que o avião do major Reinaldo Varela se despenha no rio. Por acidente ou propositadamente? Ninguém sabe ao certo, ainda que haja quem tenha as suas teorias. Pouco depois, o país muda com o golpe que dá origem ao Estado Novo, e as regras da moral e dos bons costumes tornam-se ainda mais estritas. E, enquanto uns as aceitam sem hesitar, outros há que insistem em revoltar-se, da maneira que lhes for possível. É neste ambiente que crescem Mariana e Mariano, em tudo opostos. Ela, teimosa e rebelde, decidida a afirmar o seu direito à independência. Ele, piedoso e bem comportado, pronto a dedicar a vida a Deus. Só que a vida nunca é só o que planeamos e as escolhas de Mariana e Mariano levá-los por caminhos inesperados... mudando tudo o que julgavam ter como certo. 
Centrado, até certo ponto, no percurso de vida dos dois protagonistas, mas, acima de tudo, no retrato de um tempo e das mentalidades então vigentes, este é um livro que, mais que por grandes acontecimentos, cativa principalmente pelas pequenas coisas. Sim, há grandes pontos de viragem na história, momentos dramáticos de graves consequências, mas, no fundo, são as pequenas mudanças e as percepções graduais que ditam o rumo da história. E isto é interessante precisamente porque, além de Mariano e Mariana, fica-se com uma ideia muito clara do que poderia ter sido viver naquele tempo.
Nem sempre é fácil gostar das personagens. Não parece sequer que seja esse o objectivo. Isto porque reflectem em grande medida o espírito da época e, assim sendo, é difícil simpatizar com certos pontos de vista que, por estarem associados a personagens relevantes, vão sendo vincados ao longo do enredo. Mas estes pontos de vista servem um objectivo, pois permitem ver a progressiva mudança de mentalidades. O pensamento de Leandro de Albuquerque não é bem o mesmo de Mariano e, quanto a este, a evolução é claríssima. 
Quanto ao percurso dos protagonistas, sobressaem dois aspectos: primeiro, a forma como, através deles, é possível ver as duas formas de encarar o regime, com submissão ou rebeldia. E depois, a forma como a vida e os acontecimentos mudam a firmeza das suas convicções, levando-os a seguir caminhos diferentes e até mesmo opostos às ideias iniciais. Nem sempre é fácil compreender estas mudanças e, na fase final, fica a sensação de uma passagem algo apressada, principalmente no caso de Mariana. Ainda assim, não deixa de ficar uma ideia em mente: nem sempre as certezas absolutas são assim tão absolutas.
Cativante, bem escrita e sempre agradável de ler, trata-se, portanto, de uma história que é, ao mesmo tempo, a do crescimento dos seus protagonistas e o retrato da época em que estes se movimentam. Uma boa história, em suma, e uma boa leitura.



ENTREVISTA AO "ARDINAS 24"

Por Gonçalo Esteves Coelho

António de Oliveira Salazar foi, durante décadas, o pai de todos os portugueses – dos que o veneravam e dos que o odiavam. É sobre os filhos do ditador, não os de sangue, mas os de espírito, que se centra o novo romance de António Breda Carvalho, que o ARDINAS 24 entrevistou.

Ao lado das personagens históricas do regime, como o próprio chefe de governo ou o Cardeal Cerejeira, saltam à vista as personagens Mariana e Mariano, completamente diferentes entre si mas filhos do mesmo projeto social e político. Todas elas vão compondo Os Filhos de Salazar, uma obra que apresenta um olhar transversal sobre um dos períodos mais marcantes da História de Portugal.

O ARDINAS 24 conversou com o autor desta obra, recentemente editada pela Saída de Emergência, para perceber a ideia que esteve na base do romance.

ARDINAS 24 – De onde vem o seu gosto pela leitura e pela escrita?
António Breda Carvalho – São sortilégios cuja génese ainda não desvendei. Falta-me tempo para isso e receio apanhar uma grande desilusão. Gosto de ler, gosto de escrever e gosto de tantas outras coisas. Assim se ilumine cada dia meu até ao fim da minha condição humana.

O seu novo romance centra-se no Estado Novo. Sente particular curiosidade por este período histórico? Porque é que o escolheu?
Sinto curiosidade histórica por todos os períodos, alargados ou restritos, que sustentem um romance com ideias válidas. Aconteceu com O Fotógrafo da Madeira (prémio literário João Gaspar Simões em 2010), cuja ação se passa em meados do século XIX, e com o romance Os Azares de Valdemar Sorte Grande, que se centra na passagem da monarquia para a república. Os Filhos de Salazar, abarcando o período entre o 28 de maio de 1926 e o 25 de abril de 1974, completa a trilogia histórica.

Há uma forte componente histórica neste livro. Como se processou a pesquisa e o recolher de documentação para conferir veracidade à história?
Pesquisa bibliográfica na Internet e nas bibliotecas públicas combinada com os conhecimentos que a minha memória foi armazenando ao longo dos anos, fruto de múltiplas leituras e de outros meios de aquisição cultural.

A narração aborda um período histórico ainda muito recente e que ainda tem feridas por sarar… Foi fácil escrever sobre o Estado Novo? Que dificuldades encontrou?
Depois de ter selecionado os factos históricos que considerei relevantes para representar o Estado Novo e os seus opositores, e depois de ter conseguido ajustar, através de um plano, os elementos ficcionais a essa moldura histórica, ficou apenas a aliciante tarefa de construir o romance ao sabor da imaginação, não perdendo o horizonte da ideia nuclear da obra.

Sentiu maior responsabilidade por escrever sobre um período que tanta gente viveu e do qual há tantas memórias?
Não. Apenas a responsabilidade de escrever um romance que merecesse ser publicado. O espectro ideológico do romance permite que cada leitor que viveu com consciência política no regime salazarista se reveja na obra à imagem de si próprio, quer como um filho que amou o pai da pátria, quer como um filho que o odiou.

Muitas personagens históricas estão presentes nesta obra e surgem de uma forma mais informal, como é o caso de Salazar ou do Cardeal Cerejeira. Como se sentiu por estar a desconstruir estas personalidades e a reconstruí-las de uma forma alternativa?
O escritor é um deus omnipotente. Manipula as personagens a seu bel-prazer, brinca com elas, sabendo conservar a identidade ideológica das personagens históricas.

As duas personagens principais, Mariana e Mariano, partiram de pessoas reais ou foram totalmente concebidas por si?
Criei estas duas personagens para as fazer atuar no poder político instituído e na oposição, embora Mariana seja também o símbolo da mulher que pautava a sua vida à luz de valores que transgrediam a moralidade conservadora.

Existe uma clara diferença entre as duas personagens, que se posicionam em extremos opostos no que diz respeito à forma como encaram a vida. Pessoalmente, com qual delas o António se identifica mais?
Estou no meio, de mãos dadas a ambas, com simpatia pelo Mariano humanista e admiração pela Mariana corajosa.

Está a escrever sobre um regime autoritário num momento em que a Europa parece estar a caminho de regressar a esse modelo político… Como vê o panorama político atual?
Diz-se que a História gira em espiral. Não admira, portanto, que, ciclicamente, se assista ao renascimento de movimentos fascistas gerados no turbilhão de acontecimentos de variada índole que desequilibram política e socialmente um país ou mesmo um continente. Creio que só um descalabro colossal a nível económico geraria as condições favoráveis à emergência de um ciclo político como o que marcou a Europa no século XX. Contudo, parece-me grave também que, sob o manto diáfano da democracia, impere, cada vez com mais evidência, a neoditadura.

Deixa-se influenciar também pela atualidade no momento em que olha para o passado?
Deixo-me influenciar, com a devida filtragem crítica, por tudo o que possa contribuir para me melhorar enquanto pessoa e cidadão. O passado tem coisas boas e más, tudo serve de exemplo para que o presente tenha consciência do melhor rumo a seguir.

Acha possível existir, no futuro, um novo Estado Novo, em Portugal ou na Europa?Teoricamente tudo é possível.

Qual é a principal mensagem que quer passar com este livro?
Assim como um país muda de regime político (Portugal: monarquia – república democrática – república fascista), também as pessoas mudam ao longo da vida, nada é definitivo. É um romance sobre revoluções. Começa e acaba com uma revolução, e as duas personagens principais também se revolucionam, ficando a incerteza quanto ao seu futuro no fim do romance. Acontecerá outra revolução?

É fácil conciliar o seu trabalho de professor com a escrita?
Com a classe docente cada vez mais sobrecarregada com trabalho letivo e burocrático, só a paixão pela escrita e a boa gestão do tempo disponível, com sacrifício de outros momentos de lazer, permitem a concretização dos projetos literários.

Os seus alunos são conhecedores das suas obras?
Sabem que escrevo e conhecem os títulos publicados. Dado serem alunos do 3.º ciclo (do 7.º ao 9.º ano), ainda não se sentem preparados para ler os meus romances.

Que feedback o público lhe tem dado?
Dos leitores que se relacionam comigo e de alguns blogues literários tenho recebido boas apreciações.

Tem novas ideias em mente, histórias que quer partilhar com o público?
Tenho romances inéditos na gaveta e ideias para novos romances. O tempo fará, sem urgência, o meu percurso literário. Se não o fizer, morrerei com a mesma felicidade que sinto neste momento.

Onde vai buscar inspiração para as narrativas que constrói?
Por vezes um romance nasce de uma ideia ou tese, outras vezes de factos históricos, outras do quotidiano, que rivaliza com a literatura em imaginação.

Tem algum escritor que seja uma referência para si?
Vergílio Ferreira foi, durante décadas, o meu escritor preferido. Hoje aprecio sobretudo boas obras literárias, dos clássicos à atualidade, independentemente do autor. É a obra de arte literária que me interessa.

A LEITURA DA FERNANDA



Quem me conhece sabe que adoro ler histórias cujo pano de fundo seja Portugal de 1920 a 1975. Não sei bem de onde vem esta minha predileção. E se calhar até sei. Filha de pais já maduros, (quando nasci a minha mãe tinha 42 anos e o meu pai 47), sei que devia ter nascido uma geração mais cedo, daí que adore conhecer melhor essa época.
E realmente, como não podia deixar de ser um livro com este título - Os Filhos de Salazar - o livro de António Breda Carvalho, aborda o Portugal de 1928 até ao 25 de abril.

A capa é lindíssima, não concordam? E acreditem, bastante representativa! :)

Mariana e Mariano são duas crianças que crescem como irmãos, apesar de não o serem, no lar de Leandro de Albuquerque, um catedrático nacionalista cuja casa era frequentada por nomes sonantes como o Cardeal Cerejeira (aliás, padrinho de Mariano) e António de Oliveira Salazar.

Mariano cresceu para vir a ser padre, e a sua história foi para mim muito mais interessante do que a de Mariana, apesar desta ser tão inspiradora como esclarecedora. A escolha patriarcal de Mariano levou-o a uma aldeia nos confins de Portugal - Rio Calmo - que veria as suas águas bastante agitadas pelas iniciativas do Padre Mariano. Mariano colocava o bem estar do povo acima de tudo e todos com Deus a vigiar.
Com o passar dos anos, Mariano abriria os olhos para a realidade da vida, e entenderia que as pessoas que ele achava serem os "salvadores da pátria", não o eram, bem pelo contrário. 

Iludida, foi coisa que Mariana nunca esteve, facto que a levou a provar diversos dissabores pela sua vida fora. Essa jovem considerada por muitos como uma verdadeira estouvada e libertina, mau exemplo para a mulher portuguesa da época, é também ela considerada "filha de Salazar", já que foi nessa época que cresceu e se tornou adulta. Mariana é um exemplo um pouco exagerado para as jovens que se insurgiram contra o sistema e em defesa dos seus direitos, e que tal como muitas acabou por aprender que a liberdade tem um custo por vezes demasiado caro. 
Tenho pena que o autor não tenha desenvolvido um pouco mais a história de Mariana. Soou-me um pouco superficial demais, bem ao contrário da de Mariano.

Gostei imenso desde livro e da escrita do autor, que já conhecia desde O Fotógrafo da Madeira, leitura que também adorei. Fiquei a conhecer um pouco mais sobre esta época que me fascina. Adorei! 

Muito obrigada António Breda Carvalho! Aguardo ansiosamente por mais publicações suas. :)

http://as-leituras-da-fernanda.blogspot.pt/2016/07/os-filhos-de-salazar-de-antonio-breda.html



OS FILHOS DE SALAZAR


SINOPSE

Tudo começa em 1926 quando o avião do major Varela se despenha misteriosamente no Mondego. Terá sido suicídio ou acidente?

Os Filhos de Salazar conta-nos a história de Mariana e Mariano, dois jovens que crescem juntos mas seguem percursos opostos na vida. Se ela se transforma numa mulher libertina que desafia tudo o que é sagrado para o fascismo e para a Igreja, já ele segue as pegadas do pai, amigo íntimo de Salazar e do cardeal Cerejeira.
É acompanhando as suas vidas que assistimos a um retrato vívido do Portugal do Estado Novo: de um lado os representantes do poder, os cidadãos fascistas e a temível PIDE; do outro os inimigos do regime, incluindo os comunistas na clandestinidade.
Mergulhados neste conflito Mariana e Mariano, com vidas, morais e ideologias tão incompatíveis, encontram-se e desencontram-se. O destino reserva-lhes uma surpresa que vai mudar as suas vidas. Mas quem vai sofrer a maior mudança é Portugal.

LOGO À TARDE VAI ESTAR FRIO



Tive o privilégio de ler esta novela ainda impressa em A4, e agora, numa segunda leitura, decorridos dois anos, o gosto foi superior, como se outro néctar os meus olhos tivessem decantado, ou talvez a minha sensibilidade literária esteja menos rude e, portanto, mais recetiva a textos cuja matriz é essencialmente poética, onde se inscreve a assinatura autoral de António Canteiro, com obra premiada que tem sido publicada pela Gradiva.

Logo à Tarde Vai Estar Frio inspira-se na vida e obra de António Nobre, com a ação da segunda das três partes que estruturam o texto centrada no enredo amoroso entre dois jovens académicos, um século após o autor de , cuja temática do sofrimento e do desencanto, à luz da doença que constitui um dos grandes estigmas da atualidade, se articula com o espectro social que, no tempo de Nobre, se impunha com a mesma implacabilidade: a tuberculose.

O tom da narrativa é, à semelhança do poeta que habitou a Torre de Anto, melancólico e imbuído de algum subjetivismo, conferindo, deste modo, autenticidade ao discurso enquanto recriação da alma poética do autor homenageado, firmando António Canteiro, todavia, a sua voz inconfundível, singular e pessoal, de obra para obra mais consistente e mais amadurecida, já ao nível de autores sobejamente badalados.

Logo à Tarde Vai Estar Frio foge ao paradigma convencional relativamente ao desenvolvimento da diegese, que nesta novela ocorre em segundo plano, parecendo uma história sem história, colando-se aos olhos do leitor uma vasta coleção de quadros descritivos, onde reina a contemplação e estados de espírito, podendo as telas pictóricas e sentimentais funcionarem como peças autónomas, poemas que se leem melodicamente e cuja musicalidade perdura no ouvido, como é o caso do exemplo que aqui transcrevo, para terminar, o qual, na minha opinião, tem ecos de Eugénio de Andrade.



«Deixa-me voltar ao teu ventre, mãe!, viver cada minuto dentro do teu corpo molhado, mãe!, sabes do mar, e dos corais, e das estrelas do mar, e dos búzios, e da luz da lua, mãe!; recordo que disseste, um dia: vou, ali adiante, à Cova, António, e volto já, e, até hoje, não voltaste! porquê, mãe?, ainda queres que eu volte ao teu ventre!, agora e na hora da nossa morte? Ámãen!...»

As agruras de vida no século XIX na Madeira




As agruras de vida no século XIX na Madeira

João Abel de Freitas, Economista



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O Fotógrafo da Madeira de António Breda Carvalho é um grande livro, uma análise ampla e carregada de vida social, económica, política e religiosa do século XIX, com resquícios bem presentes ainda hoje, de que relevo sobretudo a intolerância.

Não pretendo ser um crítico literário, porque não sei. Mal distingo os géneros literários.

Então o que deixo aqui neste pequeno texto são impressões que colhi ao olhar para este livro e não análises de natureza estrutural ou comparativa, próprias do crítico.

O Fotógrafo da Madeira é um romance, assim o classifica o autor, “feito de ficção e de História” e acentua: “a ficção, pela sua própria natureza, dispensa qualquer aviso ao leitor. A História, por sua vez, entranha-se na ficção. Pertence à História o tempo, o espaço, alguns factos e algumas personagens. É aqui que entra o aviso ao leitor: não confundir personagens de papel com personagens reais.”

Apesar do aviso ao leitor para não confundir as personagens de papel com as reais, a História a sério da Madeira do século XIX, nos seus múltiplos desenvolvimentos, perpassa todo o romance e está bem entranhada no seu enredo, bem atractivo.

Uma História contada de forma aliciante que nos entusiasma. Bem mais rica e abrangente do que em qualquer compêndio. As personagens que a fazem desempenham papéis múltiplos na vida do dia-a-dia.

Assim se passa com a personagem mais em foco no romance, Afonso Elias Ayres Drumond, o madeirense estrangeirado, saído da Madeira aos 12 anos para estudar em França, por vontade de seus pais que não pactuavam com a intolerância reinante no ambiente madeirense: “não o quero ajoelhado à política desta ilha”, dizia o seu pai no diálogo com a mãe quando discutiram a ida do filho para fora da Ilha, reagindo assim ao ambiente antiliberal vigente e acerrimamente hostil às ideias que professavam. Eram marginalizados, só não o eram mais, por serem um casal de posses. Tinham a Quinta da Colina, de grande sucesso nos negócios do vinho Madeira.

Este madeirense, depois de uma vivência parisiense, permissiva e tolerante e com já algum nome na advocacia local, regressa aos vinte e poucos anos para gerir a Quinta da Colina. Regressa como cônsul francês para a Madeira, e com hobbies pouco habituais para a Ilha. É amante da fotografia (algo de novo na Madeira) e da pintura.

Depois de montar o consulado nele admitindo como sua secretária, a Laura, filha do encarregado da Quinta da Colina, o que choca a sociedade local (mulher num emprego de homem, mulher no emprego a sós com um homem), logo aqui não escapa a aleivosias num jornal do Funchal, o que leva Laura a abandonar o cargo por vontade própria. Mas Laura não fora admitida por favor. Tinha competência para o desempenho das funções. Tratava-se da filha do encarregado mas bem preparada. Tinha sido educada pela mãe de Afonso, deduz-se educada como se fosse sua filha. Expressou nela a ausência do filho.

Afonso Elias era uma pessoa dinâmica. Ao sair Laura do seu alcance e por não a querer perder, constitui a primeira casa de bordados virada para os mercados externos e entrega-lhe a gestão deste investimento inovador.

Mas Afonso Elias não fica quieto. Desenvolve outras iniciativas de carácter social e de promoção da Ilha. Entre elas a iniciativa dos postais sobre as belezas e actividades da Madeira, a partir da sua arte fotográfica de onde retira dividendos, aplicando-os nas iniciativas sociais.

Esta dinâmica desagrada às forças vivas da Terra. São ideias revolucionárias como insinuam. São influências de França, despropositadas no meio madeirense. Aliás, o cônsul pelo passado de seus pais é, desde o início, uma pessoa non grata, apenas tolerada.

É interessante como o livro se vai desenrolando. Para além de diversos ingredientes fortes do romance que envolvem a comunidade inglesa e o seu fechamento, o romance vai tocando todos os pontos importantes da sociedade madeirense.

É a economia onde o vinho e os bordados são tratados por contraste ao que predomina. Chegam elementos inovadores de mercado e produção. São as relações sociais de produção sobretudo no campo onde se contrasta a grande questão da colonia com as relações vigentes na Quinta da Colina, onde os pais do cônsul tinham dando um passo em frente com o estabelecimento das relações capitalistas - trabalhadores assalariados com vencimento fixo. É a emigração sobretudo para Demerara, a nova escravatura branca com os engajadores a ganharem fortunas. É o turismo onde os hotéis da cidade começam a surgir e onde se vinca a vontade de investimento no sector.

As forças vivas, “os políticos”, governador, presidente de câmara, bispo, apontam-lhe essas ideias de revolução, aliás insinuando que “quem sai aos seus não degenera”.

Mas o grande problema surge com a igreja, ou melhor com o entendimento (igreja-políticos) na perseguição a Robert Kalley, radicado na Madeira há alguns anos e defensor do calvanismo. É o cúmulo da intolerância e da malvadez.

Afonso Elias, que não praticava nenhuma religião, era tolerante com os seguidores de Kalley, até porque os pais de Laura e a própria Laura eram praticantes.
Havia arruaceiros comandados por um tal Cónego Teles de Menezes que “com o apoio tácito do governador” faziam batidas “a lugares reconhecidos como covil de protestantes” e os que não conseguiam fugir “eram espancados e apedrejados”.

Estes arruaceiros até cercaram a casa de uma súbdita inglesa não anglicana adepta de Kalley numa tarde em que um grupo, na maioria mulheres, estava reunido em oração. A súbdita apresentou queixa ao cônsul inglês que para não desagradar ao governador e à igreja madeirense nada fez.

A provocação desenvolve-se em crescendo até que chega o dia de São Bartolomeu madeirense, onde todas as arruaças foram cometidas, designadamente a invasão do Funchal com o ataque e uma grande mortandade de pessoas.

Muita gente conseguiu fugir da Madeira entre eles o pastor Kalley e Laura.

Afonso Elias não assistiu a esta tragédia pois tinha sido chamado a Lisboa pelo governo.













ANTÓNIO BREDA CARVALHO versus ANTÓNIO TAVARES e o Humor nos novos romancistas portugueses

Sou apenas uma leitora. E nem mesmo uma leitora plenamente conhecedora da obra de António Breda Carvalho e António Tavares.
É pois, da minha experiência de “OS AZARES DE VALDEMAR SORTE GRANDE” (Breda) e de” O CORO DOS DEFUNTOS” (Tavares) que me proponho comentar e aguçar o desejo e apetite dos leitores.
Em ambos os escritos me parece estar presente a herança a que se convencionou chamar “realismo mágico”, cujo magíster foi Gabriel Garcia Marquez , tendo como expoente máximo, “Cem anos de solidão” . Em Tavares, olha-se a realidade com vestes de imaginário para desenhar um mundo já ido e tão distante de uma realidade coeva, dita moderna. Em Breda, toda a narrativa joga com o inverosímil que de repente se torna real e vice-versa.
Duas formas distintas, em termos de estrutura: Em Tavares, os quadros, os capítulos breves, como forma de prender o leitor, cada vez mais apressado e voraz. Em Breda, o romance extenso a provar que também ele pode prender esse leitor, pela trama que se sucede.
Ambos os escritores têm consciência do forte peso do passado literário e de como é difícil inovar e prender, seduzir o leitor.
Em Tavares esse peso é invocado diretamente, através da convocação expressa da obra de Aquilino Ribeiro. Nomeadamente, do seu vocabulário que constitui glossário a consultar no final do livro. Mas, se o leitor não o fizer, encontrará aquele discurso que lembra um texto truncado de vogais, mas que o cérebro humano lê normalmente como se estivesse completo. Ironia: se não consulta o glossário, o leitor entenderá perfeitamente a prosa do romancista; se o consultar, terá o prazer de revisitar a prosa de um outro a que a língua tanto deve, mas que tal como mundo retratado já não é visível e inteligível hoje, a não ser através da literatura.
Em Breda, a literatura e a sua história são incorporadas no novo discurso e é ao peso da crítica literária que ele se dirige. Essa crítica, o leitor privilegiado, tem até um nome: “Judas”… A quem amiúde interpela: “...outra metáfora, Judas…”; “… Não quero massacrar-te” com uma dada descrição; “Já te disse, não falo para encher farinheiras”; “Consola-te com os milhentos romances que esgotam páginas dissecando a vida infantil das personagens.” Em Breda não podemos escapar à reiterada intenção de brincar, desabafar, desafiar um leitor privilegiado.
Em Tavares, é um narrador que se nos apresenta como “Diz ela”, no feminino, que vai contando e se responsabiliza pelos factos narrados. Por mais curiosidade que nos desperte esta narradora, aquela não será satisfeita, a não ser saber que “estudou filosofia”.
Como afirma a teoria literária, a escrita é arte e é labuta. Sem dúvida que tal se aplica a estes novos romancistas. Mas, o que mais sobressai é o enorme prazer e gozo que essa labuta proporciona ao escritor, visível no humor da sua escrita, ao mesmo tempo que se exorcizam fantasmas do presente e do passado, do eu interior e do eu colectivo.

Teresa Miranda