APRESENTAÇÃO PÚBLICA DE O CRIME DE SERRAZES


O CRIME DE SERRAZES

Palavras do autor


Sou natural da Mealhada e residente na mesma cidade, não tenho qualquer ligação ao concelho de S. Pedro do Sul, nem a Serrazes, nem à família Malafaia, e, por estes motivos, com toda a legitimidade podereis perguntar por que razão me interessei pelo crime de Serrazes para o transformar em romance.

Imaginando que, efetivamente, a pergunta acaba de me ser colocada, respondo que, na verdade, o meu primeiro romance, As Portas do Céu, inspira-se na história do convento de Santa Cruz do Buçaco, onde durante 234 anos, do século XVI ao século XIX, habitaram os monges carmelitas, fruindo nesse paraíso terreal as delícias espirituais. Quero dizer, com esta informação, que é muito comum os escritores privilegiarem, em primeiro lugar, a sua pátria regional, que é o cantinho geográfico onde pulsa o coração e onde os pés se firmam como raízes. Exemplos de escritores telúricos há com abundância na história da literatura portuguesa, nomeadamente o transmontano Miguel Torga e o gandarês Carlos de Oliveira, duas referências de topo nacional, embora tenha de esclarecer que, no caso de As Portas do Céu, não se trata inequivocamente da relação entre o homem e a terra, mas de um património histórico-cultural de carácter religioso fundado no meu concelho, que sentimentalmente me convocou, enquanto escritor, para a sua elevação literária, à semelhança da farta inspiração que o Buçaco despertou nos poetas e prosadores ao longo dos séculos, sobretudo no período do Romantismo, quando a Natureza, com todo o seu deslumbramento, se tornou um tópico recorrente na literatura.

Devo dizer, contudo, que nem sempre a literatura de incidência regional é obsessão ou aposta dos escritores, e no que me diz respeito, à semelhança da maioria, não me considero um escritor enraizado, sou pássaro que voa livremente, abrindo as asas à universalidade das paisagens, dos sítios, dos temas, de tudo o que alimenta a criação literária, porque tudo, onde quer que a ação se localize, no meu quintal, em Serrazes ou numa grande cidade, é universal no que concerne à natureza humana.

Corroborando este raciocínio, digo que em 2012 foi publicado o meu segundo romance — O Fotógrafo da Madeira, vencedor do Prémio João Gaspar Simões, instituído pela Câmara da Figueira da Foz. Do Buçaco voei para a ilha da Madeira, aterrando no ano de 1843. Uma história com base em factos reais que, embora se enquadrando num tempo antigo, permanece atual na fotografia que faz da sociedade, dos esplendores e misérias que caracterizam as pessoas e que refletem a dimensão universal da alma humana.

Compreendido está que, na minha opinião, os acontecimentos históricos não têm dono, não têm registo de propriedade privada, a todos pertencem independentemente da distância geográfica ou afetiva, todo o património material ou imaterial é barro que as mãos dos criadores moldam e transformam em objetos de arte. Eis, portanto, o fundamento da minha incursão literária nos anais do crime de Serrazes ocorrido há cem anos.

Agora admitamos que sou confrontado com outra pergunta, tão legítima como a primeira: se sou da Mealhada, tão distante de Serrazes, se não tenho qualquer ligação à região de Lafões e à família Malafaia, como descobri a documentação acerca do crime que é o motivo de estarmos aqui reunidos hoje?

Tenho a certeza de que, se não existisse um recurso chamado Internet, dificilmente teria chegado à notícia da tragédia que vitimou Augusto Malafaia no dia 26 de julho de 1917. Para mim, viajar no universo do Google é como estar na Torre do Tombo a pesquisar informação histórica. Assim aconteceu, de facto, durante um passeio virtual por solares abandonados. Há centenas no País, e fascina-me imaginar as vidas que as paredes envelhecidas guardam. A importância desse vasto património é tão alta que brevemente estará à venda o livro Lugares Abandonados de Portugal, da autoria de Vanessa Fidalgo e editado pela Esfera dos Livros.

Em 2014, vi na Internet fotografias do solar em ruínas que se encontra em Santa Cruz da Trapa. A informação que colhi levou-me diretamente a Serrazes, onde virtualmente fiquei a conhecer a fachada da Casa das Quintãs, e tive ocasião de ler alguns textos sobre o crime que nesta casa tinha ocorrido. Tive, nessa altura, o lampejo de haver matéria importante para escrever uma história submetida à minha lavra criativa, pois não dispunha de dados concretos sobre o crime, e também não estava interessado em fazer a sua reconstituição, apenas aproveitar o essencial para escrever uma nova história. No verão do mesmo ano, propositadamente andei por estas terras, estive em Santa Cruz da Trapa e aqui, em Serrazes, e dos respetivos solares tirei algumas fotografias. Lembro-me de, em frente ao solar da Gralheira, escrever mentalmente: «As trepadeiras encravam as unhas nas fissuras e alastram a folhagem verde sobre as paredes que ainda resistem a mais de duzentos anos de abandono e solidão.»

Regressei a casa e guardei num arquivo toda a documentação que tinha encontrado sobre o crime, com a ideia de a ele voltar no futuro, assim que sentisse o seu apelo, a força misteriosa a que os escritores não resistem.

Decorridos dois anos, o romance sobre o crime ainda era uma ideia adormecida, outras mais fortes se haviam imposto; porém, numa das minhas viagens pela Internet, entrei no site de um alfarrabista do Porto e nele descobri um livro datado de 1922, intitulado Uma Causa Célebre — O Crime de Serrazes, por Cunha e Costa, o ilustre advogado que representou a família Malafaia no segundo julgamento, realizado em Coimbra nesse mesmo ano. Custou-me 15 euros o livro, lido com curiosidade e interesse, e foi a mola que me catapultou para a escrita do romance, já com a certeza de que valia a pena o meu empenho, porquanto estava perante um crime que tinha contornos para além da vulgaridade, desafiava pelo que mostrava e surpreendia pelo que escondia, não era mais um crime banal entre tantos outros que sempre encheram os jornais, enfim, tinha bons ingredientes para um romance.

Tendo já pronta a primeira versão do prólogo e do capítulo inicial, realizei nova viagem a Serrazes, no início de setembro de 2016, para tirar novas fotografias ao solar, por ter perdido as que tirara em 2014. Ao contrário do que acontecera nesse ano, havia gente na Casa das Quintãs, e não resisti à tentação de badalar o sino do portão grande, a fim de me apresentar e expor o meu projeto literário, para que me fosse permitido visitar o local do crime. Com simpatia, foi-me franqueada a entrada, e com surpresa descobri esta magnífica coincidência: o pátio interior parecia uma cópia do que imaginara para o romance, até uma árvore frondosa existia, embora se tratasse de uma magnólia, enquanto no romance é uma tília. Tinha escrito assim: «Amélia bebericava chá de tília, com folhas que colhia da grande árvore do pátio…»

Foi durante a visita que a família Malafaia me informou do evento que se realizaria no ano seguinte, e logo senti que já não podia desistir do projeto, que se justificava a publicação da obra e a sua apresentação pública no dia da cerimónia, proposta que a família Malafaia aceitou sem me impor qualquer restrição quanto ao conteúdo do romance, o que bastante me aliviou, porque assim podia abrir as asas da imaginação a meu bel-prazer. Depois fui presenteado pela drª Eugénia com uma cópia do livro que sua mãe publicara em defesa do bom nome de seu filho Augusto, ou seja, A Verdade do Crime de Serrazes, publicação de 1922. Pela forma como tudo se desenrolou, é caso para pensar que há coincidências e acasos felizes, que se conjugam para que as coisas aconteçam na altura certa.

Desde então lancei-me de corpo e alma à redação do romance, aproveitando ao máximo todo o tempo disponível, já com a certeza de a Câmara de S. Pedro do Sul financiar a sua publicação. Reconsiderei a planificação da obra e decidi que não escreveria um romance cuja efabulação configurasse um crime de difícil identificação com o de Serrazes.

A grande escritora Agustina Bessa-Luís foi exímia, no romance Eugénia e Silvina, a transfigurar e a subverter os factos relacionados com o célebre parricídio conhecido por crime da Poça das Feiticeiras, ocorrido perto de Viseu em 1925. Confesso que, antes de conhecer pessoalmente a família Malafaia, tinha a intenção de seguir o exemplo da Agustina, porque me dá mais prazer a liberdade de inventar a partir de uma base real. Mas, em face do novo contexto em que iria realizar o trabalho, entendi que o meu crime de Serrazes, embora com efabulação, teria de reproduzir a verdade do que aconteceu há cem anos. De facto, eu queria que este livro fosse a memória literária da tragédia que vitimou um homem inocente e a homenagem póstuma que manterá vivo Augusto Teles Malafaia, enquanto houver um exemplar do romance que resista ao pó do tempo e enquanto houver um leitor, seja de Serrazes ou de qualquer parte do mundo.

Despeço-me hoje de Serrazes e já não posso afirmar, tal como fiz na abertura deste texto, que não tenho qualquer ligação a esta terra.


Serrazes, 27 de agosto de 2017