CRÓNICA (1)

A LEVEZA DO OUTONO

É uma tarde de sábado. O homem deambula pelos campos. Caminha devagar, ao acaso, contemplando a paisagem. O tempo não convida a passeios. É um dia cinzento, mansamente tocado pela aragem fria. Mas o homem sente-se bem. No espaço aberto à sua volta, pode recolher-se dentro de si. É o que mais anseia.
A saudade invade-o. Entra-lhe na alma como a humidade da tarde nos ossos do corpo. O chão que pisa é o do passado. O tempo em que a sua vida tinha o tamanho de uma tarde campestre sem relógio. O tempo do sonho e das convicções que não maculavam a sua existência. O tempo da inocência.
A medida da sua felicidade resumia-se à indiferença por coisinhas das quais depende a estruturação social e a afirmação de cada indivíduo. Não tinha clube de futebol; mas gostava de apreciar num jogo o espectáculo desportivo, sem aderir a discussões clubísticas marcadas pela fanática parcialidade. Não tinha partido político, mas acompanhava com atenção as movimentações partidárias, e na hora das eleições o seu voto era esclarecido e consciente. Não tinha a certeza de ter amigos, mas sabia que tinha a sua vida e os seus sonhos. Não precisava de mais nada para ser a expressão de si próprio.
O homem passou um pequeno silvado e avança por entre giestas. Os seus passos o aproximam de um extenso vinhedo orlado de macieiras e pereiras bravas. Pára. O fundo cinzento da tarde exibe a natureza sem cor. As hastes das videiras, despidas de folhagem, parecem gritos agredindo o ar. As árvores, em volta, esqueletos vivos chorando as últimas folhas ressequidas. O cenário é triste e desolador. A morte corrói a vida.
O homem veio à procura da vida. Foge da urbe. Desde que nela entrou, quis conhecer a engrenagem do seu funcionamento. Aprendeu a ter um clube de futebol e a ter um partido político. Aprendeu, no fundo, a ser igual entre os iguais. Com tudo isto, ao fim de não muito tempo, aprendeu a conhecer o rosto da inimizade e da falsidade. E aprendeu a conhecer os enganos que as certezas impõem. No mundo das insónias, não havia lugar para o sonho. Cansado, carregando dentro de si a sombra, regressou ao espaço do passado.
Ao homem, de repente, assoma um sorriso à flor dos lábios. Inspira fundo, sorvendo o ar à sua volta. O que ele vê, agora, é o milagre da vida. Ele quer fundir-se com aquela natureza. Ele quer, à semelhança das videiras e das árvores, deixar cair o peso da folhagem sem qualquer préstimo. Ele quer sentir-se nu, despojado até à raiz da alma. Ele quer ser a leveza do outono para se cobrir de uma nova liberdade.

Jornal da Mealhada, 333, 15.11.2000
(sem atualização ortográfica)