CRÓNICA (2)


NATAL NA ALDEIA



Todos os anos, pelo Natal, venho à aldeia. É uma das muitas visitas que faço sempre que a vida profissional me permite. Não é, no meu caso, uma fuga burguesa. Não é, também, uma atitude conotadamente intelectual própria de gente letrada. Estar na aldeia é, para mim, beijar a face da vida. Longe da civilização, liberto de todas as artificialidades, venho ao encontro das raízes da minha identidade. É sentir sob os meus pés os verdes campos. É molhar as mãos nos límpidos riachos. É ver as pequenas casas de pedra fazendo as ruas estreitas. É escutar o bulício da vida no despertar de cada madrugada. É chegar à noite e sentir nas roupas do corpo o cheiro que define um dia campestre.
Estou, pois, na minha querida aldeia. Na velha casa familiar tudo permanece no seu lugar como se a vida ainda aqui morasse. Mas é uma vida moribunda: as traves do telhado mais carcomidas; as paredes mais esfareladas; os móveis e os utensílios domésticos sem brilho. Uma película de pó quer delir a biografia da casa. Porém, escuta-se no silêncio o respirar da memória. Tenho de ressuscitar a casa. Tenho de tornar esta solidão habitável, reanimar os fantasmas adormecidos, para que o meu isolamento do mundo, neste Natal, seja a redenção da minha condição humana.
É uma tarde de sábado. Espreito pela janela e vejo farrapos de neve sobre os telhados. Lá fora, tudo espera por mim. É um apelo inadiável nesta véspera de Natal. Voltar a esta casa depois, acender a lareira e deixar-me ficar junto a ela, num conforto ancestral, esperando a revelação da noite sem tempo.
Chego à rua. Um manto branco cobre a aldeia. Aperto o sobretudo para me proteger da friagem. Avanço ao acaso, à procura de um passado nostálgico, de um tempo perdido. À minha volta a neve cai leve, levemente. Falta o fumo a sair de uma chaminé para ser um cenário ideal para ilustração de um postal natalício. Aqui, porém, a realidade é bem diferente. Tudo está abandonado e inerte. O que se observa são as ruínas de vidas ausentes.
Sou senhor absoluto da aldeia. Dono de um império cuja vida me passa pela memória.
A mulher que sabia ler nos olhos de azeite, abertos na água de um prato, o mau olhado deitado a uma pessoa. A escola onde aprendi a soletrar as primeiras letras. A taberna onde os homens molhavam a secura da vida. A fonte que tantos pingos de amor deu aos namorados que ali se sentavam. A ponte romana de onde uma menina se atirou para a água, porque o seu sonho era ser um nenúfar. O cemitério onde estão os ossos da memória.
Os montes e os pinheiros distantes, recortados de neve, anunciam a noite. Inspiro fundo o ar puro. Com esta revisitação ao espaço do passado, é hora de voltar à velha casa e preparar a minha noite de solidão. Início o regresso. Sou silêncio e aragem. Sou vida e morte. Sou todo inteiro num instante de mim.
Súbito no ar, um ganido. Viro-me. Um cão, uns metros longe, com a fome agarrada ao pelo como carraça, olha-me com olhos de solidão. Chamo-o, com a mão aberta, mas ele hesita, ainda desconfiado. Continuo a caminhada. Pressinto o animal no meu alcance, a distância segura. Viro-me. Chamo-o novamente, desta vez com um assobio triste como a sua sorte. Aproxima-se um pouco mais, mas sempre alerta.
Chego à porta da casa, já com o cão à minha beira. Entra comigo. Percorre a casa, como se reconhecesse nela lugares íntimos. Por fim, na cozinha, sossega junto à lareira apagada. Vejo nos seus olhos o tremelicar das chamas. Talvez seja a saudade de um lar que nele vive. Parece dizer-me que é ali o sítio da nossa noite.
Sim! Será a nossa noite, o nosso espaço, o nosso tempo. Faremos companhia um ao outro. Dois seres estranhos, sem nome, unidos pelo destino. De mais não precisaremos para cumprir a nossa condição.

Jornal da Mealhada, 338, 20.12.2000