CRÓNICA (4)


N O  I N T E R V A L O  D A  P U B L I C I D A D E





Ainda me recordo do tempo em que a televisão fez a sua estreia na minha aldeia. Era eu um miúdo com muitos sonhos cor-de-rosa. Essa caixinha mágica, embora a preto e branco, veio dar outro colorido à minha vida e à das gentes da minha aldeia.

Apareceu sorrateiramente, sem publicidade a anunciar a sua chegada. Entrou, pela primeira vez, em casa de um vizinho e nunca mais de lá saiu. Parece que ali se sentia à-vontade para falar e mostrar ao País o mundo que ela era. Foi uma grande novidade e admiração! Como era possível uma coisa daquelas ter tantas coisas lá dentro? Um dia (confesso), ainda me atrevi a espreitar pelos orifícios das suas costas. Nem digo o que vi...

Durante um mês não houve outro falatório. As más-línguas até chegaram a correr o risco de enferrujar. Para bem do povo e da nação acordaram a tempo; mas isto é outra história que nada tem a ver com as que a televisão tem para nos oferecer.

Desse tempo, lembro-me sobretudo das tardes de domingo. Foi o dia da semana que, repentinamente, ganhou um passatempo diferente. Adeus brincadeiras de ontem: jogar à bola, ao botão, à carica... Depois do almoço, a cachopada ia para casa do vizinho, onde se sentava em bancos compridos dispostos na garagem. A troco de dez tostões (não era brincadeira) tinha-se uma tarde cheia de televisão.

As imagens que permanecem na minha memória, desses primeiros tempos em que a televisão chegou à aldeia, pertencem a alguns programas que fizeram história. O mais aborrecido era o TV Rural, do Eng. Sousa Veloso. Contudo, não despregava os olhos do ecrã e, se não tivesse sido o destino, creio que hoje estaria a apresentar a 2ª série do TV Rural. O filme que via com mais entusiasmo, depois dos desenhos animados (conhecidos por "bonecos"), era O Santo, corporizado por Roger Moore. E quando o intervalo se lembrava de aparecer, num grande momento de expectativa criado pela acção do filme, nem arredava pé da cadeira, com receio de a curta sequência publicitária não me dar tempo de ir fazer um chichi.

Actualmente já não tenho este problema. Basta-me escolher um canal das televisões portuguesas para poder encher os olhos e os ouvidos com longas e adormecidas sessões de publicidade. É claro que aproveito este tempo para fazer coisas mais úteis. E, quando quero ver um bom filme ou um bom programa, regresso à televisão no intervalo da publicidade.



Jornal da Mealhada, 347, 21.02.2001 (sem atualização ortográfica)

CRÓNICA (3)


P A R A  F O R A,  C Á  D E N T R O


Um passeiozito era mesmo o que vinha a calhar, para descontrair os neurónios e esquecer os privilégios da minha profissão. E o tempo não podia estar melhor, neste outono acolhedor. Tem de ser um passeio por este Portugal português, à força de tanto ouvir na televisão «Vá para fora, cá dentro».

Quinta-feira, 31 de Outubro. Estou então de partida, com a mulher que me acompanha há muitos anos, rumo ao Alto Alentejo. Já deixei para trás Tomar e Abrantes, Castelo de Vide é o destino desta primeira etapa. Chego às 15 horas ao jardim da vila. Ainda mal comecei a estudar o lugar com os olhos e já me surpreendo: uma placa indica-me o caminho da Fonte da Mealhada. «Gente simpática», penso. «Como sabiam que eu vinha cá?». Vou à Fonte da Mealhada, que é para onde me leva o coração. É diferente do chafariz da minha terra. Prefiro o meu chafariz, mais pequeno, mais elegante e bem enquadrado no espaço envolvente. Ah!, se eu pudesse trocar a água!...

Volto ao centro da vila. Dirijo-me ao Inatel. Na recepção fico a saber que não há quarto disponível. É incrível: tanta gente a seguir o itinerário escolhido por mim! Tenho de escolher outro sítio para pernoitar. E com muita sorte, pois a última vaga esperava por mim. Aliás, viria a ser assim até à última noite da viagem. Voltei, à noitinha, ao Inatel, para jantar. Bem servido e mais barato. Bem instalado fiquei também na residencial. E mais barato qualquer coisa. É a sorte de ser sócio do Inatel e de não ter quarto disponível.

A tarde é pequena, anoitece cedo, não há tempo a perder. Vou ao Posto de Turismo e recolho os percursos históricos. Pés e máquina fotográfica a caminho do castelo. Ruelas estreitas e íngremes revelam-me, entretanto, a presença de uma judiaria naquela terra. As pessoas são afáveis. Até dá gosto falar português. Uma hora depois, regresso ao centro da vila. Tenho de prestar culto à Igreja Matriz e de cumprimentar o sempre jovem D. Pedro V, no alto da sua estátua, que também por aqui passou. O dia está ganho. Castelo de Vide ganhou um amigo.

Sexta-feira, 1 de Novembro. De Castelo de Vide a Marvão distam 13 quilómetros. Não há pressa, a manhã está por minha conta. A meio do percurso começo a adivinhar a vila no alto do monte, escondida dentro das antigas muralhas. À chegada, mal transponho a porta da cerca, há uma rua estreita que sobe pelo branco das pequenas casas. Este percurso trilhado por ruelas quer-se pedestre; ao fazê-lo, muitas vezes me vem à memória a histórica Óbidos. Subo a uma das ameias do castelo e contemplo a vasta planície que se perde na fronteira espanhola. E eis que compreendo a importância geo-estratégica desta pequena povoação nos tempos remotos. Desço ao miolo da vila, visito o museu e busco depois no Posto de Turismo um pouco da sua história metida em meia dúzia de linhas escritas. Recebo uma separata da revista IBN MARUÁN (do árabe: Filhos de Marvão). Volto novamente a Castelo de Vide, agora em pensamentos, para lembrar as inúmeras publicações culturais que vi editadas com a chancela da Câmara. Tanta sensibilidade cultural por parte das edilidades locais basta para fazer inveja a qualquer homem de letras que viva longe desta região. E, ainda entretido com estes pensamentos, chego à porta da casa onde viveu Branquinho da Fonseca durante largos meses. Estou predestinado a ter estes encontros inesperados com as figuras literárias que deixei nas estantes de casa e que queria esquecer absolutamente por quatro dias. Mas Branquinho da Fonseca sussurra-me já ao ouvido a passagem do livro Caminhos Magnéticos, onde, no conto "O Conspirador", descreve Marvão.

«Um monte de casitas brancas em cima duma pedra gigantesca, uma pedra preta, que parece um navio com costado de 300 metros de altura: é Marvão. A muralha protege a povoação em toda a volta, para não deixar sair nem entrar nada. Não deixar entrar a civilização nem sair o ar estranho e primitivo do burgo onde se penetra por duas portas, ambas difíceis, com seus arcos sucessivos em zig-zag. As ruas muito estreitas e torcidas, calcetadas com pedregulhos irregulares, emaranham-se todas umas nas outras, em ângulos e esquinas imprevistos. Há casas verdadeiramente incrustadas no monte: à frente têm três andares e atrás o telhado toca no chão. É um labirinto de escadinhas toscas e vielas íngremes. As habitações, muito caiadas, com buracos que são janelas e com portas medievais em ogiva, roídas dos séculos, estão umas a cavalo nas outras, no alto do monte, a olhar para Espanha. Torres, arcos, portas, contrafortes e trincheiras, num conjunto de feroz estratégia, cercam o casario ingénuo que paira sobre a paisagem imensa. Lá para baixo contempla-se o mundo em mapa de relevo a belas cores: montes, rios, planícies, cidades, vilas, estradas, florestas.»


Com esta leitura abalo para Portalegre, onde espero encontrar um almoço com sabor alentejano e a Casa-Museu de José Régio, porque Branquinho da Fonseca me abriu os apetites literários.

É feriado, os museus estão fechados. Pois fazem assim muito bem, que isto de ir para fora cá dentro não convém que seja em fins-de-semana prolongados, por causa do grande afluxo de turistas portugueses e espanhóis que podem desgastar os nossos museus e monumentos. Vou às sopas, onde me tenho de contentar com umas lulas grelhadas, depois de buscas infrutíferas por um ensopado de borrego, ou qualquer outra coisa que a nossa publicidade turística tanto apregoa. Vá para fora cá dentro, e vá com Deus.

De sabor alentejano levo algum vinho comigo, a quantidade certa para uma tarde de viagem. O destino é agora Estremoz, com desvio por Crato, Alter do Chão, Avis, Fronteira e Sousel. Descanso os olhos e a alma na paisagem. Apenas o coração se cansa neste fatídico feriado nacional: igrejas e monumentos fechados. Salvam-se os folhetos dos postos de turismo e a máquina fotográfica __ para mais tarde recordar o que não se pôde visitar. Enfim, eis Estremoz, o meu poente nesta tarde de sexta-feira. À noite comerei uma açorda que, sabê-lo-ei depois, me fará pensar na açorda da minha tia.

Sábado de manhã. Deixo para trás Estremoz. O itinerário promete ser muito mais interessante. Num salto de quatro rodas, estou em Vila Viçosa, junto ao Paço Ducal. Junto-me ao grupo de pessoas __ perto de trinta __ que se prepara para visitar o interior do Paço. Cada entrada, mil escudos. Encontrar um museu aberto tem os seus custos. No fim da visita guiada, depois de me maravilhar com as riquezas que materializam as gerações dos Duques de Bragança, não chorei o dinheiro e o tempo gastos. Quis comprar uma colecção de postais, exposta na vitrina, que me seduziu a vista. Estava esgotada. Olhei tristemente para o novo grupo de trinta pessoas que se preparava para começar a visita. Cá fora, contemplei a vasta fachada do Paço. E tirei-lhe o retrato, que será, certamente, o postal da triste memória.

E subo agora ao castelo, onde o cemitério me acolhe aos pés de Florbela Espanca, junto à sua última morada. Despeço-me e ela agradece a visita:

Ó minha terra na planície rasa,

Branca de sol e cal e de luar,

Minha terra que nunca viste o mar,

Onde tenho o meu pão e a minha casa.


Finalmente, repousa em paz a sua dor.

Almoço em Elvas. Tempo de ver o Aqueduto, o centro histórico e, ao longe, Badajoz à vista, onde irei brevemente.

A tarde leva-me a Campo Maior. Visito a Igreja Matriz e, ao lado, espreito o interior da Capela dos Ossos, pelo vitral da porta fechada. São estes os ossos do turista, de ir para fora cá dentro.

Quero chegar a Portalegre ao anoitecer. Fujo da estrada principal e aventuro-me pela Serra de S. Mamede, onde o passeio culmina no Alegrete, pequena povoação.

Sábado à noite em Portalegre. Não há cinema na cidade. Acenderam-se as luzes e apagou-se o coração. Uma volta pedestre, nocturna, é o que me pede esta deliciosa açorda de marisco.

Domingo. Não posso partir sem visitar a Casa-Museu de José Régio. Entro no reino de Cristo. São centenas de cristos que o poeta foi coleccionando durante os anos em que foi professor de Português e Francês em Portalegre. Sobre a secretária, no seu escritório, leio o original do poema __ "Toada de Portalegre" __ que a janela abriu sobre a cidade.


Em Portalegre, cidade

Do Alto Alentejo, cercada

De serras, ventos, penhascos, oliveiras e sobreiros,

Morei numa casa velha,

Velha, grande, tosca e bela,

À qual quis como se fora

Feita para eu morar nela...


Rumo à Beira Baixa. A paisagem vai-se transfigurando, à medida que me afasto do Alto Alentejo.

Em Castelo Branco, visito o Jardim do Paço e o Castelo. O almoço é a caminho de Idanha-a-Velha, onde me espera a estação arqueológica. É uma povoação __ Civitas Igaeditanorum __ que sofreu a sobreposição de diferentes civilizações. Importante centro no período romano, na linha da estrada Emerita (Mérida) __ Bracara (Braga), assistiu à passagem das culturas visigótica e árabe, entrando em declínio após a invasão muçulmana. Admiro a ponte e o arco romanos, a torre de menagem dos Templários e a Sé, que testemunha nas suas pedras a presença de povos milenares.

São quatro horas da tarde. É tempo de calcular a viagem de regresso a casa. Mas não resisto ao apelo da vizinha Monsanto, que lá no cume do monte, qual Olimpo dos deuses humanizados, me acena com um sorriso feito de pedra.

E quando chego ao alto da povoação, fico quedo e mudo de espanto. Aqui é a vida que se agarra ao chão como estes penedos seculares. Penedos que resistem, teimosos, à erosão do tempo. O castelo é a coroa de Monsanto, depois de um percurso íngreme. Do reino das águias, lá no píncaro do monte, a planície rende-se à majestade de Monsanto.

São horas de regressar. Desço à povoação e procuro a rua onde está a casa de Fernando Namora, quando neste lugar exerceu medicina, deixando aqui alguns retalhos da sua vida de médico e colhendo a vida de algumas personagens que recriou na literatura. É fado meu estes encontros literários. A Nave de Pedra revela-me um outro olhar sobre Monsanto.

«Por aqui, dizia, se encontra Monsanto. Onde a fraga se torna pesadelo. De longe a vi e a temi, um dorso de monstro a crescer para nós até tomar conta de quase todo o céu, num tempo de já não sei quando e com uma personagem decerto desaparecida, esse eu bisonho a eriçar-se de espinhos, ou de frouxidão embuçada, no trato dos homens. Um eu que só tarde veio a reconhecer que é no gesto sem medo, afinal o gesto que pedia e lhe pediam, que estava o segredo da comunicabilidade.

Homens e panoramas desta estremadura beiroa, de desconfiança em alerta, nos oferecem, pois, a ideia de um viver tão duro quanto marginal. Curtido na servidão e por isso amuado. (...)

Desço da pedra à terra, do alto do monte à planície. Inicio a viagem de regresso a casa.

Um dia voltarei. Para fora, cá dentro.

Jornal da Mealhada, 220, 15.11.1996