CRÓNICA (6)


G I L



Aquela família, tal como a maioria das famílias portuguesas, vivia num apartamento. Pai, mãe e três filhos num espaçoso T4. Neste caso, não se podia falar em gaiola. A única gaiola que lá existia era o habitáculo de um hamster.

A história começou assim...

Certo dia, o filho mais novo, naquela idade em que o mundo real e o virtual se confundem, imaginou que uma família sem bicho de estimação era uma família incompleta. Num ápice, convenceu a mãe a meter em casa um bonitinho hamster. Foi uma alegria quase geral quando o ratinho foi perfilhado. Quase... O pai, esse, olhou-o uma vez e nada disse; sorriu um pouco, misteriosamente, e pensou muito.

«Se fosse um pássaro, ao menos cantava para pagar o que come. Agora um rato, sem qualquer utilidade, numa gaiola instalado, a roer a rotina dos dias. Mas podia ter sido pior, sim senhor! Por exemplo, se o garoto se tinha lembrado de querer uma vaca, de certeza que a casa ia abaixo com tanta loucura.»

O pai, por solidariedade familiar, lá se mostrou interessado e contente com a aquisição. Tinha lido, algures, talvez num artigo escrito por um sociólogo ilustre, bem conhecido no País por ser um velho solteirão, que elementos desta natureza são muito importantes para o fortalecimento dos laços familiares. Ora, assim discorrendo, o pai concluiu que o Governo devia oferecer um ratinho a cada família...

Finalmente, decidiu-se:

__ Então, filho, que nome vais dar ao rato?

__ Não é um rato, pai! É um hamster!

__ E que nome vais dar a essa coisa?

__ Ó pai, isto é um ratinho doméstico. Vai chamar-se Gil.

«Perfeito!», pensou, «Tinha de ser nome de pessoa. Só é pena não contar como parte integrante do agregado familiar para efeitos do IRS.»

A mãe, com intuição feminina, apaziguou:

__ Não te preocupes. Estes ratinhos não vivem mais de dois anos.

Ele respondeu, com um tom de voz ambíguo, que era uma injustiça os seres mais inofensivos terem pouco tempo de vida, quando comparados com outros ratos de longa data.

O pai habituou-se a ter o hamster a um canto da sala. E habituou-se também a um ritual familiar. À noite (não pela calada da noite, como é normal nos ratos), à hora da telenovela, lá saía o Gil do seu ninho. Esticava as pernas na roda giratória, saciava a sede e, antes de se encher com a sua ração, vinha colar-se às grades da gaiola para receber uns mimos de comida. Mãe e filhos, muito carinhosamente, abasteciam-no de fragmentos de bolacha. O pai assistia à cena e acabava por se perder em cogitações de índole sociológica. Era assim todas as noites __ e contra reflexos condicionados nada há a fazer.

Meses depois, um novo elemento veio aconchegar mais o ambiente lá de casa. Era, quando entrou, um pouco maior do que o Gil. Hoje, embora não seja um corpo de assustar, o cão está muito mais crescido.

O Snobe, assim nomeado por decisão democrática do filho, teve privilégios de fazer inveja a qualquer ratinho: visita de médico, portador de Bilhete de Identidade, passeios nocturnos e um sofá por sua conta nos serões familiares. Tinha, na verdade, tratamento VIP, e só a humildade impedia o Gil de se queixar à Sociedade Protectora dos Animais.

Gil e Snobe cimentaram depressa uma amizade tácita para o resto da vida. À noite, quando o hamster vinha pedinchar o seu doce, o cão abeirava-se da gaiola e, durante segundos, contava-lhe as notícias do dia, ouvidas momentos antes no telejornal, dando destaque especial ao desenrolar dos acontecimentos no Big Brother. Mãe e filhos deleitavam-se com estes saborosos instantes caseiros. E o pai assistia à cena, fingindo-se distraído por detrás do jornal.

Três anos se passaram. O pessoal mostrava-se contente com a longevidade do rato, sempre jovial na sua rotina diária.

A surpresa estava reservada para o pai (a ironia do destino pode aparecer a qualquer momento).

Certa tarde, gozando a leitura de um livro, no sofá, apercebeu-se de que o hamster era quase uma estátua no lastro da gaiola. Apenas os olhitos se moviam aflitos. Intrigado, abriu a gaiola e tocou no ratito. Este fez um esforço para se mover. Lentamente, avançou uns centímetros numa espécie de dança sem nexo. Era visível que fora vítima de uma trombose. Não tinha coordenação motora. Assim, o pobre nem sequer conseguia chegar à comida. Ao seu ninho, no piso superior, nem pensar. O homem percebeu que o fim do Gil chegara e, surpreendido consigo próprio, sentiu um ratinho de tristeza.

Os dois dias seguintes foram de agonia para o animal e de expectativa sofrida para a família. O Gil fazia lembrar uma pessoa. O que ele estava a passar era em tudo igual aos humanos. A doença era a mesma; o arrastamento era o mesmo; a aflição era a mesma. Todos estavam tristes. O pai perdera a vontade de brincar... Até o Snobe se chegava à gaiola e voltava com olhos húmidos e interrogadores.

Ao terceiro dia entrou em coma. O seu corpo esfriara e enrijecera. O lento bater do coração deles se despedia.

O pai chorou uma lágrima dentro de si. E descobriu que aquele bicho não vivera só na gaiola.

Jornal da Mealhada, 359, 16.05.2001 (sem atualização ortográfica)

CRÓNICA (5)


B U R A C O S



Foi durante a minha primeira viagem de avião que tive oportunidade de reflectir acerca de um tema que nunca havia intelegido. É assim que o pensamento, na maior parte das vezes, desperta. Basta um clique exterior para que o nosso raciocínio se afadigue na compreensão de certos fenómenos.

Estava eu, então, no deleite de um remanso aéreo, deslumbrado pela sensação de estar parado a alta velocidade, quando fui surpreendido por uma súbita queda vertical do avião. Tão repentina que até o estômago me caiu no vácuo. A doce voz da hospedeira logo tranquilizou os passageiros, informando que tínhamos passado por um poço de ar. E, espreitando eu pela janelita do aparelho voador, fiquei descansado por não vislumbrar sinais de algum buraco negro que me quisesse sugar.

Ora, se pensei em buraco, num grande buraco me meti, pois a partir desse momento só tive pensamento para analisar alguns tipos de buracos que nos acompanham durante a vida. Não julguem que sou um poço de ciência; não sou nem uma pocita sequer. Tenho apenas a mania de meter o nariz em assuntos estranhos à minha competência. É por isso que, sem perceber pevide, até pareço uma abóbora de sabedoria.

O primeiro buraco em que me fui meter estava nas estradas da minha freguesia. Ali tão manhoso, dissimulado, à espera da minha viagem de estreia após ter comprado a carta de condução. Saltou de repente para debaixo dos pneus, antes de eu ter ensaiado uma travagem de emergência. Era um buraco com muita fome, porque os seus dentes aguçados devoraram-me o pneu num segundo. Fiquei chateado, mas, reconheço, sem razão. Na verdade, eu não dera atenção aos avisos do meu instrutor. Dizia ele, amiúde, apontando um velho cartaz na sala da escola de condução: «Isto é um carro; isto é uma estrada; e isto é um buraco.»

Deste buraco saltei para outros. Com alguma tristeza, lembrei-me de que tenho passado a vida a tapar buracos.

Uma vez, sonhei que havia de ser colaborador do jornal da minha aldeia. Apresentei-me ao seu director e ofereci os meus préstimos, exibindo um pequeno trabalho que me tinha consumido sete noites de inverno. Ele encheu-me de esperança. Aceitou o texto e disse que o publicaria quando fosse preciso tapar um buraco. Saí dali muito motivado e fui beber umas cinco cervejitas para comemorar o acontecimento.

Outro tipo de buraco que ando há muito tempo a tapar é o do empréstimo da casa. Começou por ser uma pequena dívida, um buraco fácil de tapar. Afinal, um dos muitos pequenos buracos que fazem parte da vida. Hoje, com o aumento da taxa de juro, o empréstimo da casa é um buracão. Por este motivo é que ainda não me suicidei. Viver com pequenas dívidas é, sem dúvida, um grande tédio.

Posso queixar-me da minha sorte? Coitado é do Governo, que volta e meia descobre cada buracão! Mas tudo se resolve por artes mágicas: divide-se o buracão por muitos buracos. Escava-se aqui, ali, além e acolá um pequeno buraco e, com o produto do dasaterro, vai-se tapando o buracão. E um buraquinho a cada português nada custa.

Por falar em buraquinho...

Ouvi dizer que o meu concelho está metido num grande buraco por pretender fazer muitos buraquinhos. Vinte e sete, segundo consta. Afinal, um quase nada comparado com os hectares de terreno que esses buraquinhos precisam. A ideia é, está visto, construir um campo de golfe.

Estou cheio de sorte. Com esta idade, as minhas pernas começam a correr para outro tipo de desporto: mais calmo, mais lento, menos cansativo e muito chique. Eu, que nunca estive nem com os calcanhares no Jet 7, poderei agora, num instante, estar no Jet 27. Ganho eu e ganha, obviamente, o concelho. Postos de trabalho são tantos que nem vão caber nos 27 buracos. Sendo um desporto elitista, de gente endinheirada e habituada a pisar qualquer buraco, todos os hóteis e todos os restaurantes, do mais nobre ao mais humilde, depressa sairão da crise económica em que estão mergulhados. E tudo graças a uma política social inspirada nos sociais princípios de bem servir a elite social.

Há um buraquinho que...

Ah! O que seria da vida sem buracos?!...



Jornal da Mealhada, 355, 18.04.2001 (sem atualização ortográfica)