Crónica (9)


C A R T A S



Todos os dias recebo correio. Montes e montes de envelopes e outros quejandos que me atulham a insuficiente caixa de correio. Quando a abro, parece uma máquina de casino a despejar moedas. Olha uma revista! Olha um jornal! Olha uma carta publicitária! Olha uma carta bancária! Olha uma carta da seguradora! Olha uma carta comercial! Olha...!

Mas aquele correio tradicional, sem cheiro a papel de jornal ou a dinheiro, esse raramente os meus olhos o vêem. O que eu gostava de ver, sempre que abro a caixa de correio, era aquela carta escrita à mão que, nos tempos idos, me trazia ao coração a vida de familiares e amigos ausentes. Era com emoção que abria o envelope, curioso por ler na conhecida caligrafia pequenas e grandes coisas que fazem a vida. A caligrafia é, confesso, um aspecto fundamental que me leva a preferir a carta tradicional: a letra inconfundível dá-me a ilusão de que tenho na minha presença a pessoa que escreve.

A carta de que falo foi bastante importante enquanto meio de comunicação. Há registos do seu uso desde a antiguidade. Na Bíblia encontramos famosas epístolas. Atravessou séculos e séculos e chegou até nós com toda a vitalidade. Dela se serviram gente desconhecida, pessoas simples e rudes rabiscando o melhor possível, e gente ilustre, exibindo letra fina em papel de luxo.

Objecto imprescindível no quotidiano, depressa alcançou o seu lugar na cultura e na literatura portuguesas. Romances há, designados por epistolares, cujo universo ficcional é totalmente contituído com cartas trocadas entre personagens. A música portuguesa, algumas vezes, a ela recorreu. «Cartas de amor, quem as não tem?» e «Mandei-lhe uma carta em papel perfumado», adaptação de um poema, são exemplos de cantigas entoadas por muitas pessoas, bem recordadas de como conseguiram namorar à distância.

O hábito de coleccionar a correspondência trocada e a sua forma material, preservando pela caligrafia a marca autêntica do escrevedor, tornaram possível conhecer, hoje, o espólio epistolográfico de um autor. Com este simples acto de guardar, parecendo inútil, salvaram-se valiosos documentos que muito contribuem para um melhor conhecimento de um autor, do seu pensamento e da sua obra.

É claro que, acerca dessa velha carta escrita à mão, não estou aqui a chorar saudosismo balofo. Actualmente, com o progresso tecnológico, há tantas novas formas de comunicar, mais rápidas, que também nos deixam maravilhados.

Apesar da iminente extinção da carta a que me refiro, nem tudo é motivo de tristeza. Em sua substituição, tornou-se moda na minha terra um outro tipo de carta: a anónima. Dactilografada, assim é a sua aparição, sem caligrafia, como convém a uma carta anónima que se preze. Largada pelas ruas ou colocada debaixo das portas durante o sono da noite, ela faz as delícias de um povo tenazmente preocupado com os assuntos importantes deste concelho.

Contra algum cidadão, em particular, dissecando a sua anatomia profissional e social, ou contra um político, expondo as suas fraquezas e traições aos ideais que pretensamente representa, ela corre de boca em boca. Durante largos dias reina uma animação geral. Os mealhadenses despertam da letargia; esquecem as telenovelas, o Big Brother, o futebol. Quando uma carta destas aparece, a vida na Mealhada acontece!

É com dissimulada expectativa que vão aguardando a saída a público de mais uma carta. Tão interessante como o seu conteúdo é a dúvida que se levanta relativamente à sua origem. Há nelas subtilezas que levantam interrogações. Por este motivo, o povo exercita a sua inteligência. Por quem terá sido escrita? Por uma pessoa? Por um grupo de cidadãos? Por um partido? O que parece, é?

O meu pai, carteiro de profissão (homenagem lhe seja feita), passou parte da sua vida a dar cartas. Os energúmenos das cartas anónimas, não sendo carteiros, querem dar cartas ao Zé Povinho. Este, por sua vez, agradece o divertimento gratuito.

E qual é, afinal, o resultado?

A vida continua...



Jornal da Mealhada, 370, 05.09.2001

Crónica (8)


C O R T E S



Numa tarde em que me achei com pachorra para curtir um pouco de filosofia existencialista, deparei-me com o angustiante problema de falta de tema. Enquanto vasculhava o cérebro à procura de um tema que me não desse muito trabalho, aproveitei o tempo para cortar as unhas. Ora, ao quarto estalido do corta-unhas, logo me estalou uma ideia cortante. Descobri, afinal, que a vida é feita de pequenos e grandes cortes. Até o nascimento do ser humano exige o corte umbilical. Daí para a frente são cortes a torto e a direito.

Para ilustrar esta iluminada afirmação, não vou discorrer a minha vida; decerto que o caro leitor ficaria desiludido. Basear-me-ei, por conseguinte, nos exemplos de um amigo cuja vida foi um corte de alto a baixo. Por ironia do destino, o seu apelido era Cortes.

Era já adulto quando percebeu, pela primeira vez, que o seu apelido prenunciava um destino fatalmente cortante.

Sozinho em casa, aventurou-se a cozinhar uma refeição difícil: batatas fritas, com ovo estrelado e salsichas. Uma estreia corajosa nas lides culinárias que não teve seguimento. À primeira descascadela de batata, um corte no polegar esquerdo. Um penso rápido, logo ali no dedo, e o afã continuou. Porém, a lata das salsichas, talvez com inveja da batata, não perdeu a oportunidade de o cortar quando ele tentou violá-la. Foi nessa altura que se recordou de um outro corte sofrido no mesmo contexto culinário: ainda garoto, desistira de cortar pão para barrar com manteiga porque metia sempre o dedo no caminho errado.

Decidiu, portanto, seguir outros caminhos na vida. Vejamos os mais interessantes...

Resolveu, desde logo, mudar de ares. Trocou a sua terra (Cortilha) por outra, cidade onde pudesse ser cidadão anónimo. Na sua vila estava farto de servir de pano para todo o corte. Em nada podia estar, nada podia fazer. O resultado era sempre o mesmo: sofrer cortes por trás e pela frente; nem os lados eram poupados.

Tentou, na nova localidade (Corte Real), ser realizador de cinema. Carreira efémera, diga-se já. Era, para si, muito traumatizante ter um trabalho que o obrigava a dizer constantemente: «Corta!... Corta!...».

Para azar seu, os cortes continuavam a persegui-lo...

No tempo em que foi colaborador de um jornal independente, sentiu na pele os cortes democráticos que o director do jornal fazia aos seus textos. Contudo, não podia queixar-se da sua sorte; outros escrevinhadores de opinião o acompanhavam na lista. O director ia argumentando que o jornal que dirigia era totalmente transparente. Tão transparente que ele nem se esforçava por disfarçar os cortes.

Dessa época conserva ainda nos lábios um sorriso sardónico. Quando o director do jornal cessou funções directivas e passou para o lado dos leitores, surgiu a ocasião de se provar que quem sabe cortar também se corta. É verdade! Julgando que a dita independência do jornal continuava de si dependente, o ex-director atreveu-se a uma qualquer peleja verbal com um conhecido leitor. Saindo da guerra moribundo, o seu último estertor foi queixar-se ao novo director do periódico que, em nome da independência jornalística, o texto-resposta do seu "amigo" nunca deveria ter sido publicado.

O meu amigo saltou, depois, para as lides políticas. Foram longos anos de sucesso que o fizeram esquecer o sofrimento de um destino traçado a cortes. Mas o Diabo não dorme, apenas finge...

Quando tudo parecia correr de feição, de velas desfraldadas sem ventos cortantes, eis que uma súbita tempestade interna agitou as águas do seu partido. Como velho marinheiro, lendo os sinais favoráveis, atreveu-se a remar contra a corrente. O arrais não esteve com meias medidas: desferiu-lhe um corte de alto a baixo e expulsou-o da embarcação.

Há cortes que vêm por bem. O meu amigo, restabelecido do último golpe, procura agora um lugar no Governo. Tem currículo invejável para dar um bom ministro das Finanças. Eu, por mim, apesar de lhe desejar todas as bem-aventuranças, só rezo para que isso não aconteça. Quem ia querer mais um orçamento cheio de cortes?





Jornal da Mealhada, 368, 18.07.2001

Crónica (7)


À VOLTA DE UM COPO



Hoje decidi ir à procura da vida autêntica.

Sei de alguns amigos que se encontram aos fins-de-semana, umas vezes por mero acaso, outras de propósito, para conviverem à volta de um copo. Vou, pois, procurá-los, começando pelo café do Dionísio, como quem deseja apenas uma saborosa bica. Tenho aqui, de certeza, matéria suficiente para escrever um tratado sobre a vidinha. Hei-de arranjar arte e engenho para me transformar em personagem secundária.

Cá estou, de pé, junto ao balcão, a saborear o café. Escolhi o lugar estratégico, à custa de um saber feito de experiência observada: é de pé que se bebe, em círculo, para que o encontro da vida se não disperse. Hão-de aparecer, não tarda muito. Entretanto, vejamos a parte final da telenovela.

Eis que chega um deles. Homem novo ainda, na casa dos trinta, funcionário público, alguma cultura e inteligência quanto baste. Enganou-se quem esperava ver entrar um miserável bêbedo, tipo português clássico. Está gasto o tema do Portugal Velho. Hoje, bebe-se com sabedoria. A leitura que se faz do acto de beber é diferente. Em cada copo há um gesto social, uma filosofia de vida. Ah... A noite promete: em breve captarei a essência da vida. Isto vai ser o melhor livro do mundo.

Cumprimentei-o já com um aperto de mão. «Eu pago a bica do Parreira», aviso o Dionísio. Dois dedos de conversa banal. Tudo coisas da vida: a morte de quem estava vivo, a chuva que teima em cair, as eleições…

Chega-se a nós o Branco. A coisa está a compor-se. Que rico livro vai sair daqui! E sem necessidade de puxar pela imaginação. Pago também o café do Branco. Esta noite estou disposto a pagar tudo. Não ficarei a perder.

Mais meia-hora de conversa fiada. O café vai-se enchendo lentamente. Temos futebol na televisão. Alguém, ao fundo do balcão, começa a levantar a voz. Protesta contra o árbitro, contra a marcação da grande penalidade, contra o treinador e, por distracção, contra si próprio. Agora berra e dá murros no balcão. Coitado! Deve estar cheio de razão nestes assuntos importantíssimos. Dionísio recomenda moderação. O barulho incomoda-me, mas a cena diverte-me. Os clientes das mesas concentram-se no televisor. O fumo dos cigarros começa a esfarrapar-se pelo ar. Copos de cerveja e pires de tremoços ocupam as mesas. «É a vida que começa a invadir-me», penso. Dois amigos de ocasião juntam-se a nós. Tomo a iniciativa: «Ó Dionísio, uma rodada!». Causei surpresa __ e da grande! «Um escritor a beber!?... Um tipo porreiro! Até bebe uns copos com a malta!».

Goooolo!!!... Atiram-se braços para o ar, arrastam-se cadeiras, atropelam-se vivas e outras manifestações de alegria. Reclamam-se novas rodadas de cerveja. O Dionísio não tem mãos a medir. «Cá está o espectáculo fora do espectáculo! Cá está a vida a acontecer!», penso.

O Branco pede nova rodada. Que vem farto de água, lá na barragem onde trabalha. Não me incomoda outro copo de cerveja. Sei até onde posso ir e a mais não sou obrigado. Hoje quero apenas apalpar o terreno e ganhar-lhes a confiança. E, verdade seja dita, estou a gostar de quebrar a rotina. Sinto-me relaxado, animado, livre como um cavalo à solta num prado. A comparação é velha mas serve perfeitamente.

Acabou o futebol. Grande parte da freguesia começa a desandar: a que não gostou de perder. Chegam copos. Começo a recear o efeito. E até agora a tal vida autêntica tem sido copos atrás de copos. Olho para o relógio de parede e descubro a uma da manhã embaciada. Sinto que ultrapassei a tolerância máxima e que estou a chegar à segurança mínima.

Estou de copo na mão a fruir a actuação do Parreira. Abre os braços e declama: «Ó mar salgado, quanto do teu sal são lágrimas de Portugal!».

Não resisto a este apelo. Afinal, sempre há alguma cultura nestas andanças da vida. Salto para cima duma mesa, ergo o copo, procuro o equilíbrio, e continuo: «Por te cruzarmos, quantas mães choraram, quantos filhos em vão rezaram!».

O pessoal aplaude entre risos. Descobri uma nova vocação. Mais uma golada enquanto vou descendo.

Aiiii...

A queda não foi grande, mas deixou-me sem força nas pernas para me levantar.

Será isto a vida autêntica?



Jornal da Mealhada, 364, 20.06.2001