Crónica (8)


C O R T E S



Numa tarde em que me achei com pachorra para curtir um pouco de filosofia existencialista, deparei-me com o angustiante problema de falta de tema. Enquanto vasculhava o cérebro à procura de um tema que me não desse muito trabalho, aproveitei o tempo para cortar as unhas. Ora, ao quarto estalido do corta-unhas, logo me estalou uma ideia cortante. Descobri, afinal, que a vida é feita de pequenos e grandes cortes. Até o nascimento do ser humano exige o corte umbilical. Daí para a frente são cortes a torto e a direito.

Para ilustrar esta iluminada afirmação, não vou discorrer a minha vida; decerto que o caro leitor ficaria desiludido. Basear-me-ei, por conseguinte, nos exemplos de um amigo cuja vida foi um corte de alto a baixo. Por ironia do destino, o seu apelido era Cortes.

Era já adulto quando percebeu, pela primeira vez, que o seu apelido prenunciava um destino fatalmente cortante.

Sozinho em casa, aventurou-se a cozinhar uma refeição difícil: batatas fritas, com ovo estrelado e salsichas. Uma estreia corajosa nas lides culinárias que não teve seguimento. À primeira descascadela de batata, um corte no polegar esquerdo. Um penso rápido, logo ali no dedo, e o afã continuou. Porém, a lata das salsichas, talvez com inveja da batata, não perdeu a oportunidade de o cortar quando ele tentou violá-la. Foi nessa altura que se recordou de um outro corte sofrido no mesmo contexto culinário: ainda garoto, desistira de cortar pão para barrar com manteiga porque metia sempre o dedo no caminho errado.

Decidiu, portanto, seguir outros caminhos na vida. Vejamos os mais interessantes...

Resolveu, desde logo, mudar de ares. Trocou a sua terra (Cortilha) por outra, cidade onde pudesse ser cidadão anónimo. Na sua vila estava farto de servir de pano para todo o corte. Em nada podia estar, nada podia fazer. O resultado era sempre o mesmo: sofrer cortes por trás e pela frente; nem os lados eram poupados.

Tentou, na nova localidade (Corte Real), ser realizador de cinema. Carreira efémera, diga-se já. Era, para si, muito traumatizante ter um trabalho que o obrigava a dizer constantemente: «Corta!... Corta!...».

Para azar seu, os cortes continuavam a persegui-lo...

No tempo em que foi colaborador de um jornal independente, sentiu na pele os cortes democráticos que o director do jornal fazia aos seus textos. Contudo, não podia queixar-se da sua sorte; outros escrevinhadores de opinião o acompanhavam na lista. O director ia argumentando que o jornal que dirigia era totalmente transparente. Tão transparente que ele nem se esforçava por disfarçar os cortes.

Dessa época conserva ainda nos lábios um sorriso sardónico. Quando o director do jornal cessou funções directivas e passou para o lado dos leitores, surgiu a ocasião de se provar que quem sabe cortar também se corta. É verdade! Julgando que a dita independência do jornal continuava de si dependente, o ex-director atreveu-se a uma qualquer peleja verbal com um conhecido leitor. Saindo da guerra moribundo, o seu último estertor foi queixar-se ao novo director do periódico que, em nome da independência jornalística, o texto-resposta do seu "amigo" nunca deveria ter sido publicado.

O meu amigo saltou, depois, para as lides políticas. Foram longos anos de sucesso que o fizeram esquecer o sofrimento de um destino traçado a cortes. Mas o Diabo não dorme, apenas finge...

Quando tudo parecia correr de feição, de velas desfraldadas sem ventos cortantes, eis que uma súbita tempestade interna agitou as águas do seu partido. Como velho marinheiro, lendo os sinais favoráveis, atreveu-se a remar contra a corrente. O arrais não esteve com meias medidas: desferiu-lhe um corte de alto a baixo e expulsou-o da embarcação.

Há cortes que vêm por bem. O meu amigo, restabelecido do último golpe, procura agora um lugar no Governo. Tem currículo invejável para dar um bom ministro das Finanças. Eu, por mim, apesar de lhe desejar todas as bem-aventuranças, só rezo para que isso não aconteça. Quem ia querer mais um orçamento cheio de cortes?





Jornal da Mealhada, 368, 18.07.2001

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