A L B A
Não sabia que existias. Nunca tinha
ouvido falar de ti. Mas hoje, ao ler a notícia da tua morte, com uma síntese
biográfica que me despertou o interesse, fiquei com a certeza de pertencer ao
pequeno grupo de pessoas que te conheciam. E conheço-te na medida em que
conhecer é também compreender. A Ideia, para mim, é a memória de uma pessoa.
Quando penso numa pessoa, depressa os traços fisionómicos se apagam sob a força
da sua Ideia. Ora, a Ideia que te animava era demasiado obscura para a maioria
dos cidadãos. Por isso, poucos te conheciam porque poucos te compreendiam.
Sei que rasgaste a vida em duas metades
como quem divide uma folha de papel. Uma parte, sem utilidade, deitaste fora,
para o caixote do esquecimento; a outra ficou-te na mão, e nela ousaste
escrever uma nova vida. E tu foste a coragem!
A tua coragem, arrancada ao teu inferno
interior, surpreendeu, agrediu e dilacerou. É doloroso, para aqueles que
participam na comunhão da vida, ficarem de repente privados de um ente querido.
Mas a tua determinação era irreversível. Com um golpe cerce, disseste NÃO à sociedade e
à náusea que a infesta. Disseste NÃO ao emprego. NÃO aos amigos. NÃO aos familiares maternos e paternos. NÃO à mulher. NÃO aos filhos. NÃO ao teu nome.
Disseste NÃO a tudo para poderes ganhar tudo em nada. Para ressuscitar é preciso
morrer. E tu foste a coragem transgressora!
Despido da identidade que te incomodava,
foste ao encontro de ti. Na tua cidade permaneceste porque era indiferente
outra qualquer. Em todos os teus passos havia espaço e tempo, dia e noite, sol
e chuva, gente e animais. Um nada que era tudo porque tudo estava dentro de ti.
E tu foste a coragem redentora!
Deambulando pelas ruas, sem destino, sem
tecto, sujo e maltrapilho, à mercê do sustento possível, habituaste os olhos
cegos dos transeuntes a ver o vagabundo-doido que já fora gente normal antes de
ser o que é. Insensível e superior ao desprezo e ao riso, ias construindo a tua
própria cidade. E nessa tua coragem tu eras alba em perpétuo movimento!
Eras uma cidade feita de alba, uma
cidade que só os teus poucos amigos conheciam. Amigos poetas __ condição necessária para alcançar o
entendimento das coisas tidas por anormais. Eras, portanto, poeta! Tratavas a
vida por tu, rias-te dela, desprezava-la; e, no entanto, ocupavas o teu ócio de
parasita social buscando no âmago da vida, bem fundo nas suas entranhas
fedorentas, o oiro inebriante das manhãs. E tu eras a coragem feliz!
De poeta publicado, pelo gesto amigo de
outros poetas, chegaste a poeta premiado. Encheram-te os bolsos de dinheiro e
logo os despejaste em benefício dos teus filhos. Acaso o Júri do Prémio,
esquecido de que a tua mendicidade buscava algo muito mais valioso, entendeu o
teu conceito de poesia? Tu, com a tua coragem marginal, há muito que fazias da
vida poesia!
A poesia não é de todos nem para todos.
A poesia incomoda. A tua muito mais __ ela está
sobretudo no teu atrevimento, na bofetada que soubeste dar na cara da vida. E
esta sentiu-se incomodada, ofendida com a coragem poética que irradiava de um
andrajoso vagabundo. Não admira, pois, que, num acto de cobardia, te tenha
presenteado com a morte por atropelamento. Afinal, a vida gosta de coisas
prosaicas.
Tu não morreste, amigo! Enquanto houver
coragem, haverá sempre uma alba...
Jornal da Mealhada, 379,
07.11.2001