CRÓNICA (10)


O  S A B O N E T E



Nessa manhã, quando cheguei a casa depois de uma viagem de trabalho, ansioso por um banho reconfortante, encontrei um vazio à minha espera. Em cima da mesinha, à entrada, um bilhete manuscrito testemunhava o adeus definitivo da minha última companheira. Senti-me invadido por um sentimento sem definição, nem alegria nem tristeza, talvez indiferença misturada com uma ponta de estranheza por essa relação amorosa ter terminado sem troca de palavras, sem qualquer justificação. Confesso que essa ruptura, pela forma como se consumou, encheu-me de interrogações durante alguns segundos. No fundo, concluí que essa estratégia de despedida, não sendo original, tinha a vantagem de evitar cenas mal representadas.

Despi-me e entrei na casa-de-banho, cantarolando uma ária qualquer, da qual só conhecia a expressão la dulce vita. Reparei que havia vestígios de banho recente. Ar mais quente e um aroma macio de mulher. Pus-me debaixo do chuveiro, accionei um jacto de água e fiz o gesto de apanhar o sabonete.

Achei a saboneteira vazia. A mulher nem sabonete me deixou...

No dia seguinte, fui de propósito ao hipermercado (eu moro mesmo próximo) comprar uma caixa de sabonetes. É verdade: uma caixa de sabonetes! Homem prevenido não mais ficará sozinho sem sabonete.
Cheguei junto à estante... Azar! Quantidade de sabonetes não havia. Um só exemplar me esperava, e pensei que muito amor se estava lavando neste mundo. A marca era Lux, coisa de que eu precisava mais do que nunca.

Nesse instante, quando me preparava para pegar nele, uma outra mão o disputou, colhendo-me de surpresa. Era uma mão nívea, feminina de encantar. Mas o que eu procurava, a sério, era um sabonete. A mão podia vir depois...

Sabonete molhado escaparia aos dois pretendentes; assim, seco e embrulhado, só podia dar espuma de conversa.

«Desculpe», disse delicadamente, «eu peguei primeiro.»

«Desculpe», respondeu ela, «pegámos juntos. E uma senhora tem prioridade.»

«Só quando se apresenta pela direita.»

«Aqui não tem direita nem esquerda; isto não é um acidente de viação.»

«Eu vi primeiro o sabonete», retorqui, sem largar.

«E quem pensou primeiro?», teimou ela, sem largar.

«Ora», exclamei, «você não tem mão de quem usa Lux. A sua marca é, de certeza, Nívea.»
Conversa puxa sabonete, sabonete puxa conversa! Em cinco minutos, chegámos a um acordo: partilharmos o sabonete em minha casa.

Eu não vou contar como fiz esse fim feliz. Isto que estou escrevendo não é um Manual do Sedutor.
Meus dias futuros passaram sorridentes e perfumados a Feno. Eu desconhecia esta fragrância em sabonete. E também em corpo de mulher. Era como fazer amor em pinhal aberto, com os poros da natureza exalando a essência do feno.

Quando regressava do trabalho, e me encontrava com ela, nós logo corríamos para o banho, inundando-nos de espuma. Eu estava a viver uma magia de amor nunca experimentada. Por fim, tinha encontrado o sabonete certo. Ele era de tamanho gigante e resistente à água. Felizmente...
A companhia dessa mulher fez-me perder a noção do tempo. Graças ao sabonete! Os verbos viver e amar estavam bem conjugados.

Um dia, depois de muitos dias iguais, cheguei a casa e encontrei um bilhete. Só mudara a caligrafia; o conteúdo da mensagem era o mesmo de antigamente. Dessa vez fiquei aborrecido. Não tanto pelo abandono, mais pela falta de inventiva.

O melhor, nessa situação, é tomar um banho de esquecimento. Fui lá. Sabonete não havia; gastara-se até ao fim.

Só me restava ir ao hipermercado.

Jornal da Mealhada, 374, 03.10.2001

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