Crónica (13)


DUAS LINHAS



Depara-se o cronista com a folha em branco no momento da escrita. A superfície branca depressa ficará manchada de tinta preta, pois a ideia a desenvolver já salta na ponta do cursor. Há, porém, ocasiões em que a folha em branco é motivo de angústia por não haver tema interessante. Vê-se, então, o cronista na iminência de ter de inventar duas linhas de paleio, para deste modo poder cumprir o seu ritual de escrita. E as duas linhas escritas no início da crónica, tiradas com sacrifício sabe-se lá de onde, acabam por se estenderem pela folha adiante, desejosas de nunca mais terem fim.

Quando o cronista pensa em duas linhas, logo se lembra do seu tempo de escola primária. Lembra-se dos cadernos de duas linhas que o ensinaram a domar a caligrafia irreverente de aprendiz. A ponta da esferográfica ou o aparo da caneta de tinteiro deslizavam muito apertadinhas por entre as duas linhas do caderno. E nesse exercício, de incómodo espartilho, se educava o aluno para vir a ser um cidadão capaz de escrever um texto com agradável apresentação.

Hoje, esta prática pedagógica está posta de parte, vítima de fantasmas irracionais e de pretensa revolução educativa. A caligrafia dos alunos deste milénio parece um terreno bravio onde habitam silvas, cardos, giestas e toda a espécie de florestação bravia. É deixá-los escrever à rédea solta, sem regras, ao sabor da sua esperteza, pois assim virão a ser cidadãos disciplinados, sem traumas de infância! Na verdade, é de reconhecer que, para andar direitinho, sem sair das linhas, já temos os comboios. E não queremos fazer dos alunos comboios, pois não? Mais vale, um dia mais tarde, ficarem a ver passar os comboios, certinhos no cumprimento do seu destino.

E perguntará o leitor atento: O que ganharia a sociedade com a ressurreição do caderno de duas linhas? Talvez muito, respondo. Assim, de repente, atrevo-me a defender que a nossa classe política seria a principal beneficiária. Os jovens de hoje, embriões políticos de amanhã, aprenderiam a pautar a sua vida por entre linhas. Conscientes dos limites do tolerável, o seu comportamento nunca descarrilaria, isto é, nunca saltaria para fora das duas linhas que limitam o espaço da racionalidade. Exemplos magníficos de formação cívica, era vê-los reunidos a trabalhar dentro das linhas do politicamente correcto.

Mas a classe política tem uma imagem a defender neste país democrático. O exercício da democracia é avesso a linhas de força. Impor duas linhas a qualquer político é limitar o seu espaço de liberdade... e de criatividade. Ora, o político da democracia não gosta de se coser com apenas duas linhas. Artífice da palavra e artista de palco, consegue provar à evidência que a teoria das duas linhas só ao Estado Novo serviu. Por isso, ele tem sempre à mão mais de duas linhas para as situações imprevistas e complicadas.

Vejamos dois exemplos:

Se acaso o resultado das eleições não lhe foi favorável, ele puxa de uma linha, qual ilusionista, e eis que se assume publicamente vitorioso. Pensa que é, assim, um mestre das linhas mestras. Com este alinhavar, julga ter linha suficiente para remendar os buracos que a sua própria agulha criou.

Se a lição que deu à plateia, durante um acto solene, foi de verdadeira democracia, denunciando os vendilhões do templo, é justo assistir-lhe o direito de, num momento de aflição, puxar por uma linha e por ela fugir, deixando os opositores à espera de quem não prometeu regressar.

Tal como eu disse no início desta crónica, o que mais custa é desencantar duas linhas de conversa. O resto vem depois, espontaneamente. Duas linhas puxam mais duas, à semelhança das cerejas, e assim se constrói o texto que deixará descansado e feliz o cronista... até à hora de escrever outro. E se nestas linhas escritas por mim deixei, porventura, certos subentendidos entre linhas, não é defeito meu; é o jeito de quem aprendeu a escrever num caderno de duas linhas.



Jornal da Mealhada, 396, 06.03.2002