DUAS LINHAS
Depara-se o cronista com a folha em
branco no momento da escrita. A superfície branca depressa ficará manchada de
tinta preta, pois a ideia a desenvolver já salta na ponta do cursor. Há, porém,
ocasiões em que a folha em branco é motivo de angústia por não haver tema
interessante. Vê-se, então, o cronista na iminência de ter de inventar duas
linhas de paleio, para deste modo poder cumprir o seu ritual de escrita. E as
duas linhas escritas no início da crónica, tiradas com sacrifício sabe-se lá de
onde, acabam por se estenderem pela folha adiante, desejosas de nunca mais
terem fim.
Quando o cronista pensa em duas linhas,
logo se lembra do seu tempo de escola primária. Lembra-se dos cadernos de duas
linhas que o ensinaram a domar a caligrafia irreverente de aprendiz. A ponta da
esferográfica ou o aparo da caneta de tinteiro deslizavam muito apertadinhas
por entre as duas linhas do caderno. E nesse exercício, de incómodo espartilho,
se educava o aluno para vir a ser um cidadão capaz de escrever um texto com
agradável apresentação.
Hoje, esta prática pedagógica está posta
de parte, vítima de fantasmas irracionais e de pretensa revolução educativa. A
caligrafia dos alunos deste milénio parece um terreno bravio onde habitam
silvas, cardos, giestas e toda a espécie de florestação bravia. É deixá-los
escrever à rédea solta, sem regras, ao sabor da sua esperteza, pois assim virão
a ser cidadãos disciplinados, sem traumas de infância! Na verdade, é de
reconhecer que, para andar direitinho, sem sair das linhas, já temos os
comboios. E não queremos fazer dos alunos comboios, pois não? Mais vale, um dia
mais tarde, ficarem a ver passar os comboios, certinhos no cumprimento do seu
destino.
E perguntará o leitor atento: O que
ganharia a sociedade com a ressurreição do caderno de duas linhas? Talvez
muito, respondo. Assim, de repente, atrevo-me a defender que a nossa classe
política seria a principal beneficiária. Os jovens de hoje, embriões políticos
de amanhã, aprenderiam a pautar a sua vida por entre linhas. Conscientes dos
limites do tolerável, o seu comportamento nunca descarrilaria, isto é, nunca
saltaria para fora das duas linhas que limitam o espaço da racionalidade.
Exemplos magníficos de formação cívica, era vê-los reunidos a trabalhar dentro
das linhas do politicamente correcto.
Mas a classe política tem uma imagem a
defender neste país democrático. O exercício da democracia é avesso a linhas de
força. Impor duas linhas a qualquer político é limitar o seu espaço de
liberdade... e de criatividade. Ora, o político da democracia não gosta de se
coser com apenas duas linhas. Artífice da palavra e artista de palco, consegue
provar à evidência que a teoria das duas linhas só ao Estado Novo serviu. Por
isso, ele tem sempre à mão mais de duas linhas para as situações imprevistas e
complicadas.
Vejamos dois exemplos:
Se acaso o resultado das eleições não
lhe foi favorável, ele puxa de uma linha, qual ilusionista, e eis que se assume
publicamente vitorioso. Pensa que é, assim, um mestre das linhas mestras. Com
este alinhavar, julga ter linha suficiente para remendar os buracos que a sua
própria agulha criou.
Se a lição que deu à plateia, durante um
acto solene, foi de verdadeira democracia, denunciando os vendilhões do templo,
é justo assistir-lhe o direito de, num momento de aflição, puxar por uma linha
e por ela fugir, deixando os opositores à espera de quem não prometeu
regressar.
Tal como eu disse no início desta
crónica, o que mais custa é desencantar duas linhas de conversa. O resto vem
depois, espontaneamente. Duas linhas puxam mais duas, à semelhança das cerejas,
e assim se constrói o texto que deixará descansado e feliz o cronista... até à
hora de escrever outro. E se nestas linhas escritas por mim deixei, porventura,
certos subentendidos entre linhas, não é defeito meu; é o jeito de quem
aprendeu a escrever num caderno de duas linhas.
Jornal
da Mealhada, 396,
06.03.2002