A CIGARRA E A FORMIGA
Julga o caro leitor que hoje venho aqui contar a clássica fábula da
cigarra e a formiga? Não é esse o meu propósito. Reproduzir aqui, textualmente,
as palavras que narram essa história de cunho moralizante é coisa que eu nunca faria.
Quero evitar a velha história mas dela não me livro como ponto de
partida. E tudo por culpa do Verão. Do Verão das tardes quentes, dessas tardes
que levam os passos ao encontro da natureza. Passeios pelos campos, pinhais e
vinhedos, revisitando os sítios do passado que fazem parte de nós. Reconhecer
os cheiros que a terra exala, dispersos no ar pela brisa da tarde. As narinas
embriagam-se de sabores a terra sedenta, a palha, a caruma, a eucalipto, a
malmequeres; de sabor refrescante, o cheiro líquido da água dos poços e dos
ribeiros. Aos ouvidos chega uma sinfonia de sons orquestrados por grilos,
passarada e cigarras.
Cigarras... Pois foi o canto deste bicho que fez suspender os meus passos
durante um passeio campestre.
A memória, de repente, transportou-me ao tempo da escola primária. Vi-me
a folhear o livro da quarta classe e a ler a fábula da cigarra e a formiga.
Despertei desta memória. Olhei para o chão à minha ilharga, fiz visão de
raios X, mas carreiro de formigas laboriosas não havia. Paciência!
Voltando à fábula, todo o seu novelo se desfiou nos meus pensamentos,
imaginando as sacrificadas e previdentes formigas no labor quotidiano de
armazenar o sustento para o futuro próximo, ou seja, o Inverno. Saboreando as
delícias do Verão, no remanso fresco duma árvore, exalta a cigarra hinos de
alegria à vida, com um refrão que me parece ser assim: «A vida é bela! A vida é
bela!». No solo, debaixo da árvore, formiga a formiga se movimenta o trabalho.
E a cigarra repetindo, provocando a formiga: «A vida é bela! A vida é bela!».
A lição de moral, no fim, evidencia-se com o castigo aplicado à cigarra:
mortinha de fome, no Inverno, sujeita-se a pedir esmola à poupada e
trabalhadora formiga.
Hoje percebo que a história, seleccionada para figurar no livro oficial
da instrução primária, tinha implicações político-ideológicas. O ensino do
Estado Novo via na fábula um bom exemplo de pedagogia do trabalho e da
poupança.
Assim quedo a ouvir o canto da cigarra, levou-me a memória uns anos mais
à frente, ao tempo do liceu, já depois do 25 de Abril. E novamente a cigarra e
a formiga me visitaram, num conto de Miguel Torga.
No conto deste autor a mensagem é subvertida. O canto da cigarra,
expressão de preguiça na velha fábula, é agora sinónimo de criação artística.
Poeta do canto, este ser vive a sua liberdade plena, criativa, sem estar
sujeito aos valores normativos da sociedade. O sentido da sua vida é criar,
liberto de um trabalho que escraviza e automatiza, de um modo de vida que
garante o sustento material mas que priva a alma de sentir e fruir o que a vida
tem de verdadeiramente belo.
Neste confronto, considerando as duas versões da história, uma questão,
com respostas divergentes, se levanta: a de se saber onde está realmente a
riqueza. Na cigarra ou na formiga?
Desperto destas cogitações, mantive-me mais uns minutos a escutar o canto
da cigarra na oliveira. Era um canto agradável, de facto, que dava vida à tarde
sonolenta. Mas, marcado por reflexões de índole intelectual, comecei a registar
na pauta dos meus ouvidos os repetitivos acordes musicais da cigarra perto de
mim. Era sempre o mesmo ritmo, a mesma musicalidade, a mesma letra, o mesmo
refrão.
«A vida é bela! A vida é bela!»
A cigarra era, afinal, prisioneira de um canto único. Que monotonia!
Também a formiga vivia prisioneira de um único trabalho trilhado a negro
no chão da vida. Que monotonia!
E dali me afastei, procurando outro caminho. Um caminho que não fosse
cigarra nem formiga.
Jornal da Mealhada, 418, 04.09.2002
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