Dentro de casa, pressinto no exterior
uma tarde anoitecida pelas nuvens escuras a abafar a cidade. Espreito pela
janela e observo que a iluminação pálida dos candeeiros públicos, os reclamos
de cores berrantes e o festival de luzes natalícias tornaram a tarde ainda mais
anoitecida.
É hora de recolhimento, de encontro
familiar, e a rua está silenciosa e abandonada nesta noite de quase Natal. Tal
como o prédio onde habito. Situação bastante estranha para mim, por estar
habituado a ver morar nele, dia após dia, o barulho da vizinhança.
Ouço agora, límpido aos meus ouvidos,
como nunca me tinha acontecido, um mio ternamente apelativo do meu gato.
Chego-me a ele, faço-lhe uma festa macia sobre o pêlo e, juntos, partilhamos o
sofá, contentes por termos tido de presente uma noite de silêncio só para nós.
Ligo a televisão. O noticiário da tarde
enche o ecrã. Às primeiras palavras ouvidas, reconheço que a informação
dominante continua a ser a mesma, complementada com novos detalhes acerca do
terrorismo internacional: World Trade Center... Talibans... Bin
Laden...Anthrax...
Desligo a televisão, farto de ser
invadido por tantas guerras. Quero fruir o milagre desta tarde feita de
silêncio. Estendido de corpo inteiro no sofá, ao lado do meu gato, assim me deixo
ficar numa leveza nunca sentida.
Mas o silêncio que paira sobre mim está
cheio de barulhos. É um silêncio que deixa ressoar passos e correrias, vozes e
gritos, ruídos e estrondos. O prédio está vazio. Continuo, porém, a ouvir nele
a repetição sonora dos dias sempre iguais. Este silêncio tem dentro de si o
virus do quotidiano que aqui reina.
O adolescente do primeiro andar. Viciado
no tabaco e nos jogos de máquina, quando a sua arte de extorquir dinheiro aos
pais não resulta, abre as goelas a uma música de vibração metálica que faz
arrepiar todo o edifício e eriçar os pêlos ao meu gato.
A Guida do segundo andar. Mulher
atraente, com biografia desconhecida pelos inquilinos, não disfarça as inúmeras
visitas masculinas e femininas que lhe ajudam a encher o quarto com gritinhos
artificiais.
O árbitro reformado do terceiro andar.
Entrevado, passa os dias em frente ao televisor. Vê gravações de jogos de
futebol e sopra o seu entusiasmo num apito como se corresse atrás da bola.
O casal do quarto andar. Sem filhos, sem
amor, marido e mulher tecem as noites com barulhentas discussões surrealistas e
absurdas, até se esgotarem em chorosas juras de amor e caladas promessas de
vingança.
O músico do quinto andar. Faz soltar de
uma flauta melodias sedutoras, código de entendimento para a mulher do corno do
sexto andar, que logo se apressa na visita com justificações que o marido finge
acreditar.
O viúvo bêbedo do sétimo andar. Quando
chega mais derreado do que a noite, sai do elevador no piso errado e lança à
primeira porta que encontra murros e impropérios contra si próprio.
A vida no meu prédio é assim e nada
posso fazer. Já mudei de apartamento várias vezes, sempre à procura de um sítio
onde o silêncio me deixasse ser. Pobre ilusão! Pobre de mim! Longe estou de
conseguir comprar uma casita isolada, com um quintalito para alegrar o meu
gato.
Há silêncio absoluto, hoje, e só pode
ser um milagre de Natal!
Incrédulo, levanto-me. Volto à janela,
afasto a cortina e vejo a rua que, lentamente, a partir do nada, começa a
encher-se de transeuntes e automóveis. Não sei de onde surgiram assim de
repente. Tão de repente como o barulho que começa a crescer no prédio. Sente-se
a nascer no rés-do-chão, vem subindo os andares e incha contra o tecto do
oitavo andar, e mais não sobe porque acima de mim já nada existe.
O meu gato olha-me. Faço-lhe uma
carícia. Ambos sabemos que, por momentos, foi quase Natal.
Jornal da Mealhada, 383,
05.12.2001
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