Avisto ao longe o muro
de pedra e cal sob a mancha das roseiras. Sei que a velha casa rural está à
minha espera. Telefonei há uma semana pedindo à Ana Catraia para dar um jeito à
casa tomando-a habitável. Do outro lado do fio escutei a voz contente, que
finalmente ia ver de novo o seu menino. Fora a empregada lá de casa e mantinha
boas recordações de meus avós e de mim também. E agora ia eu novamente, depois
de longos anos de ausência, ao encontro do silêncio da casa e da paz bucólica
da aldeia.
Ana Catraia esperava-me
junto ao portão de ferro. O rosto tinha envelhecido bastante, mas o penteado e
a maneira de vestir não tinham mudado. Reparo que está corada de alegria, de um
tom rosáceo como as flores bem tratadas no pequeno jardim à entrada da casa.
Ainda mal saí do automóvel, e já me lança as mãos cheias de afagos maternais.
Solta-se de repente, examina-me de alto a baixo, e diz que o seu menino está
mais velho, veem-se algumas madeixas brancas, mas de um branco tingido de
desgosto. E que só agora reparava, o que era feito da esposa, a senhora dona
Sofia? E filhos? Não era já altura de pensar nisso?
Respondo que estou só,
que Sofia está a fazer uma viagem muito grande. Fica aturdida com a resposta
ambígua, não tem coragem de esmigalhar perguntas. Tiro a bagagem da mala do
automóvel, e ela prontamente a leva para dentro. Olho em redor, contemplo as
ruas da minha infância e vou arrumar a viatura na garagem.
Dou uma volta rápida
pela casa. Não quero hoje reviver nos objetos a memória do passado. Subo ao
piso superior, à sala, e abro a portada de acesso à varanda. Neste fim de
tarde, a brisa ligeira faz tremelicar as folhas secas do plátano secular
erguido à ilharga da varanda. Chegam até mim as exalações agradáveis de uma
sopa labrega e de um frango caseiro assado no forno. Lembro-me de descer à adega,
escolher uma das garrafas mergulhadas no pó do tempo. Amanhã terei a casa
inteira à minha disposição. O seu silêncio será só meu como o silêncio profundo
das tardes de sesta em que a casa parecia suspensa no tempo.
A madrugada traz-me um
coro de chilreios e um banho de luz sobre o corpo. Levanto-me e saio para o
pátio da casa. Ana Catraia não virá tão cedo, prevendo uma manhã de sono.
Inspiro o ar fresco da manhã e sinto-me invadido por um súbito apetite de figos
pingo-de-mel. A velha figueira estará ainda de pé? Está. Ao fundo do jardim,
por detrás da casa, teima em resistir à velhice, mais encostada ao ombro do
muro. Solta um leve ranger de ramos, à medida que me aproximo, saudosa dos anos
em que eu trepava por ela compartilhando os doces frutos. Provo dois figos
pingo-de-mel, ainda doces como a juventude, e passeio ao longo do muro. A
passarada esvoaça de árvore em árvore, assustada com os passos do homem que tem
as mãos em forma de fisga.
Volto ao pátio. No
mesmo sítio de outrora está a casinhota do cão, a lembrar uma outra vida que
ali habitou. E lembro-me — é um ladrar apagado, trazido pela brisa distante,
que me ecoa nos ouvidos — do Rex
perdigueiro que adorava Sofia. Era a ti, Sofia, durante as visitas que fazíamos
aos avós nos períodos de férias, que ele se atirava assanhado de alegria,
desafiando-te para passeios e correrias pelos montes fora, ávido de dispersão
total. Talvez farejasse em ti os odores da natureza, talvez visse nos teus
olhos o reflexo de uma perdiz provocadora. Vai, vai com ele Sofia, que eu fico
na cozinha a ver a avó entregue à sua geleia especialmente feita para mim;
depois, se entretanto não voltares, há um livro que me interessa no silêncio da
casa.
Ana Catraia está na
cozinha, tenho de te deixar, Sofia. Não quero que voltes desse teu passeio com
o Rex. Sabes muito bem que vim aqui à
procura do tempo perdido para me encontrar comigo próprio, para recriar um
tempo e um espaço que não deves preencher. Mas os objetos atraiçoam-nos:
olhamos para eles e há impressões digitais, pedaços de vida que a memória
transporta. Esta memória que não me larga, esta pele da vida.
Chegou a hora de revisitar
o interior da casa. Cada objeto é um pequeno instante de eternidade dentro de
mim: a mobília antiga, o misterioso relógio de cuco, a caixa de costura da avó,
as armas de caça do avô e um brinquedo de madeira empenado. Toco nos objetos e
o tempo para à minha volta.
Entro no quarto dos avós
e contemplo o retrato esmaecido. Falo com os olhos deles durante alguns
minutos. Eles sabem que preciso novamente da sua presença, da sua voz, das
caçadas no campo e do pão barrado com geleia.
Por último, hesito à
porta do quarto de meus pais. Entrar nesta divisão foi sempre, para mim, entrar
num mundo estranho e vago. A memória que procuro nos objetos ordenados é
imaginada, narrativa construída a partir de vozes dispersas. A única certeza é
dois rostos alegres e felizes, cheios de juventude, eternizados no retrato de
casamento. A presença dos pais na minha vida teve sempre a forma de uma sombra
fugidia. A ideia que fazia de meus pais era a de uma viagem sem regresso.
«Avó, o papá e a mamã?
Quando voltam? Nunca mais me vêm buscar, avó?
Fingindo assoar-se,
passava o lenço pelos olhos, e respondia: «Estão a fazer uma viagem muito
grande, queridinho! Olha, queres pão com geleia?»
Certo dia, entrei no
quarto para viajar um pouco com meus pais. Ana Catraia limpava o pó dos móveis.
Não resisti a perguntar-lhe: «Ana, quando regressam os papás?» Parou a limpeza
e respondeu para dentro dos meus olhos:
«Os papás estão a fazer
uma viagem muito grande. Já sabias, não já? Mas vou contar-te um segredo, que
fica entre nós: quando fores da altura desta vassoura, os teus pais virão
buscar-te. Até lá, tens de ter coragem, fazeres-te homem.»
Contente, sentia os
meus pais tão perto de mim, à distância de uma simples vassoura. Efémera ilusão!
Com o decorrer do tempo compreendi que a altura da vassoura estava a séculos de
distância.
De vez em quando
voltava ao quarto. Queria descobrir nas expressões dos pais o fim da viagem.
Mas eles estavam sempre alegres, sinal de que a viagem continuava sem fim.
Desde esse dia fiquei a saber que viajar é estar em permanente ausência, que
viajar é a anulação completa do ser.
Escolhi a varanda à
beira do plátano. Nestas tardes de verão sonolento, gosto de me sentir entre o
silêncio da casa e os sons difusos que chegam da aldeia e dos campos. Preciso
desta terra e destes ares, desta varanda e deste tempo sem relógio. Preciso
recuperar a memória da infância para que se sobreponha à do presente. Preciso
de recriar outras memórias para acreditar na ressurreição de mim.
Abro o livro que trouxe
comigo: No silêncio da casa à tarde, de
Fausto Lopo de Carvalho. Decidi comprá-lo no dia da partida. Aconteceu por
acaso: ao comprar o jornal na livraria, reparei no título do livro, que logo me
despertou o interesse. Ele era aquilo que eu vinha procurar à casa da aldeia:
silêncio. Talvez me ajudasse também a encontrar o silêncio interior que tanto
busco. Que personagens dariam vida ao livro? E aqui está ele, aberto diante de
mim, tal como a tarde inchada de sol.
No silêncio da casa à tarde, na
sombra que as árvores deixavam, na quietude das portas, na solidão da vida
parada, tinha ele iniciado aqueles dias de férias. Para ele, só naquele mundo,
fresco de vozes e maduro de recordações, se iniciava uma caminhada através do
tempo, desse fluir de instantes revividos, nessa transposição no futuro do que
de si trazia o passado: paixões, desespero ou indiferença. Nessas férias sem
repouso...
No silêncio da casa à
tarde, na sombra que a árvore derrama sobre a varanda, descanso o livro sobre o
regaço e contemplo distraidamente a montanha erguida na distância. Este outro
silêncio que habita o livro ecoa por dentro de mim. Há silêncios que perturbam,
que avivam a memória. Não resisto ao impulso de iniciar uma caminhada através
do tempo, de percorrer os caminhos que quis deixar para trás. Talvez seja
necessário pisá-los uma vez mais para que possam desaparecer completamente da
pele da vida. Creio que tenho mesmo de apagar-te a imagem, Sofia!
No silêncio da casa
chegam-me instantes de ti. O rumor da tua voz enche a varanda, sinfonia
invisível, as palavras crescem claras e límpidas, e o teu corpo floresce
inteiro dentro de mim.
Estás quase a falar, são
os olhos que te revelam, vais agora mesmo repetir a tua frase mágica: «A vida
são viagens!»
Foi, aliás, durante uma
viagem que nos conhecemos. Era uma excursão de estudantes finalistas. Eu seguia
muito quietinho, sempre no mesmo lugar, quase nem saía do autocarro nos pontos
de visita obrigatória. Estranhaste a minha atitude e quiseste saber se me
sentia bem. Claro que me sentia? Apenas detestava viajar! A partir desse mo-
mento apostaste contigo mesma que serias capaz de me fazer descobrir as
maravilhas do mundo, de me fazer sentir que viajar é viver. A partir desse momento
começou também a viagem da nossa vida.
Tempos depois, já
casados, planeavas todas as férias com entusiasmo pueril.
«Este mês, aproveitamos
o feriado de sexta-feira e damos um salto à Grécia.»
Com elegância,
descobrias o peito, simulavas uma estátua grega, e exclamavas:
«Afrodite! Gostas?»
Eu tocava levemente o
teu peito, simples toque de dedo, quase a medo, e quebrava todo o mistério.
«Não. Demasiado fria.
Prefiro a nossa casa, prefiro viajar pelo teu corpo. Amar-te é possuir todas as
viagens, todas as férias do Mundo.»
E viajávamos até à
última estrela, onde construía o império das minhas férias.
No silêncio da casa,
uma brisa ligeira banha-me o rosto de frescura. Tenho o tempo inteiro à minha
espera para recordar as nossas viagens, as nossas férias, tempo para reviver o
teu nome, a tua necessidade imperiosa de inventar férias, de imaginar viagens;
um apelo inexplicável de ir ao encontro do Mundo e fazer das férias o teu
rejuvenescimento cósmico.
Meu amor, deixa-me
fazer as viagens inesquecíveis, deixa-me fazer-te inteira até à explosão das
estrelas.
Era Brasil desta vez.
Quiseste respirar com o
pulmão do Mundo e foste árvore, planta e flor, imagem exótica de uma tela
impressionista.
Quiseste ser Amazonas e
foste caudal lânguido de mistérios insondáveis.
Quiseste ser índia e
foste natureza simples e fértil.
«Ah, hoje sou o
sortilégio da vida! Férias, para mim, é viajar, é procurar o pó de que somos
feitos, é ser universal!»
Cansado de tantas
férias peregrinas, apenas desejava possuir as férias do teu corpo. E, ao tocar
a tua pele macia, tu eras a aparição de Iracema, tu eras a índia dos lábios de
mel.
Meu amor:
Quero ainda recordar
África, onde foste gazela das estepes.
Quero ainda recordar
Ásia, onde foste muralha da China.
Quero ainda recordar
Gronelândia, onde foste esquimó.
Quero ainda recordar
Escandinávia, onde foste sol da meia-noite.
E quero ainda recordar
todas as viagens, todas as férias, onde foste até à exaustão de ti.
No silêncio da casa, um
avião traça o destino no céu azul.
Sofia, partiste para as
tuas férias eternas! Partiste numa viagem só tua, sem companhia! Mas partiste
com a serenidade de quem leva o Mundo inteiro dentro de si. Eu fico por cá, com
a sensação de que o meu corpo aberto a férias, aberto a viagens quiméricas, foi
o único local do Mundo que não chegou a acontecer em ti.
No silêncio da casa
ouve-se o canto de um pássaro.
Sinto agora que estou
preparado para entrar no silêncio do livro. No meu silêncio. Na minha casa.
1. O bloco de texto em itálico pertence ao
romance No silêncio da casa à tarde,
de Fausto Lopo de Carvalho.
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