NO SILÊNCIO DA CASA

Prémio Literário Horácio Bento de Gouveia/1994 (Câmara Municipal de S. Vicente - Madeira): 1º Prémio. Nota: Maria da Fonte e O Infinito, juntamente com o conto No Silêncio da Casa, constituem o conjunto de três contos distinguidos com o 1º prémio.
 
 
Avisto ao longe o muro de pedra e cal sob a mancha das roseiras. Sei que a velha casa rural está à minha espera. Telefonei há uma semana pedindo à Ana Catraia para dar um jeito à casa tomando-a habitável. Do outro lado do fio escutei a voz contente, que finalmente ia ver de novo o seu menino. Fora a empregada lá de casa e mantinha boas recordações de meus avós e de mim também. E agora ia eu novamente, depois de longos anos de ausência, ao encontro do silêncio da casa e da paz bucólica da aldeia.
Ana Catraia esperava-me junto ao portão de ferro. O rosto tinha envelhecido bastante, mas o penteado e a maneira de vestir não tinham mudado. Reparo que está corada de alegria, de um tom rosáceo como as flores bem tratadas no pequeno jardim à entrada da casa. Ainda mal saí do automóvel, e já me lança as mãos cheias de afagos maternais. Solta-se de repente, examina-me de alto a baixo, e diz que o seu menino está mais velho, veem-se algumas madeixas brancas, mas de um branco tingido de desgosto. E que só agora reparava, o que era feito da esposa, a senhora dona Sofia? E filhos? Não era já altura de pensar nisso?
Respondo que estou só, que Sofia está a fazer uma viagem muito grande. Fica aturdida com a resposta ambígua, não tem coragem de esmigalhar perguntas. Tiro a bagagem da mala do automóvel, e ela prontamente a leva para dentro. Olho em redor, contemplo as ruas da minha infância e vou arrumar a viatura na garagem.
Dou uma volta rápida pela casa. Não quero hoje reviver nos objetos a memória do passado. Subo ao piso superior, à sala, e abro a portada de acesso à varanda. Neste fim de tarde, a brisa ligeira faz tremelicar as folhas secas do plátano secular erguido à ilharga da varanda. Chegam até mim as exalações agradáveis de uma sopa labrega e de um frango caseiro assado no forno. Lembro-me de descer à adega, escolher uma das garrafas mergulhadas no pó do tempo. Amanhã terei a casa inteira à minha disposição. O seu silêncio será só meu como o silêncio profundo das tardes de sesta em que a casa parecia suspensa no tempo.
A madrugada traz-me um coro de chilreios e um banho de luz sobre o corpo. Levanto-me e saio para o pátio da casa. Ana Catraia não virá tão cedo, prevendo uma manhã de sono. Inspiro o ar fresco da manhã e sinto-me invadido por um súbito apetite de figos pingo-de-mel. A velha figueira estará ainda de pé? Está. Ao fundo do jardim, por detrás da casa, teima em resistir à velhice, mais encostada ao ombro do muro. Solta um leve ranger de ramos, à medida que me aproximo, saudosa dos anos em que eu trepava por ela compartilhando os doces frutos. Provo dois figos pingo-de-mel, ainda doces como a juventude, e passeio ao longo do muro. A passarada esvoaça de árvore em árvore, assustada com os passos do homem que tem as mãos em forma de fisga.
Volto ao pátio. No mesmo sítio de outrora está a casinhota do cão, a lembrar uma outra vida que ali habitou. E lembro-me — é um ladrar apagado, trazido pela brisa distante, que me ecoa nos ouvidos — do Rex perdigueiro que adorava Sofia. Era a ti, Sofia, durante as visitas que fazíamos aos avós nos períodos de férias, que ele se atirava assanhado de alegria, desafiando-te para passeios e correrias pelos montes fora, ávido de dispersão total. Talvez farejasse em ti os odores da natureza, talvez visse nos teus olhos o reflexo de uma perdiz provocadora. Vai, vai com ele Sofia, que eu fico na cozinha a ver a avó entregue à sua geleia especialmente feita para mim; depois, se entretanto não voltares, há um livro que me interessa no silêncio da casa.
Ana Catraia está na cozinha, tenho de te deixar, Sofia. Não quero que voltes desse teu passeio com o Rex. Sabes muito bem que vim aqui à procura do tempo perdido para me encontrar comigo próprio, para recriar um tempo e um espaço que não deves preencher. Mas os objetos atraiçoam-nos: olhamos para eles e há impressões digitais, pedaços de vida que a memória transporta. Esta memória que não me larga, esta pele da vida.
Chegou a hora de revisitar o interior da casa. Cada objeto é um pequeno instante de eternidade dentro de mim: a mobília antiga, o misterioso relógio de cuco, a caixa de costura da avó, as armas de caça do avô e um brinquedo de madeira empenado. Toco nos objetos e o tempo para à minha volta.
Entro no quarto dos avós e contemplo o retrato esmaecido. Falo com os olhos deles durante alguns minutos. Eles sabem que preciso novamente da sua presença, da sua voz, das caçadas no campo e do pão barrado com geleia.
Por último, hesito à porta do quarto de meus pais. Entrar nesta divisão foi sempre, para mim, entrar num mundo estranho e vago. A memória que procuro nos objetos ordenados é imaginada, narrativa construída a partir de vozes dispersas. A única certeza é dois rostos alegres e felizes, cheios de juventude, eternizados no retrato de casamento. A presença dos pais na minha vida teve sempre a forma de uma sombra fugidia. A ideia que fazia de meus pais era a de uma viagem sem regresso.
«Avó, o papá e a mamã? Quando voltam? Nunca mais me vêm buscar, avó?
Fingindo assoar-se, passava o lenço pelos olhos, e respondia: «Estão a fazer uma viagem muito grande, queridinho! Olha, queres pão com geleia?»
Certo dia, entrei no quarto para viajar um pouco com meus pais. Ana Catraia limpava o pó dos móveis. Não resisti a perguntar-lhe: «Ana, quando regressam os papás?» Parou a limpeza e respondeu para dentro dos meus olhos:
«Os papás estão a fazer uma viagem muito grande. Já sabias, não já? Mas vou contar-te um segredo, que fica entre nós: quando fores da altura desta vassoura, os teus pais virão buscar-te. Até lá, tens de ter coragem, fazeres-te homem.»
Contente, sentia os meus pais tão perto de mim, à distância de uma simples vassoura. Efémera ilusão! Com o decorrer do tempo compreendi que a altura da vassoura estava a séculos de distância.
De vez em quando voltava ao quarto. Queria descobrir nas expressões dos pais o fim da viagem. Mas eles estavam sempre alegres, sinal de que a viagem continuava sem fim. Desde esse dia fiquei a saber que viajar é estar em permanente ausência, que viajar é a anulação completa do ser.
Escolhi a varanda à beira do plátano. Nestas tardes de verão sonolento, gosto de me sentir entre o silêncio da casa e os sons difusos que chegam da aldeia e dos campos. Preciso desta terra e destes ares, desta varanda e deste tempo sem relógio. Preciso recuperar a memória da infância para que se sobreponha à do presente. Preciso de recriar outras memórias para acreditar na ressurreição de mim.
Abro o livro que trouxe comigo: No silêncio da casa à tarde, de Fausto Lopo de Carvalho. Decidi comprá-lo no dia da partida. Aconteceu por acaso: ao comprar o jornal na livraria, reparei no título do livro, que logo me despertou o interesse. Ele era aquilo que eu vinha procurar à casa da aldeia: silêncio. Talvez me ajudasse também a encontrar o silêncio interior que tanto busco. Que personagens dariam vida ao livro? E aqui está ele, aberto diante de mim, tal como a tarde inchada de sol. 

No silêncio da casa à tarde, na sombra que as árvores deixavam, na quietude das portas, na solidão da vida parada, tinha ele iniciado aqueles dias de férias. Para ele, só naquele mundo, fresco de vozes e maduro de recordações, se iniciava uma caminhada através do tempo, desse fluir de instantes revividos, nessa transposição no futuro do que de si trazia o passado: paixões, desespero ou indiferença. Nessas férias sem repouso...

No silêncio da casa à tarde, na sombra que a árvore derrama sobre a varanda, descanso o livro sobre o regaço e contemplo distraidamente a montanha erguida na distância. Este outro silêncio que habita o livro ecoa por dentro de mim. Há silêncios que perturbam, que avivam a memória. Não resisto ao impulso de iniciar uma caminhada através do tempo, de percorrer os caminhos que quis deixar para trás. Talvez seja necessário pisá-los uma vez mais para que possam desaparecer completamente da pele da vida. Creio que tenho mesmo de apagar-te a imagem, Sofia!
No silêncio da casa chegam-me instantes de ti. O rumor da tua voz enche a varanda, sinfonia invisível, as palavras crescem claras e límpidas, e o teu corpo floresce inteiro dentro de mim.
Estás quase a falar, são os olhos que te revelam, vais agora mesmo repetir a tua frase mágica: «A vida são viagens!»
Foi, aliás, durante uma viagem que nos conhecemos. Era uma excursão de estudantes finalistas. Eu seguia muito quietinho, sempre no mesmo lugar, quase nem saía do autocarro nos pontos de visita obrigatória. Estranhaste a minha atitude e quiseste saber se me sentia bem. Claro que me sentia? Apenas detestava viajar! A partir desse mo- mento apostaste contigo mesma que serias capaz de me fazer descobrir as maravilhas do mundo, de me fazer sentir que viajar é viver. A partir desse momento começou também a viagem da nossa vida.
Tempos depois, já casados, planeavas todas as férias com entusiasmo pueril.
«Este mês, aproveitamos o feriado de sexta-feira e damos um salto à Grécia.»
Com elegância, descobrias o peito, simulavas uma estátua grega, e exclamavas:
«Afrodite! Gostas?»
Eu tocava levemente o teu peito, simples toque de dedo, quase a medo, e quebrava todo o mistério.
«Não. Demasiado fria. Prefiro a nossa casa, prefiro viajar pelo teu corpo. Amar-te é possuir todas as viagens, todas as férias do Mundo.»
E viajávamos até à última estrela, onde construía o império das minhas férias.
No silêncio da casa, uma brisa ligeira banha-me o rosto de frescura. Tenho o tempo inteiro à minha espera para recordar as nossas viagens, as nossas férias, tempo para reviver o teu nome, a tua necessidade imperiosa de inventar férias, de imaginar viagens; um apelo inexplicável de ir ao encontro do Mundo e fazer das férias o teu rejuvenescimento cósmico.
Meu amor, deixa-me fazer as viagens inesquecíveis, deixa-me fazer-te inteira até à explosão das estrelas.
Era Brasil desta vez.
Quiseste respirar com o pulmão do Mundo e foste árvore, planta e flor, imagem exótica de uma tela impressionista.
Quiseste ser Amazonas e foste caudal lânguido de mistérios insondáveis.
Quiseste ser índia e foste natureza simples e fértil.
«Ah, hoje sou o sortilégio da vida! Férias, para mim, é viajar, é procurar o pó de que somos feitos, é ser universal!»
Cansado de tantas férias peregrinas, apenas desejava possuir as férias do teu corpo. E, ao tocar a tua pele macia, tu eras a aparição de Iracema, tu eras a índia dos lábios de mel.
Meu amor:
Quero ainda recordar África, onde foste gazela das estepes.
Quero ainda recordar Ásia, onde foste muralha da China.
Quero ainda recordar Gronelândia, onde foste esquimó.
Quero ainda recordar Escandinávia, onde foste sol da meia-noite.
E quero ainda recordar todas as viagens, todas as férias, onde foste até à exaustão de ti.
No silêncio da casa, um avião traça o destino no céu azul.
Sofia, partiste para as tuas férias eternas! Partiste numa viagem só tua, sem companhia! Mas partiste com a serenidade de quem leva o Mundo inteiro dentro de si. Eu fico por cá, com a sensação de que o meu corpo aberto a férias, aberto a viagens quiméricas, foi o único local do Mundo que não chegou a acontecer em ti.
No silêncio da casa ouve-se o canto de um pássaro.
Sinto agora que estou preparado para entrar no silêncio do livro. No meu silêncio. Na minha casa.


1. O bloco de texto em itálico pertence ao romance No silêncio da casa à tarde, de Fausto Lopo de Carvalho.

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