Sete horas da manhã.
No pátio interior da
casa rústica de Matias agitam-se os preparativos da vindima: das tesouras às
dornas tudo se avoluma. E, aos passos e vozes do pessoal ganhador, acordado em
chapadas de água na pia de pedra farta de bois, as aves de capoeira exibem-se
em estridentes onomatopeias.
Outras pessoas vêm de
suas casas espalhadas pelo povoado: homens, mulheres e jovens; todos abraçados
às cestas de vime, chegando-se aos companheiros de trabalho com sorrisos de
frescura, prontos para a colheita do ganha-pão.
A uma ordem muda do
patrão, todos se concentram mentalmente no destino combinado, abrindo o portão
para as vinhas estendidas na paisagem. Por descidas e subidas que a aldeia
oferece aos vindimadores, conversas soltas despertam a manhã.
Hora depois, os
primeiros poceiros de vime cheios de uvas começam a afirmar-se no limite da
vinha. Com frequência, agiganta-se no ar um poceiro, coleando o caminho inventado
por entre cepas, até se alojar na berma do carreiro à espera da dorna que há de
chegar. Neste afã itinerante, os homens auxiliam as mulheres, mais fracas em puxar
o poceiro dos pés à cabeça.
Berta, na fragilidade
dos dezoito anos, socorre-se amiúde de um jovem vindimador que, oferecendo-lhe
os braços, pelos olhos a segura nos seus em repetidas insistências, ficando a
moça, quase esquecida do peso que sustenta sobre a cabeça. Como aragem que
passa, ela segue o seu caminho, enquanto o rapaz fica especado no terreno saboreando
o andamento ligeiro da moça. Ao longe, na distância da vinha, ele adivinha as
faces afogueadas da jovem que as outras raparigas interpretam como efeito da
sobrecarga, chegando mesmo a reconhecer que em tão grande força é maior a
beleza.
A vindima continua.
À medida que a vinha se
vai libertando do peso dos frutos, esmorecendo de corpo despido, Berta começa a
vestir-se de floridos pensamentos a que a sua idade é pródiga neste mister. Ela
alheia-se cada vez mais do burburinho da vindima, das conversas que escuta sem
ouvir, colhendo as uvas com tesouradas distraídas. Por vezes, liberta com a mão
gavinhas do lenço de cotim, e rápida se prende em outros elos, atenta que está
ao domador exemplar de gestos obreiros. Berta sabe que a si os oferece ele com
seu tronco nu, soberbo no altar da vinha. Impelida por curiosidade indizível,
na paleta do seu olhar aviva os contornos do rapagão que a almeja. E,
construindo a figura de corpo inteiro, não se esquece já desse rosto farto de
homem que começa a interessá-la.
Presa nos liames da imaginação,
torna-se agora cúmplice de olhares furtivos em redor de inúmeras videiras. Subitamente,
interroga-se acerca do mistério aliciante, do élan condutor. O cesto de vime que recebeu uvas à boca-cheia é
despejado na rotina da vindima. De novo Berta regressa ao afã de o encher,
aceitando que no enleio do jogo amoroso um par de olhos a dispa de sonhadas
parras.
E a tarde escapa-se
inteira de cachos.
Outro dia de vindima
chega, que Berta aguardara com secreta ânsia, desejosa da continuidade do
sortilégio amoroso. A novidade do jogo só a ela pertence, rainha na descoberta
do império do amor. Do alto do seu trono, o mundo afigura-se-lhe como um vinha
imensa de dádivas.
A vindima vai avançando
e a curiosidade de Berta também. Por simuladas conversas desinteressadas, aqui
e ali, vai captando das amigas uns instantes de biografia do seu romântico
Crisóstomo. Viera ele dos lados de Mortágua para cumprir nas terras da Bairrada
a colheita prometedora dos vinhedos. Aliás, todos os anos cumpria este ritual.
Com vaidade, gabava-se, sorridente, de que parte da sua vida era já uma vinha
bastante extensa. Era chegar o mês de setembro e vê-lo calcorrear, uma vez no
Douro, depois no Alentejo, este ano na Bairrada. E até hoje, dizia ele, mais
sorridente, nunca se queixara das colheitas. Jovem mas homem feito, herdeiro de
boa fortuna e letrado, procurava nas vindimas o alento para enfrentar uma vida
de futuro. Gostava da natureza e da vida rústica, das coisas simples da vida,
não sentisse ele no sangue a raiz telúrica dos antepassados. Da terra fecunda
colhia o seu alimento, a sua vida.
Entusiasmada com estas
informações, Berta sonha-o um deus. O encanto da vindima é agora Crisóstomo a
dominar as vinhas. Dos seus braços promessas tácitas libertam-se, que os olhos
de Berta decifram no ritual da vindima, aberta à colheita que o tempo apela.
A hora de acarretar os
poceiros para a borda da vinha de novo os junta. O pessoal vindimador vê neles
duas folhas que se uniram pelo acaso do vento. Demorando-se junto a Crisóstomo,
Berta apressa-se a largar a vasilha no sítio indicado. No final do vaivém,
tempos depois, ela apercebe-se pela primeira vez do mosto que por dentro da
blusa de chita, bem sobre os seios despertos, docemente a incomoda. Por
instinto, move-se fugidia no alcance da ribeira à ilharga não distante. Por
entre a folhagem chega o rumor entardecido da vindima. Entrando na água, Berta
não resiste a contemplar-se, protegida por frágeis salgueiros. De faces rosadas
e cabelos loiros que a água branqueia, ela esquece a trança de água subindo na
fogosidade do corpo, tão embebida está nos pensamentos que lhe correm. Finalmente,
um gesto seu quebra as límpidas águas da ribeira. Um alcatruz de mãos ergue a
limpeza à altura dos seios translúcidos de mosto.
Perturbado por
masculinos passos que da ribeira se aproximam, um pintassilgo interrompe o
canto. Alheia aos avisos da natureza, Berta surpreende-se quando as águas lhe
refletem a imagem de Crisóstomo. Um gesto brusco encobre o pudor que a
consciência recomenda, atida às palavras primeiras de Crisóstomo.
— Berta, quem me dera
ser a água da ribeira para nos teus seios me deleitar!
Palavras assim valem ouro,
a que uma resposta de quilate se ajusta, agora recomposta da surpresa e do seu
lugar.
— Confiei nesta águas
que me limparam; espero que as tuas palavras não me sujem.
Retirando-se com um
sorriso nos lábios, Crisóstomo assegura-lhe:
— De todas as vindimas
do mundo, tu és a uva mais apetecida. Quero colhê-la, não estragá-la.
E Berta se narcisa,
enlevando-se na volúpia das águas.
Pouco depois, junto aos
poceiros enfileirados na orla da vinha, o pessoal resmunga o atraso de Manel
das Dornas. O cansaço e o anseio do repouso são visíveis nas linhas dos rostos.
Um homem e uma mulher bastam para ajudar a encher o carro. E, nesta conclusão
herdada dos avós, os nomes de Berta e Crisóstomo saem eleitos pelo acaso da
situação, sem que a vida vivida do povo se aperceba dos lampejos momentâneos
que dois pares de olhos trocam entre si.
A noite estampa-se
vagarosa.
À distância somem-se os
últimos vultos dos jornaleiros apressados na lentidão da noite. Presos à
vigília da colheita, os enamorados tentam adivinhar nos estalidos invisíveis a
aparição de Manel das Domas, sempre teimoso em chegar tarde.
A mordiscar bagos de
uvas que rapina da colheita, Crisóstomo fala com voz segura:
— Tenho a tropa feita,
sou rico, tenho emprego de futuro, só me falta...
Suspende a frase que
Berta cala no peito ardente, sem coragem de o fitar.
— Só me falta… —
continuou — só me falta uma companheira honesta, trabalhadora e bonita... como
tu.
Berta estremece de
emoção e rejeita o elogio com dois gaguejos.
Crisóstomo insiste,
agora com voz mais melíflua:
— Sim, como tu. Bem
sabes que te amo desde a primeira vez em que te vi.
E, sem esperar a
resposta da moça, dela se aproxima abrindo a mão em dádiva de bagos. Unidas as
mãos que os bagos esquecem derramados pelo chão, promessas sedutoras saem da boca
de ouro em troca de beijos sôfregos.
O crepúsculo da noite
paira sobre eles como as asas negras do milhafre. Grilos e cigarras ensaiam a
primeira sinfonia noturna.
Depois, num momento de
palavras inacabadas a que o silêncio anoitecido completa o sentido, Crisóstomo
avança seguro pelo coração da noite, recebendo de Berta trémula súplica de
mulher.
Sobre os poceiros da
farta colheita, os corpos saboreiam-se no mosto de uvas apetecidas.
Lá ao longe, entre
choradeira de rodas, uma luz anuncia gente que se aproxima.
A colheita cumpria-se.
Prémio de Conto Câmara Municipal de S.
Pedro do Sul- 1991: Menção Honrosa.
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