Na última visita
descobri que a minha aldeia pertence cada vez mais ao espaço da memória. Quase
nada me prende à terra natal desde o falecimento do meu avô. À exceção da velha
casa e da estação, e de dois ou três amigos, que ainda lá permanecem presos às
raízes, o resto é apenas uma ideia muito vaga perdida na neblina da memória.
O encerramento da
pequena estação há alguns anos tinha acentuado o respirar moribundo que se lhe
ouvia. O meu avô, nessa época, dissera-me tristemente que o tempo parara com a
ausência dos comboios. Sentia a falta dos apitos rompendo a manhã, dos rostos
dos viajantes encostados às janelas e das pequenas novidades que desciam na
estação. Posso dizer, aliás, que o encerramento da estação foi o golpe fatal na
vida da aldeia e, principalmente, na de meu avô.
Quando era pequeno,
ouvia a minha avó desabafar, nos momentos de exaltação, com os cabelos
desalinhados sobre a testa e a colher de pau na mão, que estava cega quando
casou com o avô. Estas cenas repetiam-se quando ele decidia fazer as malas e
anunciar que ia partir para uma viagem sem regresso, que ia finalmente ao
encontro do seu el-dourado. O meu pai, habituado a estas cenas, emprestava-lhe um
pouco de realismo: «Pois vamos os dois! É só fazer a trouxa num segundo.» A minha
avó lançava as mãos à cabeça, que tal pai, tal filho. Mas o avô é que rejeitava
logo a proposta: «Não te metas na minha vida. A viagem é minha e do Necas. Só
de nós os dois, ouviste?»
O Necas era outro
sonhador como ele. Desde a infância que combinavam sair da aldeia, de ir à
procura de uma outra vida num outro lugar. A primeira vez que isto aconteceu,
deu falatório durante meses. Eles chegaram à estação e sentaram-se no cais à
espera. O chefe estranhou a presença dos garotos e quis saber das suas
intenções. Esperavam um amigo no próximo comboio. O homem deixou-os em paz. Só
descobriu a matreirice quando os garotos subiram para o comboio em movimento.
Avisada a estação seguinte, a viagem terminou aí e o atrevimento em casa com
uma grande sova.
As tentativas de evasão
repetiram-se. Era uma força que chegava de repente, sem qualquer motivo
aparente, e impelia-os a imaginar planos de viagens. Durante uma semana
deliravam com os preparativos. Não havia casa que não soubesse dos seus projetos.
Chegaram a despertar invejas e a serem vistos como heróis aquando da primeira
vez que anunciaram publicamente a partida. De outra coisa não se falava na
taberna, à mesa, à lareira, em qualquer sítio onde estivessem pelo menos duas
pessoas. Os habitantes perguntavam o destino da viagem e eles respondiam que só
pensariam nisso na estação. E esta resposta aguçava ainda mais a curiosidade,
dando azo a efabulações de tal ordem que chegou mesmo a espalhar-se o rumor de
que haviam sido eleitos por Deus para uma missão divina.
No dia da partida, a
aldeia acompanhou-os à estação. Os mais idosos recomendavam mil cuidados com as
sete partidas do mundo, as moças solteiras pediam prendas e promessas de
casamento, os familiares queriam uma carta sem demora, e só os cães e os gatos
assistiam a tudo de boca calada. Durante o percurso fizeram-se apostas. Um alqueire
de milho, uma carrada de estrume, duas galinhas e um porco asseguravam a
certeza do destino dos jovens aventureiros. Entraram na estação e sentaram-se
em cima das malas à espera do comboio. Assim estiveram algum tempo; calados, de
olhos perdidos na lonjura dos carris. Os espectadores murmurando destinos.
O chefe da estação veio
perguntar-lhes se não tiravam bilhete. E a multidão arrastou-se em peso,
desejosa de uma palavra que ditasse a sua sorte na aposta. Era, realmente,
necessário tirar bilhete, pensaram os dois simultaneamente. Mas para onde?
Um silvo ao longe e o
ranger dos carris anunciaram a aproximação do comboio. Procuraram-no com a
vista e leram o futuro no rosto que vinha ao seu encontro. Vamos? Para onde?
A locomotiva chegava ao
cais. Os passageiros abriram as janelas e mostravam espanto e curiosidade por
verem tanta gente. Estariam à espera de alguém importante? Talvez um ministro?
O chefe, impaciente, perguntou se iam ou ficavam. Havia horários a cumprir.
Vamos? Para onde?
«Então, o que decidem?»
Olharam os passageiros,
os conterrâneos e o comboio.
«Que fazer? Ir? Neste
comboio que, só agora reparamos, não nos inspira confiança? Vamos mas é embora!
Este não é o nosso comboio. Outros virão!»
Pegaram nas malas e
voltaram à aldeia. Atrás deles ficavam a desilusão dos apostadores e o apito do
comboio que tinha um destino a cumprir.
A estação é um esboço
pálido no lugar de outrora. Só a minha memória a conserva na vida que já lhe
não pertence. O telhado desabou e ficaram as tábuas apodrecidas à beira da
agonia. As ervas invadiram a linha cobrindo os carris ferrugentos. Ao longe, uma
antiga carruagem lembra viagens imaginárias. Mas está tão parada como o avô,
nas tardes de melancolia, a espreitar os comboios que chegavam e os rostos dos
passageiros que vislumbrava às janelas. E nem um só apito a anunciar o novo
dia.
Sei, avô, das
tentativas que fizeste ao longo da vida para embarcar. Era uma súbita vontade
de partir que te nascia, a ti e ao Necas. A população ria-se dos vossos
intentos — até que os vossos sonhos se tornaram rotina e passaram a ser
encarados como um simples habitante da aldeia. E quando anunciavam a data da
viagem nem uma aposta nascia da boca das pessoas, nem sequer para apostar que
dessa vez era a sério. Mas tu sabias que a aldeia precisava das vossas
encenações.
Certo dia, resolveste
partir sozinho, sem a companhia do Necas. Começaste a desconfiar de que a culpa
era dele, que impedia uma decisão rápida e irreversível, e que, além disso, o
mesmo destino não podia ser tomado por dois. Chegaste à estação, pela primeira
vez dono de uma viagem clandestina. Passeaste pelo cais enquanto ias pensando
no teu destino. Pouco depois, entrou na estação o Necas. Mediste o tamanho da
tua traição e imaginaste a fúria do teu amigo. Olhaste para o chão,
envergonhado, e quando levantaste os olhos reparaste que ele se afastava de ti.
Nem uma palavra te dirigiu, mas as malas que transportava disseram-te toda a
verdade.
Chegou o comboio e
parou à frente do vosso destino.
Ir? Agora mesmo? Para
onde? É este o meu comboio?
O comboio partiu.
Estou no centro da
aldeia. Pergunto pelos amigos e respondem-me que emigraram. Partiram!
Paciência! Terei de me contentar com a velha casa. Subo a rua e imagino a sua
aparição: uma casa térrea, caiada de amarelo com a pitoresca porta de postigo incorporado.
Viro à direita e paro subitamente. Não! Não esperava ver isto: o telhado arrombado,
a porta aberta às ervas e urtigas. A casa em ruínas. Fico parado a curta
distância, de olhos fechados. Não é esta casa que há de habitar dentro de mim.
É tempo de partir, de
deixar para trás esta aldeia.
Sabes, avô, lamento que
não tenhas acompanhado o Necas no último comboio. Lamento que tenhas ficado tão
só como a estação!
1994
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