Prémio
Literário Dr. João Isabel
Câmara
Municipal de Manteigas - 2015
Em
julho de 1938 havia mais certeza na farta colheita de milho do que no meu
futuro escolar. Os milheirais resplandeciam ouro incendiado pelo sol de verão,
e eu, com a quarta classe feita com bom e distinção, interrogava-me acerca da
minha vida, dependente da decisão paterna: seminário ou herdeiro do trabalho
agrícola que vinha passando de geração em geração na nossa família.
Ambas
as opções me pareciam más. Eu fugia da missa como o Diabo da cruz, não tinha
pachorra para ouvir as homilias do padre Severino, nem apreciava papar hóstias.
E quanto ao trabalho no campo… oh, sim, que prazer: apanhar moliço para
estrumar a terra, sustentar o gado de curral, lavrar, semear, plantar… e rezar
todos os anos pela colheita farta, necessária para o atulhamento do celeiro e
para o sustento da barriga.
Vivia
a incerteza do meu futuro, nesse julho longínquo, quando, certa manhã, o som
melancólico de uma gaita enroscou-se nos meus ouvidos e despertou-me da
letargia que estendia o meu corpo na cama. Um som familiar. Havia nele um apelo
encantatório, ao qual acorriam as pessoas, a miudagem curiosa e os cães
desconfiados. A amálgama de sons anunciava a chegada do velho amola-tesouras,
em todos os setembros, e com ele a promessa de chuva, assim dizia a sabedoria
popular. Ainda estremunhado, pus-me a pensar se teria dormido de julho a
setembro, ou se teria sonhado com a chegada do amola-tesouras. Mas outro acorde
de gaita subiu ao quarto e, tendo eu olhado para lá da janela o céu limpo de
julho, acreditei que era ele. E sem qualquer nuvem de dúvida fiquei quando,
vencendo a preguiça matinal, abri a janela, espreitei o largo da capela e vi os
primeiros cães a farejar as pernas do homem e a mijar contra as rodas da
bicicleta. O amola-tesouras ignorava os cães e olhava para as portas e janelas,
com a expetativa de ver surgir os primeiros clientes. Nesse movimento de
sondagem ocular, o nosso olhar encontrou-se. E tive a segunda surpresa dessa
manhã.
Que
alegria, nesse tempo de criança, observar o ofício de amola-tesouras do velho
Zito! Debaixo do plátano centenário, no adro da capela, a bicicleta servia de
transporte e de banca, atafulhada de coisas e loisas, sobretudo esqueletos de
guarda-chuvas. O velho Zito encarrapitava-se na bicicleta, fixa num tripé, e
com lentas e rigorosas pedaladas fazia girar o esmeril acoplado ao quadro do
veículo, faiscando nele tudo o que era gume cego de facas e tesouras. O velho
tinha modos de artista: com uma mestria de cirurgião, encostava o fio dos
objetos ao coruscante esmeril e depois erguia as tesouras e as facas acima da
testa, como um taberneiro de copo na mão a analisar a alma do vinho. As
mulheres deixavam ficar os utensílios de cozinha e regressavam às lides
domésticas, ou iam para o campo, com a promessa de terem o arranjo pronto antes
da hora da manja.
E
nós, garotada curiosa, ficávamos em redor do amola-tesouras a admirar as
fagulhas amarelas que se libertavam do esmeril e os gestos que ele, encavalitado
na bicicleta, fazia no afã de homem sábio. E nós, garotada atrevida, pouco a
pouco íamos estendendo os dedos ao encontro das bugigangas amontoadas em cima
da bicicleta; pouco a pouco, até ao instante em que o Zito, apanhando agilmente
a mão desprevenida do garoto mais próximo, e puxando-a lentamente para o
esmeril em movimento, o ameaçava de que faria do seu dedo um canivete aguçado.
E ala que se faz tarde, debandava a cachopada como bando de pardais.
Outras
mulheres chegavam-se a ele pela primeira vez, atrasadas, vindas da horta, ou da
despensa, onde se tinham perdido a procurar pratos rachados, panelas furadas como
caruncho na madeira e guarda-chuvas com varetas partidas.
Mas
nessa manhã, quando abri a janela do quarto e olhei para a rua, tive a segunda
surpresa em tão curto espaço de tempo. Em primeiro lugar, recordo, a chegada do
amola-tesouras em julho; em segundo, não foi o velho Zito que avistei no largo
da capela, mas uma figura que me era inteiramente estranha e que, de imediato,
me pôs o bicho da curiosidade a morder o couro cabeludo.
Vesti-me,
passei pela cozinha como gato sobre brasas e, em duas passadas rápidas,
juntei-me aos rapazes e aos cães que farejavam o desconhecido amola-tesouras. E
como putos e animais não serviam o propósito da sua presença na aldeia, o
amola-tesouras, indiferente a nós, talvez já habituado a este tipo de cerco em
outras terreolas, puxou da gaita e soltou duas linhas musicais que mais
pareciam um queixume de criança a pedir um brinquedo. Os clientes teimavam em
não comparecer no adro, talvez convencidos de que era alguma criança
descobrindo a magia de uma gaita achada na rua, ou oferecida por algum familiar
mais dado a manias de musiquetas. Contudo, não era somente essa forma de tocar,
nada fazendo lembrar um amola-tesouras, muito menos em julho, que me intrigava.
Na verdade, a minha atenção não se fixava na bicicleta e nos objetos, coisas
que para mim já não eram novidade. O que me seduzia era o aspeto do amola-tesouras.
Ele não vestia à moda de gente pobre, se é que entendem o que quero dizer com
isto. As calças tinham um corte elegante, observando-se nelas pouco uso e pouca
sujidade. A camisa também tinha um ar jovem, colorida e asseada. Sobressaía o
cabelo russo, cortado rente, debaixo de uma boina preta. E o rosto… posso garantir
que por debaixo da barba se escondia um homem de viçosa idade, com dois olhos
verdes luminosos. Creio que ele mexeu um sorriso facial por debaixo das
indomadas barbas quando reparou que eu o fitava atentamente. Fiquei com dúvida
acerca deste gesto, logo esquecido pelo movimento das suas mãos sobre o guiador
da bicicleta. E que mãos… branquinhas como farinha, e não era moleiro. Acham
que isto é normal? Acham que este retrato faz um amola-tesouras? Talvez. Eram
tempos difíceis, de fome agarrada à barriga como carraça, isto ouvia eu dizer,
que em minha casa não faltava o sol na eira e a chuva no nabal. Talvez ele
fosse filho de família abastada que de repente caíra na desgraça. Da boca dos
meus pais sempre ouvira dizer que trabalho não é vergonha, e este homem novo
era certamente aprendiz de amola-tesouras, um aprendiz resignado à vida dura e
miserável. Senti pena dele. Preferia que fosse um herdeiro rico, cansado de
mesa farta e de bom trato, que tivesse decidido meter-se à estrada para
conhecer a realidade do povo humilde, para compreender o verdadeiro significado
da pobreza. Sentia-me confuso, baralhado com dúvidas e conjeturas. E não
resisti a lançar uma pergunta direta aos seus olhos brilhantes, que procuravam
à sua volta um sinal de trabalho.
Há quanto tempo és
amola-tesouras?
Ele
olhou para mim, perplexo, como se à sua volta existisse apenas eu. As suas mãos
largaram o guiador, trémulas, tal como a pergunta que me atirou:
Por qué? Por qué usted…
por qué tu quieres saber?
Aconteceu
a terceira surpresa. Não consegui evitar um trejeito facial, os olhos mais
abertos de espanto, a língua enferrujada no pensamento. Ele era espanhol,
concluí, por me ter lembrado de uma família que, no ano anterior, tinha parado
na aldeia para substituir a roda furada do automóvel. Entretanto, surgiu uma
mulher no largo, a primeira freguesa da manhã, que me roubou a resposta que ia
dar ao amola-tesouras. Era a Rosa Manca. Vinda do fundo de uma ruela, com uma
cesta a chocalhar pratos, conseguira a proeza de ser a primeira freguesa a
chegar ao largo da capela.
Bom dia! Você acha que
já estamos em setembro?
Rosa
Manca também devia ser um bocado cegueta. Ou então tinha caminhado com os olhos
postos no chão, derreada com o peso da cesta e com o sobe e desce do andamento.
Abriu os olhos, também de espanto, mal os direcionou para a figura completa do
amola-tesouras. E como a sua língua não era manca, despejou uma exclamação,
antecipando-se à reação do espanhol.
Mas tu não és o Zito! És
filho dele?
«Quien es Zito? No lo sé.»
A
garotada riu-se do sotaque esquisito. Ele também se riu, talvez para disfarçar
o embaraço da situação.
Ah… és espanholito!
Nova
risada geral. O amola-tesouras confirmou com um aceno de cabeça.
Pois tanto me dá que
sejas espanhol ou Zito. O que eu quero é o serviço bem feito e honesto.
E
retirou da cesta sete pratos rachados, duas facas e uma tesoura da poda.
Quanto levas por isto
tudo?
O
espanhol examinou as facas e a tesoura, a loiça mais minuciosamente, e declarou:
Cinco escudos, señorita!
Cinco escudos, menino
guapo? Onde aprendeste a roubar?
E
estoirou um riso desbragado na cachopada. Onde teria a Rosa Manca aprendido a
palavra guapo, pronunciada tão à
espanhola, que deixou a jovem assistência pasmada?
Qué quiere, señorita?
Usted, tu puede pagar cuánto?
Metade e nada mais. É
pegar ou largar.
La mitad? Mala mujer! Mucho
trabajo, poco dinero.
Três escudos e nada
mais.
O
amola-tesouras encolheu os ombros, resignado. Pegou na tesoura, sentou-se no
selim e começou a pedalar certinho. O esmeril rodava, e a tesoura cuspia faíscas
para cima da miudagem. Rosa Manca só arredou pé quando ele começou a cantarolar
uma espanholada qualquer. Estive bastante atento ao trabalho. Os minutos foram
passando, e o fogo-de-artifício do esmeril acabou quando o espanhol desceu da
bicicleta e deu atenção aos pratos da Rosa Manca. Sete pratos rachados era obra
para uma mulher viúva e sozinha! Mas isto eram contas do seu rosário, o mais
importante para mim era observá-lo a pôr os gatos sem rachar por completo o que
restava dos pratos. Aqui sim, aqui pude verificar que o espanholito percebia do
seu mister. Quem diria que aqueles pratos, em cima de uma mesa, cobriam gatos?
Gatos que não miavam, é claro!
Alguns
garotos afastaram-se dali, mais interessados em outros gatos e gatas. Com pena
minha, acabei por me ir embora também, porque a minha mãe mandou-me um berro,
colada ao portão do pátio. Se ela soubesse que o amola-tesouras era um
espanholito, e não o Zito, de certeza que viria vê-lo, apressadamente, antes de
saber as coisas que lá em casa precisavam de arranjo. Não era vulgar aparecer
uma cara estrangeira aqui. Eu fingi que não a ouvia, mas o segundo berro foi
mais convincente, e lá fui, obediente, já esquecido da pergunta que tinha feito
ao amola-tesouras.
Tinha
o dia estragado! O meu pai precisava de mim no campo. Protestei. Queria ficar
com o amola-tesouras, não era todos os dias que eu podia aprender espanhol. A
minha mãe respondeu que para eu ser padre tinha de aprender latim e não
espanhol. Despachou-me desta maneira:
Vai ter com o teu pai.
Não tarda, vou lá ver o espanhol.
Contrariado,
fechei a matraca e fui ajudar o meu pai. Fui a butes. Podia ter pegado na
bicicleta dele, estacionada no alpendre, mas, feito mula, fui a pé para dar uso
às botifarras que me caíram da chaminé no último Natal. Cheguei ao campo,
amuado, e ajudei-o mal e porcamente porque só pensava no amola-tesouras. E o
meu pai só pensava na minha carreira eclesiástica porque, a certa altura,
ameaçou-me com o seminário se eu continuasse a engonhar. Aguentei o frete
durante toda a manhã sonhando com a tarde livre. Quando senti a barriga a dar
horas e vi o sol a pique, percebi que era a altura do regresso a casa. Pelo
caminho, contei-lhe a novidade da manhã. Respondeu-me, a olhar para trás,
talvez a imaginar a boa colheita de milho, que amola-tesouras há muitos, e que,
quanto a espanhóis, é preciso cuidado com eles: de Espanha, nem bom vento nem
bom casamento. Eu encobri um sorrisinho maroto: conhecia algumas meninas espigadas
na aldeia que, mesmo sem ventania, cairiam logo aos pés do espanholito. E não
sei quanto tempo demorariam a levantar-se.
Mal
entrei em casa, disparei contra a minha mãe:
Atão, quem tinha razão? É ou não é espanhol?
A
resposta foi uma desilusão. Ela nunca mais se lembrara de tal homem, houvera assuntos
mais importantes a tratar. Mas animou-me com a ideia de ir sondar isso da parte
da tarde, pois havia alguns trastes a precisar de conserto. Lembrava-se de um
guarda-chuva e de duas facas, arrumados num canto escuro da adega. O meu pai
acrescentou:
Já agora, aproveita-se a
ocasião, e leva-se a enxada grande. Pior não deve ficar.
Eu é que vou ficar
inchada com a conta, se o Zito lhe ensinou a arte de roubar. Se
ele vem aqui para nos passar a perna, dá-se-lhe um pontapé no traseiro e só
para na Galiza. Não há cá gaita nem assobio.
Às
três da tarde, depois da sesta familiar, o meu pai foi andando para o campo.
Calei-me bem caladinho, com receio de que ele se lembrasse de mim. Fui com a
minha mãe ao largo da capela, onde o amola-tesouras ia amolando devagarinho,
sem cachopada e sem cães a estorvá-lo.
Cumprimentou-nos
mal nos aproximámos e piscou-me o olho, como velhos amigos. Não se tinha
esquecido de mim, e eu cresci de vaidade. A minha mãe mostrou-lhe os
utensílios, e ele fez um preço justo porque a única resposta dela foi
perguntar-lhe o nome. Era Manolo.
O
que a minha mãe disse a seguir rachou-me da cabeça à ponta dos pés: que nós
íamos trabalhar no campo e voltaríamos à tardinha. Não havia problema, ele tranquilizou-a;
até podia voltar no dia seguinte, se quisesse, pois já tinha decidido pernoitar
ali. Esta foi a boa informação que ouvi, e teve o condão de me animar um pouco
a tarde de trabalho no campo.
No
regresso a casa, à tardinha, a minha mãe vinha a rezar para que Manolo não
tivesse ido embora. Eu defendi-o: ele precisava de dinheiro, não de
quinquilharias às costas. A minha mãe permaneceu duvidosa.
Entretanto,
chegámos a casa. Junto ao portão do pátio, disse-lhe, contente e vitorioso, a
apontar para o largo da capela.
Vê?... Este espanhol é
sério.
Talvez. Espera por mim
ao pé dele, se quiseres. Vou a casa buscar a bolsa.
Cheguei
ao pé do amola-tesouras e apanhei outra surpresa: em vez de consertar
guarda-chuvas, panelas, tachos, tesouras, pratos, e sabe Deus que mais, estava
muito concentrado sobre uma folha de papel, branca e retangular, com um lápis
na mão. Não fazia contas à vida, ao ganho do dia, mas desenhava a capela que
tinha à sua frente.
Também sabes desenhar?
Rodou
os olhos brilhantes para mim, a seu lado, e afirmou:
Sí. Soy un pintor.
Pintor e amola-tesouras?
Sí. No puedo?
Não
entendi a pergunta e pus-me a pensar. A maneira de vestir dele, as mãos
limpinhas e sem calos… Eu já não tinha dúvidas de que Manolo era um rapaz de
boas famílias. Por que razão andava ele por terras portuguesas a ganhar a vida
como amola-tesouras? A minha mãe interrompeu-me a reflexão. Ele pousou o
desenho em cima do selim e entregou-lhe os objetos, estendendo a mão para
receber o pagamento. Mas a minha mãe não caiu em cantigas destas e examinou o
serviço antes de abrir a bolsa. Abanou a cabeça em sinal de aprovação. E foi
nesse momento que ele propôs:
Señorita, el intercambio de dinero por
una cama en un pajar.
Quê?... Que dizes? Intercambio?...
Pajar?...
Onde
estaria a Rosa Manca a esta hora? Onde fazia falta.
Me deja dormir en su casa. Mi trabajo es gratuito. Mañana
quiero pintar los campos. Hermosas pinturas, muchas pinturas.
Credo! Ladrones em minha
casa, não!
Yo ruego por el amor de
Dios!
E
dito isto, o espanhol voltou a surpreender-me: ajoelhou-se aos pés dela e
ofereceu-lhe o desenho da capela.
Es para ti. Un regalo.
Um
verdadeiro regalo, a cena! A minha mãe ficou sem palavras portuguesas. De
espanhol, pelo que observei, só sabia dizer ladrones.
Agradava-me a companhia do misterioso espanholito em casa.
Aceite, mãe! E deixe-o
dormir no palheiro. Olhe as mãos dele, olhe as roupas. Acha que tem cara de
ladrão?
Milagrosamente,
a minha mãe consentiu. Meteu o dinheiro na bolsa, segurou o desenho, as mãos
trementes, com receio de rasgar o papel, e foi a pular para casa, ansiosa por
espalhar a novidade. Eu fiquei para ajudar o Manolo a embrulhar a carga, mas
ele desenrascou-se facilmente, já calejado nessas andanças.
Entrámos
no pátio da casa, onde ele estacionou a bicicleta. O meu pai estava sentado no
rebato da cozinha, com os pés mergulhados numa selha de madeira com água
fresca, e de lá os tirou, apressadamente calçando as tamancas, para receber o
espanhol. O amola-tesouras foi o primeiro a falar.
Buenas noches!
O
meu pai repetiu as palavras dele como se tivesse estudado línguas. E pelo tom
de voz tive a certeza de que ele, difícil nas amizades fáceis, tinha
simpatizado com o espanholito logo à primeira vista. A prova disto foi ele
ter-lhe estendido a mão de ferro num aperto de homem para homem, e de imediato,
como se estivesse à espera de um amigo do peito, convidou-o para um copo de
vinho na adega. O espanhol não se fez rogado e, lá, emborcou dois copázios que
o deixaram abananado. À saída da adega, o meu pai perguntou-lhe o que ia
trincar para aconchegar os copos.
Pan e salchichas, señor!
O
que o meu pai disse a seguir comoveu-me de tal maneira que, por momentos, senti
vontade de estudar para padre.
Nada disso, Manolo.
Comes connosco à mesa.
Nesse
momento, a minha irmã Carolina, meia dúzia de anos mais velha, apareceu à porta
da cozinha, curiosa, para ver o espanholito. O meu pai catou-lhe logo a
intenção e acrescentou à frase que dissera ao visitante:
Manolo, à mesa ainda
cabes, mas cama só no palheiro. Estamos entendidos?
Quem
cala, consente. Foi uma alegria a ceia de batatas, couves e bacalhau, bem
regados com canecas de vinho. Eu apenas o cheirei, não tinha permissão para
mais. A certa altura da conversa, Manolo informou que ia ficar uns dias na
aldeia. Tencionava ocupar as manhãs a consertar peças, enquanto houvesse
fregueses, e as tardes no campo a desenhar a ria, os pauis, os cais e os
ancoradouros. Uns dias antes, a alguns quilómetros da aldeia, desviara-se da
estrada principal e fora parar a um vasto campo coberto de caniços, panascos e
juncos, onde repousou junto a um ancoradouro. Ficara encantado com a paisagem e
queria desenhar uma coleção de cais e ancoradouros. Se fosse rico, compraria
telas, pincéis e tintas; assim, um pobre amola-tesouras só poderia desenhar a
lápis. A minha irmã abriu o bico, quis saber para que lhe serviam os desenhos,
se enchia a barriga com eles. Ele explicou que os vendia a pessoas ricas. Mas a
resposta que a calou a todos surpreendeu:
La pintura es amor. La
pintura es mi vida.
Depois
Manolo pediu autorização para eu o ajudar nos passeios pela ria e pelos campos
adentro. Tinha medo de se perder. Houve um minuto de silêncio e eu fervia de
expetativa. Por fim, lá veio a autorização para a tarde do dia seguinte, e
também a sugestão para eu levar a bicicleta do meu falecido avô. A noite acabou
aqui, porque o meu pai levantou-se, arrotou, deu um passo em falso e arrematou
a conversa, ordenando:
Está na hora da palha.
Toca a andar que se faz tarde.
A
manhã, na faina agrícola, decorreu sem história. Da parte da tarde, fui para o
campo, não para trabalhar, mas para orientar Manolo pelos carreiros e
indicar-lhe os melhores ancoradouros. O objetivo da viagem, para essa tarde,
não era desenhar, mas mapear os pontos que mereciam a sua dedicação artística.
Pelo caminho, trocámos palavras de ocasião. Disse-me que a manhã fora fraca de
consertos, esperava compensá-la com bons desenhos. Sempre que encontrávamos um
esteiro da ria, ele descia da bicicleta, olhava à sua volta a contemplar a
paisagem de caniços, panascos e juncos que nos tapava. Eu conhecia um sítio
melhor, bem escondido, bom para desenhar o céu, a terra, a água e toda a
bicharada. Hesitei várias vezes em revelá-lo e achei prudente não arriscar. Não
desejava encontrar nesse esconderijo o padre Severino em cima da Rosa Manca.
Isso eram pecados deles e segredo meu.
Manolo
deliciava-se com os coloridos moliceiros ancorados ou em movimento. Nessas
ocasiões, lembrava-se sempre dos quadros a óleo que não podia pintar. Eu
interrompia o seu queixume para lhe ensinar o nome dos ancoradouros e exibir a
minha enciclopédia local, explicando-lhe que a ria e todos os seus canais eram
estradas (carreteras, sobrepôs ele o
seu espanhol) de comunicação entre as povoações próximas. Estradas de trabalho,
transporte, alimento e passeio. Ele escutava as lições, muito atento, e tinha
sempre um comentário a fazer. Nunca mais me esqueci de uma reflexão sua, no
momento em que tínhamos parado num espaço indefinido entre a terra e a água. Os
pés estavam na terra ou na água? O que era mais importante para a população: a
terra ou a água? Onde radicava o húmus da vida das gentes de trabalho? Na água,
ou na terra firme? E depois, inspirando o ar puro, afirmou, reflexivo, no seu
espanhol, que eu aqui ignoro porque quero que o seu pensamento seja bem
português:
A lagoa abraça a terra.
A terra abraça a lagoa. É um abraço amoroso, uma entrega recíproca. E o homem é
a mão que abençoa o convívio entre estes dois elementos da natureza.
Passámos
a tarde às voltas e voltinhas, e com isto tudo pedalámos mais de vinte
quilómetros. Chegámos a casa, estafados e contentes.
À
noite, o meu pai, enchendo a caneca de vinho a Manolo, perguntou-lhe se tinha
apreciado mais os cais ou os ancoradouros. Tinha preferido os ancoradouros:
neles, o abraço entre a lagoa e a terra era mais forte, mais natural. A minha
irmã riu-se:
Abraço?!... Não sabia
que havia abraços desses!
Cala-te, Carolina! Esta
conversa é para pintores e pessoas entendidas.
O que percebe o pai de
pintura? Tem graça, tem!
Estava
a ver que ele a pintava com duas nódoas bem desenhadas na fronha. Mas, para meu
pasmo, talvez por respeito ao espanhol, explicou, calmamente, com ar de quem é
ilustrado:
Se a lagoa tem muitos
braços de água, é natural que abrace a terra. Percebeste?
Carolina
amochou as orelhas. E o nosso pai encerrou a sessão:
Aprende a não medrar a língua.
E agora vai-te deitar. Enquanto dormes, não dizes asneiras.
A
minha mãe nem tus nem mus. E logo de seguida, ele despejou a caneca, limpou os
beiços às costas da mão, levantou-se, arrotou e deu por terminada a conversa.
Está na hora da palha.
Toca a andar que se faz tarde.
Os
dias foram decorrendo calmos como os esteiros da lagoa. Manolo parecia não ter
pressa de sair da aldeia. Dele transbordava felicidade quando atracava nos
ancoradouros durante horas esquecidas, para de lá sair com desenhos a lápis que
sugeriam poeticamente a íntima harmonia entre a água e a terra. Em troca da
hospitalidade, arregaçou as mangas e colaborou na colheita do milho, ensopando
a camisa debaixo do sol de julho, mas sempre com um sorriso como se vivesse no
paraíso. E à noite, na eira, durante a descamisada, na azáfama da debulha, das
cantorias e das piadas, ele era a estrela que brilhava nos olhos dos vizinhos e
amigos que ali vinham cumprir a tradição de dar uma mãozinha.
Manolo
deixou de ser, para a minha mãe, um espanhol igual a tantos, muito menos um
possível ladrone. O meu pai, sempre
que a ele se referia, só tinha palavras elogiosas: o melhor galego da Galiza,
afirmava constantemente; um artista que é também um trabalhador. Carolina
permanecia calada, mas os seus olhos diziam-me que se imaginava a ria com dois
braços a envolver o homem que valia por todo o território da Galiza. E eu? Eu
vivia os melhores dias da minha vida, esquecido da ameaça do seminário. Manolo
apareceu na minha adolescência como uma janela que se abre para revelar os
prodígios do mundo. O pintor amola-tesouras era um personagem que me contagiava
pela forma como pensava a vida, pelas suas ideias, que naquela idade assimilei
de forma nebulosa por não ter ainda o entendimento dos adultos. E essas
revelações, juntamente com a estranheza de ser um amola-tesouras artista, com
modos de vestir e de falar distintos, reforçavam a minha convicção de que havia
algo de misterioso nesse homem, talvez um segredo que ele ainda não decidira
revelar-me.
De
todos as deambulações artísticas, houve uma especial, a que conservo mais
nitidamente na memória. Nessa tarde, já libertos da desfolhada do milho, eu
observava o desenho que ia nascendo no papel cavalinho. À nossa beira, a lagoa
era um braço de prata cuja água tremeluzia tocada pela brisa manchada de sol.
Do nosso ponto de observação, avistava-se um barco beijando a margem e uma
estaca de madeira no leito da lagoa. A água espreguiçava-se com suaves
ondulações. Manolo suspendeu o desenho e pediu a minha atenção. Perguntou-me o
que eu via na paisagem que ele retratava. Repeti todos os elementos, sem
entender o alcance da sua pergunta. Ele insistiu, se eu tinha a certeza de que
à nossa frente só existia o que os olhos viam.
Qué más quieres?, respondi, arranhando o espanhol que
já tinha aprendido.
Sorriu,
condescendente com a minha idade. E explicou-me o que os seus olhos de pintor viam:
a estaca na água é o pensamento, a força que incomoda. O pensamento provoca
ondas invasivas no poder da água. A água pode afogar um homem, mas nunca afoga
o seu pensamento. O pensamento é uma estaca que não se deixa submergir.
E,
logo de seguida, começou a falar da guerra civil espanhola: da Frente Popular
(quando pronunciava as palavras “luta” e “liberdade”, os olhos brilhavam
verdes, verdes que os queria ainda mais verdes) e dos Nacionalistas (quando
pronunciava as palavras “prisões”, “fuzilamentos” e “mortes”, os seus olhos
escureciam, dois bagos pretos). Assuntos que transcendiam o meu limitado
entendimento.
Essa
foi a mais extraordinária lição que escutei na minha longa vida — uma lição que
compreendi cabalmente quando, anos depois, ganhei consciência social e
política.
Manolo
acabou por sair da minha vida. Teria de acontecer, cada homem é um esteiro com
muitos ancoradouros. Atracou na minha adolescência um pintor amola-tesouras que
me encheu de admiração. Partiu da forma mais imprevista.
Houve
um dia em que ele não regressou a casa. Era já noite, hora da ceia, e nós
preocupados com a sua ausência. Nessa tarde, ele foi sozinho para a sua arte,
eu tive de ir com o meu pai tratar de uns assuntos à cidade. Deixámos o portão
do pátio no trinco, na esperança de ele aparecer durante a noite. Levantei-me
de madrugada, mal dormido, e corri ao palheiro. Vazio! Não queria acreditar que
ele tivera o atrevimento de ir embora sem se despedir de nós. Peguei na
bicicleta do meu avô e pedalei pelos campos fora, quilómetros e quilómetros até
à exaustão. Chorei. Manolo tinha-nos abandonado. Ladrone!
A
notícia demorou dois dias a chegar à aldeia, transmitida pelo padre Severino
durante a homilia de domingo. Depois de blasfemar contra os comunistas,
inimigos da pátria e da religião, informou que a aldeia tinha feito história
por ter sido palco de um acontecimento de grande importância nacional e
internacional: na lagoa, a Polícia de Vigilância e Defesa do Estado tinha
capturado um perigoso foragido espanhol, que aqui vivia disfarçado de
amola-tesouras.
Não tinha dúvidas acerca da identidade do delator.
Por isso, no confessionário, apressei-me a ameaçar o padre Severino de que
revelaria à população as sagradas obras que ele fazia no esconderijo com a Rosa
Manca, se não convencesse os meus pais a dar-me um futuro bem longe do
seminário.
Hoje, 70 anos passados no próximo julho, encontrei o
título certo para o desenho de Manolo que tenho nas mãos: A Estaca na Água.