EIS A FLOR
Cheguei
com Abril, Maria, para te ver apanhar a flor. Vim do fim do mundo por tua
causa, para partilhar contigo o instante feliz do contacto dos teus dedos com a
flor.
Durante
décadas viveste isolada de ti e do mundo. A vida passava ao teu lado a cada
instante, em casa, na rua, em qualquer lugar, e tu via-la passar com a
indiferença de uma estátua coberta de verdete.
Que
estranha forma de viver para negar a vida, Maria! Surpreendeste-me, naquele
longínquo dia, com a decisão de abandonar a vida. Tu, tão enérgica, tão
determinada, tão corajosa, arrostando sempre a luta pelos teus ideais, pelos
sonhos em que acreditavas, e de repente desististe de conseguir a flor que
tanto almejavas.
Fizeste
da primitiva aldeia o teu refúgio, um lugar inexistente no mapa sentimental.
Aí, longe de tudo, a aldeia tornou-se o teu presente sem caminho para o futuro.
Na
velha casa de pedra, enganas o tempo com os únicos companheiros a que não
renunciaste: os teus livros preferidos, de escritores tão excluídos como tu, e os
velhos discos de vinil soltando saudosas canções de acordar os mortos-vivos.
Fora da casa, tens à tua volta as coisas simples do mundo, resumidas a um
pátio, uma horta e um jardim.
O
jardim, aquilo a que tu chamas jardim, é um canto de terra bravia junto a um
muro no fim da horta. Encostado a este, vê-se uma planta que nasceu ali por
acção do acaso. É baixa, de folhagem verde e persistente. Não lhe deste
importância quando a descobriste. Quiseste ignorar o seu destino, alheares-te
da sua sorte; por isso, começaste por olhar para ela com neutralidade, convicta
de que não resistiria à falta de cuidados.
Mas
a planta, só e desamparada, conseguiu extrair da sua vontade de viver a seiva
da sobrevivência. E todos os anos, no mês de Abril, assinalando o milagre da
sua existência, a planta dá uma flor. Apenas uma única flor por ano. Uma flor
resplandecente que dura apenas um dia.
Todos
os anos observas esta efémera ressurreição. Dizes a ti própria que nada queres
saber da planta e da sua flor. Até te esqueces delas durante onze meses. Mas,
quando Abril chega, algo de estranho desperta em ti, e uma força interior
impele-te para junto da planta para veres renascer a flor. Sentes curiosidade
de te aproximares da planta, de a examinar, e é então que uma enorme vontade de
tocar a flor, de a apanhar, percorre a ponta dos teus dedos. Mas, sempre que
ousas esboçar este gesto, um peso escuro cai sobre ti, e rápida corres para
casa, onde te recompensas ouvindo os teus discos de vinil.
Eu
sei tudo isto graças à carta que me enviaste há quinze dias. Apanhou-me de
surpresa, não a esperava, já deixara de contar contigo como personagem dos meus
dias. Por sorte, continuo a morar no mesmo apartamento, e assim chegou a tua
mensagem, que eu recebi como quem recebe o mundo nas mãos.
Estou
a caminho da tua aldeia, em direcção a ti, ao encontro de ti. Não tive coragem
de recusar o teu convite, apesar de saber que, de tudo o que me deste no
passado, nada tens para me dar. Chamaste-me para te ver renunciar à renúncia,
para assistir ao teu renascimento. Sabes que é a única coisa que tens para me
dar, sabes que aceitarei isto como se entrasses inteira no meu coração.
Por
isso, Maria, estarei contigo neste Abril para te ver apanhar a flor. Nas tuas
mãos, não será flor de um só dia, e tu voltarás a ser tu todos os dias.
Quando
chegar esse momento de sortilégio, dir-me-ás com um sorriso: «Eis a flor!»
Jornal
da Mealhada, 400, 03.04.2002