Crónica (14)


EIS A FLOR



Cheguei com Abril, Maria, para te ver apanhar a flor. Vim do fim do mundo por tua causa, para partilhar contigo o instante feliz do contacto dos teus dedos com a flor.

Durante décadas viveste isolada de ti e do mundo. A vida passava ao teu lado a cada instante, em casa, na rua, em qualquer lugar, e tu via-la passar com a indiferença de uma estátua coberta de verdete.

Que estranha forma de viver para negar a vida, Maria! Surpreendeste-me, naquele longínquo dia, com a decisão de abandonar a vida. Tu, tão enérgica, tão determinada, tão corajosa, arrostando sempre a luta pelos teus ideais, pelos sonhos em que acreditavas, e de repente desististe de conseguir a flor que tanto almejavas.

Fizeste da primitiva aldeia o teu refúgio, um lugar inexistente no mapa sentimental. Aí, longe de tudo, a aldeia tornou-se o teu presente sem caminho para o futuro.

Na velha casa de pedra, enganas o tempo com os únicos companheiros a que não renunciaste: os teus livros preferidos, de escritores tão excluídos como tu, e os velhos discos de vinil soltando saudosas canções de acordar os mortos-vivos. Fora da casa, tens à tua volta as coisas simples do mundo, resumidas a um pátio, uma horta e um jardim.

O jardim, aquilo a que tu chamas jardim, é um canto de terra bravia junto a um muro no fim da horta. Encostado a este, vê-se uma planta que nasceu ali por acção do acaso. É baixa, de folhagem verde e persistente. Não lhe deste importância quando a descobriste. Quiseste ignorar o seu destino, alheares-te da sua sorte; por isso, começaste por olhar para ela com neutralidade, convicta de que não resistiria à falta de cuidados.

Mas a planta, só e desamparada, conseguiu extrair da sua vontade de viver a seiva da sobrevivência. E todos os anos, no mês de Abril, assinalando o milagre da sua existência, a planta dá uma flor. Apenas uma única flor por ano. Uma flor resplandecente que dura apenas um dia.

Todos os anos observas esta efémera ressurreição. Dizes a ti própria que nada queres saber da planta e da sua flor. Até te esqueces delas durante onze meses. Mas, quando Abril chega, algo de estranho desperta em ti, e uma força interior impele-te para junto da planta para veres renascer a flor. Sentes curiosidade de te aproximares da planta, de a examinar, e é então que uma enorme vontade de tocar a flor, de a apanhar, percorre a ponta dos teus dedos. Mas, sempre que ousas esboçar este gesto, um peso escuro cai sobre ti, e rápida corres para casa, onde te recompensas ouvindo os teus discos de vinil.

Eu sei tudo isto graças à carta que me enviaste há quinze dias. Apanhou-me de surpresa, não a esperava, já deixara de contar contigo como personagem dos meus dias. Por sorte, continuo a morar no mesmo apartamento, e assim chegou a tua mensagem, que eu recebi como quem recebe o mundo nas mãos.

Estou a caminho da tua aldeia, em direcção a ti, ao encontro de ti. Não tive coragem de recusar o teu convite, apesar de saber que, de tudo o que me deste no passado, nada tens para me dar. Chamaste-me para te ver renunciar à renúncia, para assistir ao teu renascimento. Sabes que é a única coisa que tens para me dar, sabes que aceitarei isto como se entrasses inteira no meu coração.

Por isso, Maria, estarei contigo neste Abril para te ver apanhar a flor. Nas tuas mãos, não será flor de um só dia, e tu voltarás a ser tu todos os dias.

Quando chegar esse momento de sortilégio, dir-me-ás com um sorriso: «Eis a flor!»



Jornal da Mealhada, 400, 03.04.2002