O ESCRIBA HEDONISTA
apresentação do livro A ODISSEIA DO ESPÍRITO SANTO (2)
Apresentação do livro “A Odisseia do
Espírito Santo” de António Breda
Estamos hoje aqui para assistir à
apresentação do livro de António Breda, “A Odisseia do Espírito Santo”. O livro
é um romance histórico. Tem como base um outro livro, escrito por mim,
intitulado “Um buraco no Inferno. João Pinto, o lavrador heresiarca e a
Inquisição”.
Tratando-se de um romance histórico, a
narrativa segue as liberdades criativas que são naturais a uma obra de ficção.
Mesmo tendo em conta que segue e se inspira numa obra historiográfica. Esta,
por sua vez, sendo produto da investigação histórica, vê-se obrigada a
cingir-se à realidade que nos é transmitida pela documentação existente.
Se estou aqui a falar das diferenças
existentes entre obras de ficção ou historiografia, não é com nenhum intuito de
exaltar uma, qualquer que ela seja, para diminuir a outra. Isso seria
absolutamente ridículo. Nada mais enfastiante do que os zelotas que quando se
vêm confrontados com uma obra de ficção histórica começam logo a enumerar as
picuinhices de preciosismo histórico, que pouco acrescentam à nossa felicidade.
Também não deve ver-se, nesta
afirmação, a posição diametralmente contrária. Ou seja, a exaltação da
liberdade criativa absoluta, alheando-se completamente do contexto histórico em
que se insere, levando inevitavelmente ao anacronismo.
É interessante verificar que a obra de
António Breda consegue este equilíbrio de uma forma muitíssimo interessante.
Antes de mais, o texto surge-nos na forma de uma sucessão de monólogos. Cada
capítulo é um monólogo levado a cabo por cada um dos personagens. Essa é uma
estrutura narrativa que não é muito comum e que resulta muito bem. Depois a
abordagem à linguagem popular, uma linguagem que surge como uma reminiscência,
com terminologias arcaicas, produto de um mundo fechado como era o do Minho (ou
de qualquer outro na maior da Europa de meados do século XVIII). Estes são
sintomas claros de que o autor, querendo manter as suas prerrogativas
literárias e artísticas, não se esqueceu de que estava a escrever sobre homens
e mulheres que viveram numa época concreta, com circunstâncias concretas.
Em jeito de observação rápida,
permitam-me apenas que enumere ainda mais dois momentos que me ficaram do texto
e que denunciam bem essa preocupação do autor relativamente à realidade
histórica. A referência, algures no meio do livro, ao caso de Arcângela do
Sacramento e do padre oratoriano António da Fonseca, por um lado. E a descrição
do caminho para o Santo Ofício de Coimbra, quando os membros do apostolado, já
detidos, eram para lá conduzidos.
No entanto, esta dicotomia entre obra
de ficção e obra historiográfica leva-nos mais longe. Leva-nos ao ponto onde eu
hoje me proponho chegar. E o que me proponho hoje é, muito simplesmente,
explicar a história de João Pinto, figura central deste livro, desde os dias em
que ele formou o seu apostolado, algures em 1758, até ao dia de hoje, 1 de
Março de 2019.
João Pinto aparece descrito seu
processo inquisitorial como um “lavrador” de 37 anos que sabia ler. Era oriundo
da região do Bouro e viera para a aldeia de Vilarinho, perto de Mondim de
Basto, para vir exorcizar uma mulher possuída por um espírito. Durante as suas
sessões de exorcismo, um espírito começou a falar pela boca da mulher, expondo
uma estranha doutrina e dizendo que ali se deveria fazer uma congregação de
apóstolos.
Não irei aqui expor em detalhe a
doutrina exposta pelo espírito. Em meados do ano 2000, quando me deparei com
este volumoso documento da inquisição de Coimbra, existente na Torre do Tombo,
em Lisboa, nunca me teria passado que se tratava sequer de uma doutrina.
Parecia-me mais um delírio, o produto de uma febre religiosa, de tal forma o
discurso que perpassava dos documentos era incoerente e disparatado.
Existiam vários documentos relativos ao
assunto nos arquivos da inquisição de Coimbra. Quase exclusivamente processos
inquisitoriais, de João Pinto e dos restantes membros da congregação. Uma das
ideias chave do carismático líder da seita era que o Espírito Santo deveria
encarnar três vezes. À semelhança da sua doutrina, também João Pinto teria três
encarnações, no que diz respeito a textos publicados sobre si. Este, de António
Breda, é o terceiro, uma encarnação sob a forma de romance histórico. Vou
passar a contar a história dessas três encarnações.
Em 2000, no decurso de uma pesquisa
para uma tese mestrado, comecei a estudar vários livros de autos. Os livros de
autos são volumes encadernados onde estão listas infindáveis de nomes de
indivíduos condenados pela inquisição. Normalmente aparece apenas o nome e à
frente a tipologia do “crime”. Normalmente são registos muito breves, e a
tipologia mais comum é claramente “judaísmo”.
Subitamente, no meio dessas listas
enfadonhas surgiram nomes cuja tipologia não se restringia apenas a uma breve
referência de “judaísmo”, ou “feitiçaria”, ou “bigamia”. Apareciam pequenos
textos em que os inquisidores teciam considerações, que saltavam à vista em
contradição com a secura monocórdica das categorizações dos crimes tipificados,
característicos da inquisição. Falavam de um “apostolado”.
Fui ver os nomes e as circunstâncias
das pessoas indicadas, e pesquisei se haveria processos em seu nome. Sorte!
Havia! Fui consultá-los. Comecei pelo chefe, João Pinto. Confesso que não
compreendi uma parte substancial do que ali se dizia. Falava-se um “espírito
santo divino escolhido”, que “antes se chamava João”, numa vara da Senhora da
Graça que deveria furar o “oitavo inferno” e retirar todas as almas. E que “o
Padre Eterno andara pelo mundo”, padecendo, e que agora estava no céu a
vingar-se dos demónios que o tinha atormentado antes.
O texto era absurdo. Havia, no entanto,
alguma lógica que não se conseguia explicar. Não era um discurso de um bêbado
ou de um louco. Parecia sugerir uma espécie de dualidade radical entre corpo e
espírito, que aparecia sugerida em várias partes do processo, sem contudo
surgir de forma expressa. Ainda assim, os processos eram extremamente ricos em
informações sobre a vida de uma aldeia do norte de Portugal em meados do século
XVIII, dos mecanismos da inquisição e da sua presença em pontos mais remotos do
país, das formas de sociabilidade e de controlo social. Ou seja, o facto de
haver muita documentação concentrada sobre um só caso, com depoimentos de
pessoas em que a vida social, económica, cultural e religiosa era longamente
descrita, permitia que se escrevesse uma obra de história cultural e
sociológica. E esta foi a primeira encarnação de João Pinto, com a minha tese
de mestrado, intitulada “Um buraco no inferno”, o livro que terá inspirado António
Breda para a sua “Odisseia do Espírito Santo”.
Durante vários anos nunca mais pensei
em João Pinto. Um dia, no âmbito de uma outra investigação, deparei-me com a
heresia de Prisciliano, um famoso herético do noroeste de Portugal do século
IV. O priscilianismo foi uma heresia importante na península ibérica na fase
final do império romano. O aspecto que me chamou a atenção foi a forma como
Prisciliano descrevia a forma como se desenrolava a reencarnação das almas, com
subidas e descidas, sendo perseguidas por demónios e entrando e saindo dos
corpos. Aquilo que os priscilianistas diziam era tão semelhante à descrição que
João Pinto fizera da Odisseia do Espírito Santo, que eu fiquei a perguntar-me
onde é que eu já tinha lido algo de semelhante.
Quando percebi que tinha sido no
processo de João Pinto, reparei também que a área geográfica era exactamente a
mesma, embora tivessem cerca de 1400 anos a separá-los. Era uma coincidência
extraordinária. No entanto, era também um período demasiado longo de tempo para
que se tratasse.
No entanto, esse foi um momento que
abriu uma pista que se revelaria determinante. O priscilianismo era uma heresia
que tinha uma base gnóstica. Era um dos vários ramos dessa família, o
gnosticismo, que mergulhava as suas raízes nos mistérios da antiguidade e no
platonismo e que atingira o seu apogeu fundindo-se com o cristianismo nos
primeiros séculos da nossa era.
Como se de um puzzle se tratasse, comecei
a olhar para as palavras de João Pinto, ou do “espírito” que falava nas sessões
de exorcismo, com outros olhos. Como se de uma heresia gnóstica se tratasse.
Aí, as peças foram encaixando umas nas outras. O oitavo inferno, e os “infernos
que estavam daí para baixo”. As referências à reencarnação. As ideias de
espiritualidade aristocrática que estavam subjacentes a todo o discurso. A
ideia de um deus que se formara de um outro deus. O gnosticismo era a chave que
era necessária para descodificar aquelas palavras.
Mas havia, no entanto, uma parte
significativa do discurso de João Pinto que permanecia indecifrável. Porquê a
vara a furar o oitavo inferno? O que significava a ideia do Padre Eterno “que
antes se chamava João”? Porquê o Padre Eterno a caminhar pelo mundo? O que
significava o ritual, referido a meio do processo, em que os “apósotolos” se
deitavam e esperavam que as suas almas que estavam no céu viessem reclamar os
corpos?
Na parte final da minha pesquisa sobre
gnosticismo fui à melhor biblioteca que eu conheço sobre história religiosa, a
da Universidade Católica. Aí fotocopiei tudo o que encontrei sobre o assunto, e
levei esse material todo comigo para Alcobaça, onde me dediquei ao seu estudo
exaustivo. Entre esse material encontravam-se os interrogatórios dos cátaros,
que tinham sido feitos pessoalmente pelo inquisidor Jacques Fournier no século
XIV.
O catarismo era mais uma das muitas
heresias gnósticas. Viria, contudo, a ter um grande sucesso entre os séculos
XII e XIV, na região do sul de França. O meu interesse pelos cátaros prendia-se
com o facto de se tratar de uma heresia gnóstica. Apenas isso. Na altura era
apenas mais uma das seitas que partilhavam aquelas características do
gnosticismo com tantos outros grupos, e que surgiam também no caso da
congregação de Mondim de Basto.
No entanto, quando comecei a ler os
interrogatórios dos cátaros, começaram, um após o outro, a surgir os elementos
que permaneciam insolúveis no processo de João Pinto. A vara, a caminhada do
Padre Eterno a padecer pelo mundo, os rituais em que as almas vinham chamar
pelos corpos, etc. Não se tratava de semelhanças ocasionais, mas de uma
sobreposição perfeita de aspectos muito singulares e específicos.
Inicialmente pensei que nada haveria de
especial nessa circunstância, e que João Pinto teria lido esses elementos
algures. Depois de uma apurada pesquisa descobri que os elementos que estão nos
interrogatórios dos cátaros não existem em mais lado nenhum. Mais, descobri que
esses interrogatórios só viriam a ser descobertos no Arquivo do Vaticano, e
posteriormente publicados, no final do século XIX, um século e meio depois de
se ter dado o caso de Mondim.
Tinham sido levados para Roma pelo
próprio Jacques Fournier, o homem que conduziu os interrogatórios aos cátaros.
E aí tinham permanecido, obscuros e ignorados, durante mais de quinhentos anos.
Fournier viria a tornar-se Papa em 1334 sob o nome de Bento XII.
A questão que se colocava era: como é
que isto é possível? Como é que um lavrador de Mondim teve acesso a um texto
secreto (porque é disso que se trata) que só veio a ser descoberto século e
meio mais tarde? Quando acabei a minha pesquisa e reuni todas estes factos,
decidi escrever um artigo para a prestigiada revista científica “History of
Religions”, da Universidade de Chicago. Era uma publicação muito selectiva, que
já me tinha recusado artigos. Mas desta vez, pensava eu, o material que eu
tinha era de tal maneira importante que o artigo seria publicado. E não me
enganei. O artigo saiu em Novembro de 2017. Trata-se de um trabalho de
características puramente científicas. Foi esta a segunda encarnação de João
Pinto.
Em finais de Outubro do ano passado
recebi uma mensagem via Facebook de uma pessoa que me perguntava se eu era o
autor de “Um buraco no inferno”. Era o António Breda, que à falta de melhor
local, tinha andado à minha procura no Facebook. E funcionou.
Pedia-me para apresentar o seu livro “A
Odisseia do Espírito Santo”, uma obra de ficção com base em factos históricos.
Foi esta a terceira encarnação de João Pinto.
Feita esta breve resenha da história de
João Pinto e das suas várias encarnações, impõe-se agora falar do livro que
hoje é apresentado, e do seu autor.
António Breda já ganhou vários prémios
literários. Quando se abre o livro percebe-se porquê. A escrita é
irrepreensível. A forma é original, como já referi atrás. Não há diálogos. Tudo
se passa através de monólogos e cada capítulo é um monólogo de um dos
personagens ligados à história da congregação de Mondim. Até a Senhora da
Graça, uma figura que surge também implicada na doutrina salvífica de João
Pinto, contribui com dois monólogos.
A forma de monólogo acaba por impor ao
livro um tom introspectivo e quase confessional. As reflexões são ruminadas
através de uma linguagem simultaneamente popular (nota-se aqui profunda
pesquisa do autor) e cuidada.
É interessante esse tom confessional,
porque me parece que ele traduz uma vontade do autor de, depois de ler a
história original, tentar entrar na cabeça dos indivíduos que a protagonizaram.
E essa é uma aspiração legítima tanto da escrita ficcional como da
historiografia, obedecendo, bem entendido, a formas e lógicas diferentes. É
assim que António Breda explora a ideia de uma espécie de “pecado original”, um
caso de adultério entre Maria José, a mulher que era, juntamente com João
Pinto, figura central da congregação, e um sapateiro seu vizinho, que não
existe na história original.
Procura, a partir daqui, compreender as
ansiedades e desejos das pessoas comuns, das motivações que terão levado as
pessoas a aderir à seita congeminada pelo lavrador. O campo, o tédio, a
novidade, a repressão, as fraquezas humanas, tudo isto se compõe para formar
esta “Odisseia do Espírito Santo”, uma história em que pessoas comuns dão corpo
a uma história que é tudo menos comum. A dada altura, António Breda coloca na
boca de Maria José, falando de João Pinto, as seguintes palavras: “devo-lhe a
vida que já tinha perdido, renasceu-me o gosto de ver o nascer e o pôr do sol,
somos dois a trabalhar para os três mistérios como se fôssemos testo e panela
longe da fogueira do inferno, e juntos nos costuramos na cama” (p. 170). Julgo
que muito do que se passou pode ser explicado por esta ideia de fuga a um
quotidiano entediante e, em alguma medida, opressor.
Mas não se trata apenas disso. Importa
reflectir um pouco sobre estas três encarnações de João Pinto. Trata-se da
interacção entre vários elementos. Essa faceta poliédrica de João Pinto é
fulcral. Existe o elemento popular. Mas existe também o elemento letrado. A
famosa “odisseia” do Espírito Santo, por exemplo, tem muitos elementos que ele
retirou de um livro que tinha lido e que tinha forte divulgação nas cidades,
vilas e campos do país, o “Báculo Pastoral”: “não escapou da água do rio para
onde foi atirado e por onde ele foi na correnteza até uma ilha do mar, a morada
dos bem aventurados, mais conhecida por alfândega de todo o regalo, onde a
beleza embebeda os olhos, assim disse João Pinto depois de falar do bosque
cercado de rosas e jasmins e dos regatos que cantam afinados como os fiéis oram
na missa” (p. 155)
É, portanto, verdade que João Pinto
retirou algumas coisas do que disse dos livros que leu. Mas é também excessiva
a ideia, que surge num dos monólogos do sapateiro, dizendo que João Pinto
“avariou-se dos miolos com o que aprendeu nos livros que dizem ter lido, tanto
de assuntos religiosos e de espíritos malignos que não chegam ao entendimento
de todos os homens letrados” (p.120).
Na verdade, apenas uma parte deste caso
vem dos livros. Uma parte também importante dele vem do contexto popular. O
maior exemplo é o caso de possessão, em que João Pinto praticava sessões de
exorcismo para que o alegado espírito falasse pela boca de Maria José. Também o
é a ideia de João Pinto de que Maria José deveria conceber miraculosamente e
dar à luz um messias, que seria a terceira encarnação do Padre Eterno. A
possessão e a gravidez miraculosa andavam ligadas a um complexo religioso
imemorial, de que existem diversos exemplos nos arquivos da inquisição
portuguesa para os séculos XVI e XVII, e até para o século XVIII. Nesta altura
esse complexo religioso ancestral estava já em desestruturação, e as
referências que nos chegam através da documentação inquisitorial são apenas
vestígios de um passado muito remoto.
Finalmente, o núcleo duro da sua
doutrina, um mito gnóstico em que o Padre Eterno deveria sofrer três
encarnações, sendo que o seu terceiro nascimento deveria marcar a consumação do
mundo material e o nascimento de um mundo espiritual, puro e imaculado. Esse
mito gnóstico, transmitido já não em contexto popular, mas através de um antiga
tradição ligada a círculos herméticos mais ou menos fechados, terá chegado a
João Pinto através das lojas maçónicas, que tinham chegado à Galiza cerca de
vinte anos antes. É o próprio João Pinto que afirma que quem lhe ensinou aquela
misteriosa doutrina tinha sido um clérigo galego que era exorcista. Isso
corresponde perfeitamente ao perfil do eclesiástico maçónico que era apanágio
das primeiras lojas da maçonaria galega. O próprio processo inquisitorial
apresenta inúmeros indícios nesse sentido. É essa permanência ligada a uma
tradição secreta que explica o mistério de João Pinto andar a ventilar um mito
gnóstico que só viria ao conhecimento dos historiadores século e meio depois do
caso de Mondim, aquando das primeiras aberturas do arquivo do Vaticano aos
investigadores, nos finais do século XIX.
Assim, e para concluir, o que estas
três encarnações de João Pinto, que o livro de António Breda vem encerrar, nos
dizem é que o caso de João Pinto tem várias faces. É um verdadeiro poliedro. É
isso que lhe confere complexidade. E é isso que faz com que, na minha modesta
opinião, o seu processo inquisitorial seja um dos mais fascinantes documentos
que a história de Portugal nos legou.
Apresentação do livro A ODISSEIA DO ESPÍRITO SANTO
Ex.mo Senhor Dr. António
Breda de Carvalho, digníssimo vencedor da quinta
edição do Prémio Literário Carlos de Oliveira
Ex.mo
Senhor Dr. António Ribeiro, aqui presente para
fazer a apresentação da obra
Ilustres Convidados
Minhas Senhoras e meus senhores
Sejam bem-vindos à entrega do Prémio Literário Carlos de Oliveira ao autor de “A Odisseia do Espírito Santo”,
livro vencedor da quinta edição do concurso cujo patrono é obviamente
homenageado com esta sessão.
Se me permitem, começo por saudar o Dr. António Breda de Carvalho, assinalando
o facto de ter nascido e residir no vizinho concelho da Mealhada, o que
constitui motivo de satisfação acrescido relativamente à atribuição do
prémio.
Entretanto, agradeço-lhe desde já o seu testemunho sobre o livro e a
experiência de escritor, dando a conhecer um pouco do modo como construiu a
narrativa que o júri decidiu premiar entre as obras concorrentes.
Tendo em conta que essa narrativa se baseia em factos históricos abordados numa tese de mestrado do Dr.
António Ribeiro, o facto de a apresentação de “A Odisseia do Espírito Santo” estar a seu cargo é seguramente uma
mais valia importante no enquadramento da obra face ao estudo do contexto que
lhe deu origem.
Muito
obrigado, Dr. António Ribeiro, pela sua disponibilidade em vir aqui hoje
partilhar connosco a leitura que faz de uma ficção construída em torno de
factos que conhece em profundidade, no que será também certamente uma lição de
história sobre realidades marcantes do quotidiano das comunidades no século
XVIII.
Sobre a “A Odisseia do Espírito Santo” deixo apenas algumas breves notas, começando por destacar os fundamentos que justificaram a atribuição do Prémio Literário Carlos de Oliveira.
Faço notar que o júri invocou para o efeito “o original dispositivo narrativo que faz com que a história seja contada na primeira pessoa alternadamente por todas as personagens”, a “capacidade de efabulação” e “a riqueza da linguagem, que oscila entre a reconstituição do léxico do século XVIII e o dos nossos dias.”
É sem dúvida uma excelente síntese dos
aspetos que tornam o livro tão cativante, nomeadamente a caracterização das
personagens e os seus testemunhos num registo coloquial em que emergem os
pontos de vista sobre as situações que confluem para o cerne da narrativa.
E depois o léxico em que sobressaem
inúmeras palavras caídas em desuso e que o autor utiliza de modo
particularmente bem conseguido, algumas ainda familiares de muitos de nós,
outras nem tanto, ao ponto de justificarem a opção do autor em publicar um
glossário no final.
Em “A
Odisseia do Espírito Santo” percebemos
o quanto a língua é um sistema linguístico dinâmico que não só apropria novos
vocábulos em função da evolução das sociedades e da sua adaptação a novas
realidades, como deixa que outros se percam no tempo, à medida que os
referentes se tornam ausentes da vida das pessoas.
Percebemos também como a literatura os
pode recuperar e neste caso, a meu ver, recupera-os muito bem, no sentido em
que eles se revelam cruciais para o tipo de ambiente social que o Dr. António Breda de Carvalho reconstitui
à medida que vai evoluindo a trama do romance, sempre contada na primeira
pessoa (por cada personagem interveniente).
O autor evidencia efetivamente uma extraordinária
capacidade para recriar o contexto histórico em que se movem as personagens e para
retratar a sua mundividência e a sua linguagem característica.
Trata-se
de um universo fechado, povoado dos fantasmas próprios de um período longínquo,
mas que em alguns casos se arrastaram por muito tempo, um universo que visto à
luz dos conceitos de agora não é compreensível, mas que reflete bem a natureza
de algumas das condicionantes da vida em comunidade, o que confere ao livro uma
apreciável dimensão pedagógica.
Destas
considerações genéricas emerge a minha curiosidade sobre as motivações que
levaram o Dr. António Breda de
Carvalho a escrever este romance histórico no registo em que o fez e qual o seu
enquadramento no âmbito da sua obra.
Dr. António
Breda de Carvalho
Ilustres Convidados
Minhas Senhoras e meus senhores
Face
ao motivo que nos traz aqui hoje, esta é uma ocasião em que faz sentido
reiterar a aposta do Município de Cantanhede no Prémio Literário Carlos de
Oliveira, no âmbito de um processo de intervenção cultural em que se preconiza
a criação de condições favoráveis à intensificação do estudo e da divulgação da
vida e obra do escritor.
A autarquia continua
efetivamente empenhada no desenvolvimento de ações para motivar públicos de
vários níveis etários e diferentes expectativas académicas e culturais,
sobretudo os jovens, para a compreensão de um universo literário distintivo que
tem também um precioso valor documental pela forma como desperta para uma
realidade sociocultural característica do nosso território num contexto histórico
específico.
A Gândara que surge nos seus
livros diz respeito a uma realidade sociológica marcada por vidas sofridas, sujeitas
às maiores adversidades, uma realidade de que já só subsistem algumas
referências etnográficas, mas o indiscutível valor literário da sua obra
narrativa e poética esse mantém-se intocável para além da evolução social que
felizmente ocorreu.
Daí que a Câmara Municipal encara a promoção do legado de Carlos de
Oliveira, como um dever no quadro daquelas que são as suas competências ao
nível da dinamização cultural, processo em que, lembro, contámos sempre com o
estimulante apoio da saudosa Dr.ª Ângela Oliveira e também das suas sobrinhas,
Dr.ª Paula de Oliveira e Dr.ª Margarida Oliveira.
O nosso compromisso é o de continuarmos a honrar o legado de um autor
muito justamente aclamado como um dos mais proeminentes escritores portugueses
do século XX, potenciando o valor simbólico de uma literatura umbilicalmente
ligada ao nosso território e acentuando nele, aos mais variados níveis, as
referências aos lugares e aos contextos sociais que surgem na sua obra.
Acredito que essa é a melhor
forma de honrar a memória e o valioso legado de Carlos de Oliveira.
A terminar, felicito o Dr. António Breda de Carvalho pela
conquista do Prémio Literário Carlos de Oliveira, agradecendo a presença de
todos e manifestando o meu mais vivo reconhecimento ao Cantemus – Coro Juvenil
do Município de Cantanhede e ao maestro Augusto Mesquita a sua preciosa atuação.
Muito obrigado!
PRÉMIO CARLOS DE OLIVEIRA
António Breda de Carvalho
recebe 5.º Prémio Literário Carlos de Oliveira
O Município de Cantanhede vai proceder à entrega do
5.º Prémio Literário Carlos de Oliveira na próxima sexta-feira, 1 de março, em
cerimónia pública a realizar no salão nobre dos Paços do Concelho, às 21:00.
“A Odisseia do Espírito Santo”, da autoria de António
Breda de Carvalho, é a obra vencedora da quinta edição do concurso promovido
pela Câmara Municipal de Cantanhede para estimular a criação literária e,
simultaneamente, homenagear um dos grandes vultos da literatura portuguesa do
século XX.
No decurso da sessão, a apresentação editorial estará
a cargo de António Ribeiro, autor de uma dissertação de mestrado que serviu de
mote ao romance premiado, seguindo-se a atuação do Cantemus – Coro Juvenil do
Município de Cantanhede, que interpretará alguns poemas de Carlos de Oliveira.
O valor do prémio literário dedicado ao autor de “Uma
Abelha na Chuva” e “Finisterra. Paisagem e Povoamento” é, recorde-se, de 5.000
euros, verba totalmente suportada pelo Município de Cantanhede, que assegura
também a edição da obra vencedora, o que entretanto já aconteceu com “A
Odisseia do Espírito Santo”.
O
livro explora factos históricos ocorridos na aldeia de Vilarinho (Mondim de
Basto) em 1758 e 1759, período durante o qual foi criada uma heterodoxa
congregação do Espírito Santo para auxiliar uma mulher possuída por um
espírito.
O júri do concurso literário reconheceu-lhe “um
original dispositivo narrativo que faz com que a história seja contada na
primeira pessoa alternadamente por todas as personagens, pela capacidade de
efabulação e pela riqueza da linguagem, que oscila entre a reconstituição do
léxico do século XVIII e o dos nossos dias.”
O autor, António Manuel de Melo Breda Carvalho,
professor, nasceu na Mealhada, em 1960, e tem obra literária editada, além de
estudos regionais.
_____________________________
António Breda Carvalho venceu
quinta edição do Prémio Literário Carlos de Oliveira
A Odisseia do Espírito Santo, da autoria de Albano Farinha, pseudónimo de António
Manuel de Melo Breda Carvalho, é o livro vencedor do V Prémio Literário Carlos
de Oliveira, concurso promovido pelo Município de Cantanhede para celebrar a
vida e obra de um dos mais importantes e aclamados escritores do neorrealismo
português.
O júri fundamenta a sua decisão “no facto de A
Odisseia do Espírito Santo possuir “um original dispositivo narrativo
que faz com que a história seja contada na primeira pessoa alternadamente por
todas as personagens, pela capacidade de efabulação e pela riqueza da
linguagem, que oscila entre a reconstituição do léxico do século XVIII e o dos
nossos dias”.
O livro explora factos históricos
ocorridos na aldeia de Vilarinho (Mondim de Basto) em 1758 e 1759, período
durante o qual foi criada uma heterodoxa congregação do Espírito Santo para
auxiliar uma mulher possuída por um espírito.
O autor, António Manuel de Melo Breda Carvalho, nasceu
na Mealhada, em 1960, e é professor do ensino básico no Agrupamento de Escolas
da Mealhada, com vasta obra literária editada, além de estudos regionais.
Iniciou a sua produção literária em 1990 inicialmente no género do conto,
tendo-se dedicado posteriormente ao romance. As Portas do Céu é o seu
romance de estreia, publicado em 2000, a que se seguiu a edição de outros
vários livros, entre os quais alguns premiados em concursos literários, como As
Portas do Céu, O Fotógrafo da Madeira, Os Azares de Valdemar
Sorte Grande, Os Filhos de Salazar, O Crime de Serrazes e Morrer
na Outra Margem.
A atribuição do Prémio Literário Carlos
de Oliveira a “A Odisseia do Espírito Santo” foi decidida por um júri
constituído pelo vice-presidente da Câmara Municipal, Pedro Cardoso, Osvaldo
Silvestre, professor universitário, em representação de Paula de Oliveira,
sobrinha do escritor, e por José António Gomes, em representação da Associação
Portuguesa de Escritores, António Apolinário Lourenço, académico convidado pelo
Município de Cantanhede.
Criado pelo Município de Cantanhede para estimular a
criação literária e, simultaneamente, homenagear um dos grandes vultos da
literatura portuguesa do século XX, o Prémio Literário Carlos de Oliveira, de
periodicidade bienal, é aberto à participação de autores de qualquer dos países
de língua oficial portuguesa, que podem concorrer com apenas uma obra, inédita
e não editada, em prosa narrativa (conto ou romance). Com um valor de 5.000
euros, o prémio é integralmente suportado pela autarquia, que, nos termos do
regulamento, assegura também a edição da obra vencedora.
A entrega do prémio ocorrerá numa sessão a realizar
para o efeito em data a anunciar oportunamente.
Crónica 16
A CIGARRA E A FORMIGA
Julga o caro leitor que hoje venho aqui contar a clássica fábula da
cigarra e a formiga? Não é esse o meu propósito. Reproduzir aqui, textualmente,
as palavras que narram essa história de cunho moralizante é coisa que eu nunca faria.
Quero evitar a velha história mas dela não me livro como ponto de
partida. E tudo por culpa do Verão. Do Verão das tardes quentes, dessas tardes
que levam os passos ao encontro da natureza. Passeios pelos campos, pinhais e
vinhedos, revisitando os sítios do passado que fazem parte de nós. Reconhecer
os cheiros que a terra exala, dispersos no ar pela brisa da tarde. As narinas
embriagam-se de sabores a terra sedenta, a palha, a caruma, a eucalipto, a
malmequeres; de sabor refrescante, o cheiro líquido da água dos poços e dos
ribeiros. Aos ouvidos chega uma sinfonia de sons orquestrados por grilos,
passarada e cigarras.
Cigarras... Pois foi o canto deste bicho que fez suspender os meus passos
durante um passeio campestre.
A memória, de repente, transportou-me ao tempo da escola primária. Vi-me
a folhear o livro da quarta classe e a ler a fábula da cigarra e a formiga.
Despertei desta memória. Olhei para o chão à minha ilharga, fiz visão de
raios X, mas carreiro de formigas laboriosas não havia. Paciência!
Voltando à fábula, todo o seu novelo se desfiou nos meus pensamentos,
imaginando as sacrificadas e previdentes formigas no labor quotidiano de
armazenar o sustento para o futuro próximo, ou seja, o Inverno. Saboreando as
delícias do Verão, no remanso fresco duma árvore, exalta a cigarra hinos de
alegria à vida, com um refrão que me parece ser assim: «A vida é bela! A vida é
bela!». No solo, debaixo da árvore, formiga a formiga se movimenta o trabalho.
E a cigarra repetindo, provocando a formiga: «A vida é bela! A vida é bela!».
A lição de moral, no fim, evidencia-se com o castigo aplicado à cigarra:
mortinha de fome, no Inverno, sujeita-se a pedir esmola à poupada e
trabalhadora formiga.
Hoje percebo que a história, seleccionada para figurar no livro oficial
da instrução primária, tinha implicações político-ideológicas. O ensino do
Estado Novo via na fábula um bom exemplo de pedagogia do trabalho e da
poupança.
Assim quedo a ouvir o canto da cigarra, levou-me a memória uns anos mais
à frente, ao tempo do liceu, já depois do 25 de Abril. E novamente a cigarra e
a formiga me visitaram, num conto de Miguel Torga.
No conto deste autor a mensagem é subvertida. O canto da cigarra,
expressão de preguiça na velha fábula, é agora sinónimo de criação artística.
Poeta do canto, este ser vive a sua liberdade plena, criativa, sem estar
sujeito aos valores normativos da sociedade. O sentido da sua vida é criar,
liberto de um trabalho que escraviza e automatiza, de um modo de vida que
garante o sustento material mas que priva a alma de sentir e fruir o que a vida
tem de verdadeiramente belo.
Neste confronto, considerando as duas versões da história, uma questão,
com respostas divergentes, se levanta: a de se saber onde está realmente a
riqueza. Na cigarra ou na formiga?
Desperto destas cogitações, mantive-me mais uns minutos a escutar o canto
da cigarra na oliveira. Era um canto agradável, de facto, que dava vida à tarde
sonolenta. Mas, marcado por reflexões de índole intelectual, comecei a registar
na pauta dos meus ouvidos os repetitivos acordes musicais da cigarra perto de
mim. Era sempre o mesmo ritmo, a mesma musicalidade, a mesma letra, o mesmo
refrão.
«A vida é bela! A vida é bela!»
A cigarra era, afinal, prisioneira de um canto único. Que monotonia!
Também a formiga vivia prisioneira de um único trabalho trilhado a negro
no chão da vida. Que monotonia!
E dali me afastei, procurando outro caminho. Um caminho que não fosse
cigarra nem formiga.
Jornal da Mealhada, 418, 04.09.2002
CRÓNICA 15
C O N T A C T O S
Sempre nutri uma grande admiração pelas
pessoas que conseguem ler um jornal inteiro. Das gordas às magras letras,
devorando o mais importante e o mais acessório. Há, confesso, duas situações em
que esta proeza pode acontecer comigo: por preguiça de me dedicar a tarefas
mais urgentes, ou tempo de ócio em que a leitura integral do jornal é simples
pretexto para me sentir activo.
Foi assim que, num fim-de-semana
pachorrento, cheguei à página dos contactos.
Diz-se por aí que a vida é feita de encontros e desencontros. E encontros dos
que o jornal oferecia, com estilos para todos os gostos, eu nunca
experimentara. Até podia afirmar aqui o contrário, contar milhentos casos que
fariam morrer de inveja o famoso Zé Canarinha, Rei dos Algarves. Mas a minha
imaginação de literato não chega a tanto. Pus-me a imaginar, sim, qual o
contacto que eu escolheria, se haveria ou não um convite convincente.
O primeiro anúncio dizia: «Jovem
atraente, peito 42, escaldante. Só vendo.»
Comecei por desconfiar do atributo
atraente. Esta era a opinião dela. Eu nunca a vi. Não sei se me sentiria
atraído; talvez traído... Por outro lado, aquele peito 42 era, para mim, uma
medida abstracta. Seria natural ou de silicone? Se dissesse, como nos anúncios
de carros, com 42 mil Km reais, era muito mais esclarecedor, embora duvidoso.
Quanto ao atributo escaldante, trouxe-me à ideia a necessidade de usar um
protector; é que nem só o sol queima... Por último, «só vendo». Fiquei confuso.
Queria dizer que a qualidade do produto só poderia ser apreciada ao vivo, com
os olhos arregalados, ou que ela só o vendia, pondo de parte qualquer
possibilidade de o dar ou emprestar? Eram dúvidas a mais...
Decidi passar ao segundo contacto:
«Senhora, na casa dos 40, completa, com tudo no sítio, atende em privado.»
Aqui também fiquei baralhado. A senhora
trabalhava na casa dos 40?. Era, admitamos, um preço demolidor para a caríssima
casa dos 300, se estivesse a falar de escudos. Mas completa e com tudo no
sítio, na casa dos 40, era coisa inédita para a minha reduzida experiência.
Tinha, porém, uma virtude: atendia em privado. Atender em público seria
vergonhoso. Mas há sempre alguém disposto a pagar para se exibir em público.
Li o terceiro contacto: «Menina sensual,
pequena mas infatigável, convive 24 horas por dia.»
Esta já me agradava. Não pelo que
oferecia, mas pelo seu espírito de sacrifício, dedicando a sua sensualidade ao
próximo durante 24 horas por dia. São destes exemplos de altruísmo, de
disponibilidade para conviver com a solidão dos outros, qual linha do Amor
Amigo, a tempo inteiro, que a sociedade precisa. Contudo, 24 horas de companhia
era uma agressão à minha paciência. Eu só me queria distrair um bocadinho.
O último anúncio proclamava: «Se és
homem, mulher ou as duas coisas, eu sou quem tu precisas. Espero por ti.»
Eu respeito toda a gente, seja singular
ou plural. Mas acontece que eu sei o que sou e do que preciso. E ir ter com
quem não sei o que é, não faz o meu género.
Depois de todas estas propostas, é caso
para dizer: mais vale estar só do que mal... contactado!
Jornal da Mealhada, 409, 05.06.2002
Crónica (14)
EIS A FLOR
Cheguei
com Abril, Maria, para te ver apanhar a flor. Vim do fim do mundo por tua
causa, para partilhar contigo o instante feliz do contacto dos teus dedos com a
flor.
Durante
décadas viveste isolada de ti e do mundo. A vida passava ao teu lado a cada
instante, em casa, na rua, em qualquer lugar, e tu via-la passar com a
indiferença de uma estátua coberta de verdete.
Que
estranha forma de viver para negar a vida, Maria! Surpreendeste-me, naquele
longínquo dia, com a decisão de abandonar a vida. Tu, tão enérgica, tão
determinada, tão corajosa, arrostando sempre a luta pelos teus ideais, pelos
sonhos em que acreditavas, e de repente desististe de conseguir a flor que
tanto almejavas.
Fizeste
da primitiva aldeia o teu refúgio, um lugar inexistente no mapa sentimental.
Aí, longe de tudo, a aldeia tornou-se o teu presente sem caminho para o futuro.
Na
velha casa de pedra, enganas o tempo com os únicos companheiros a que não
renunciaste: os teus livros preferidos, de escritores tão excluídos como tu, e os
velhos discos de vinil soltando saudosas canções de acordar os mortos-vivos.
Fora da casa, tens à tua volta as coisas simples do mundo, resumidas a um
pátio, uma horta e um jardim.
O
jardim, aquilo a que tu chamas jardim, é um canto de terra bravia junto a um
muro no fim da horta. Encostado a este, vê-se uma planta que nasceu ali por
acção do acaso. É baixa, de folhagem verde e persistente. Não lhe deste
importância quando a descobriste. Quiseste ignorar o seu destino, alheares-te
da sua sorte; por isso, começaste por olhar para ela com neutralidade, convicta
de que não resistiria à falta de cuidados.
Mas
a planta, só e desamparada, conseguiu extrair da sua vontade de viver a seiva
da sobrevivência. E todos os anos, no mês de Abril, assinalando o milagre da
sua existência, a planta dá uma flor. Apenas uma única flor por ano. Uma flor
resplandecente que dura apenas um dia.
Todos
os anos observas esta efémera ressurreição. Dizes a ti própria que nada queres
saber da planta e da sua flor. Até te esqueces delas durante onze meses. Mas,
quando Abril chega, algo de estranho desperta em ti, e uma força interior
impele-te para junto da planta para veres renascer a flor. Sentes curiosidade
de te aproximares da planta, de a examinar, e é então que uma enorme vontade de
tocar a flor, de a apanhar, percorre a ponta dos teus dedos. Mas, sempre que
ousas esboçar este gesto, um peso escuro cai sobre ti, e rápida corres para
casa, onde te recompensas ouvindo os teus discos de vinil.
Eu
sei tudo isto graças à carta que me enviaste há quinze dias. Apanhou-me de
surpresa, não a esperava, já deixara de contar contigo como personagem dos meus
dias. Por sorte, continuo a morar no mesmo apartamento, e assim chegou a tua
mensagem, que eu recebi como quem recebe o mundo nas mãos.
Estou
a caminho da tua aldeia, em direcção a ti, ao encontro de ti. Não tive coragem
de recusar o teu convite, apesar de saber que, de tudo o que me deste no
passado, nada tens para me dar. Chamaste-me para te ver renunciar à renúncia,
para assistir ao teu renascimento. Sabes que é a única coisa que tens para me
dar, sabes que aceitarei isto como se entrasses inteira no meu coração.
Por
isso, Maria, estarei contigo neste Abril para te ver apanhar a flor. Nas tuas
mãos, não será flor de um só dia, e tu voltarás a ser tu todos os dias.
Quando
chegar esse momento de sortilégio, dir-me-ás com um sorriso: «Eis a flor!»
Jornal
da Mealhada, 400, 03.04.2002
Crónica (13)
DUAS LINHAS
Depara-se o cronista com a folha em
branco no momento da escrita. A superfície branca depressa ficará manchada de
tinta preta, pois a ideia a desenvolver já salta na ponta do cursor. Há, porém,
ocasiões em que a folha em branco é motivo de angústia por não haver tema
interessante. Vê-se, então, o cronista na iminência de ter de inventar duas
linhas de paleio, para deste modo poder cumprir o seu ritual de escrita. E as
duas linhas escritas no início da crónica, tiradas com sacrifício sabe-se lá de
onde, acabam por se estenderem pela folha adiante, desejosas de nunca mais
terem fim.
Quando o cronista pensa em duas linhas,
logo se lembra do seu tempo de escola primária. Lembra-se dos cadernos de duas
linhas que o ensinaram a domar a caligrafia irreverente de aprendiz. A ponta da
esferográfica ou o aparo da caneta de tinteiro deslizavam muito apertadinhas
por entre as duas linhas do caderno. E nesse exercício, de incómodo espartilho,
se educava o aluno para vir a ser um cidadão capaz de escrever um texto com
agradável apresentação.
Hoje, esta prática pedagógica está posta
de parte, vítima de fantasmas irracionais e de pretensa revolução educativa. A
caligrafia dos alunos deste milénio parece um terreno bravio onde habitam
silvas, cardos, giestas e toda a espécie de florestação bravia. É deixá-los
escrever à rédea solta, sem regras, ao sabor da sua esperteza, pois assim virão
a ser cidadãos disciplinados, sem traumas de infância! Na verdade, é de
reconhecer que, para andar direitinho, sem sair das linhas, já temos os
comboios. E não queremos fazer dos alunos comboios, pois não? Mais vale, um dia
mais tarde, ficarem a ver passar os comboios, certinhos no cumprimento do seu
destino.
E perguntará o leitor atento: O que
ganharia a sociedade com a ressurreição do caderno de duas linhas? Talvez
muito, respondo. Assim, de repente, atrevo-me a defender que a nossa classe
política seria a principal beneficiária. Os jovens de hoje, embriões políticos
de amanhã, aprenderiam a pautar a sua vida por entre linhas. Conscientes dos
limites do tolerável, o seu comportamento nunca descarrilaria, isto é, nunca
saltaria para fora das duas linhas que limitam o espaço da racionalidade.
Exemplos magníficos de formação cívica, era vê-los reunidos a trabalhar dentro
das linhas do politicamente correcto.
Mas a classe política tem uma imagem a
defender neste país democrático. O exercício da democracia é avesso a linhas de
força. Impor duas linhas a qualquer político é limitar o seu espaço de
liberdade... e de criatividade. Ora, o político da democracia não gosta de se
coser com apenas duas linhas. Artífice da palavra e artista de palco, consegue
provar à evidência que a teoria das duas linhas só ao Estado Novo serviu. Por
isso, ele tem sempre à mão mais de duas linhas para as situações imprevistas e
complicadas.
Vejamos dois exemplos:
Se acaso o resultado das eleições não
lhe foi favorável, ele puxa de uma linha, qual ilusionista, e eis que se assume
publicamente vitorioso. Pensa que é, assim, um mestre das linhas mestras. Com
este alinhavar, julga ter linha suficiente para remendar os buracos que a sua
própria agulha criou.
Se a lição que deu à plateia, durante um
acto solene, foi de verdadeira democracia, denunciando os vendilhões do templo,
é justo assistir-lhe o direito de, num momento de aflição, puxar por uma linha
e por ela fugir, deixando os opositores à espera de quem não prometeu
regressar.
Tal como eu disse no início desta
crónica, o que mais custa é desencantar duas linhas de conversa. O resto vem
depois, espontaneamente. Duas linhas puxam mais duas, à semelhança das cerejas,
e assim se constrói o texto que deixará descansado e feliz o cronista... até à
hora de escrever outro. E se nestas linhas escritas por mim deixei, porventura,
certos subentendidos entre linhas, não é defeito meu; é o jeito de quem
aprendeu a escrever num caderno de duas linhas.
Jornal
da Mealhada, 396,
06.03.2002
CRÓNICA (12)
APANHA A FLOR!
É agora, Maria! Não hesites...
Esta é a tua oportunidade de apanhar a
flor. A flor que idealizaste para ti, que sempre trouxeste cingida ao coração,
que levemente tocaste algumas vezes, sem coragem de a apanhar, para fazeres
dessa posse o sentido da tua vida.
É agora, Maria! Não hesites...
Olha para trás e vê as pétalas secas e
murchas que viçosas caíram da flor. Eras tão nova, tão cheia de sonhos, tão
cheia de certezas para teres a flor segura nas tuas mãos e, no entanto, sempre
te resignaste a um destino que foste consentindo. Merecias melhor, Maria, tu
bem o sabes, mas só de ti te podes queixar, por teres trilhado um caminho que
não foi feito para os teus pés.
É agora, Maria! Não hesites...
Rasgaste projectos, queimaste ideias e
apagaste sonhos para dares vida a outro. Deste tanto de ti para receberes tão
pouco, e ainda ficaste em dívida porque tudo o que davas nada valia. Desististe
de ti para que outro pudesse ser... desinteressado de ti. Esvaziaste o teu ser
para que outro pudesse ser inteiro. Passaste fome de viver para seres alimento
da vida de outro que não te soube viver.
É agora, Maria! Não hesites...
Lembra-te daquela vez em que descobriste
que tudo na vida se conjurava contra ti. Com enganos tentavas iludir-te, com
ilusões tentavas enganar a vida, mas era esta e o outro que te enganavam com
flores de plástico. E mesmo assim tu ficaste à espera da hora que nesse momento
inventaste.
É agora, Maria! Não hesites...
Adiaste a tua flor para que os teus
filhos fossem flores. Durante longos anos fizeste da tua vida a vida deles para
que eles pudessem vir a colher a flor que te faltava. E ela estava tão perto,
mesmo ao alcance da mão; bastava um gesto, um corte... Mas permaneceste quieta,
na esperança da flor que tardava.
É agora, Maria! Não hesites...
E assim ficaste a olhar a flor! Olhavas
para ela e dela ficavas seduzida. Olhavas para ela e imaginavas tê-la na tua
mão, aberta às carícias dos teus dedos, aos beijos dos teus lábios, ao
aconchego do teu coração. Olhavas para ela e fazias da tua dor a glória dos
vencidos.
É agora, Maria! Não hesites...
Esquece os anos que te começam a pesar,
esquece os cabelos brancos que te começam a despontar, esquece as rugas que te
começam a desenhar. Olha para dentro de ti, procura a flor que escondeste de ti
própria, essa flor cuja beleza é sempre a mesma porque para ela o tempo não
existe. Sai de ti, olha a vida cá fora e descobrirás que a flor que te espera
pode muito bem ter todo o tempo do mundo que deixaste para trás.
É agora, Maria! Não hesites, apanha a
flor!
Ganha coragem! Abre a janela e solta a
dor que te sufoca, desce à rua e despe a roupa que te não pertence, grita bem
alto à multidão «SOU EU...» __ e segue
em frente, corre, corre, voa, voa, e verás que a vida é ainda uma flor a abrir.
É agora, Maria! Apanha a flor!
Jornal da Mealhada, 387,
02.01.2002
CRÓNICA (11)
A L B A
Não sabia que existias. Nunca tinha
ouvido falar de ti. Mas hoje, ao ler a notícia da tua morte, com uma síntese
biográfica que me despertou o interesse, fiquei com a certeza de pertencer ao
pequeno grupo de pessoas que te conheciam. E conheço-te na medida em que
conhecer é também compreender. A Ideia, para mim, é a memória de uma pessoa.
Quando penso numa pessoa, depressa os traços fisionómicos se apagam sob a força
da sua Ideia. Ora, a Ideia que te animava era demasiado obscura para a maioria
dos cidadãos. Por isso, poucos te conheciam porque poucos te compreendiam.
Sei que rasgaste a vida em duas metades
como quem divide uma folha de papel. Uma parte, sem utilidade, deitaste fora,
para o caixote do esquecimento; a outra ficou-te na mão, e nela ousaste
escrever uma nova vida. E tu foste a coragem!
A tua coragem, arrancada ao teu inferno
interior, surpreendeu, agrediu e dilacerou. É doloroso, para aqueles que
participam na comunhão da vida, ficarem de repente privados de um ente querido.
Mas a tua determinação era irreversível. Com um golpe cerce, disseste NÃO à sociedade e
à náusea que a infesta. Disseste NÃO ao emprego. NÃO aos amigos. NÃO aos familiares maternos e paternos. NÃO à mulher. NÃO aos filhos. NÃO ao teu nome.
Disseste NÃO a tudo para poderes ganhar tudo em nada. Para ressuscitar é preciso
morrer. E tu foste a coragem transgressora!
Despido da identidade que te incomodava,
foste ao encontro de ti. Na tua cidade permaneceste porque era indiferente
outra qualquer. Em todos os teus passos havia espaço e tempo, dia e noite, sol
e chuva, gente e animais. Um nada que era tudo porque tudo estava dentro de ti.
E tu foste a coragem redentora!
Deambulando pelas ruas, sem destino, sem
tecto, sujo e maltrapilho, à mercê do sustento possível, habituaste os olhos
cegos dos transeuntes a ver o vagabundo-doido que já fora gente normal antes de
ser o que é. Insensível e superior ao desprezo e ao riso, ias construindo a tua
própria cidade. E nessa tua coragem tu eras alba em perpétuo movimento!
Eras uma cidade feita de alba, uma
cidade que só os teus poucos amigos conheciam. Amigos poetas __ condição necessária para alcançar o
entendimento das coisas tidas por anormais. Eras, portanto, poeta! Tratavas a
vida por tu, rias-te dela, desprezava-la; e, no entanto, ocupavas o teu ócio de
parasita social buscando no âmago da vida, bem fundo nas suas entranhas
fedorentas, o oiro inebriante das manhãs. E tu eras a coragem feliz!
De poeta publicado, pelo gesto amigo de
outros poetas, chegaste a poeta premiado. Encheram-te os bolsos de dinheiro e
logo os despejaste em benefício dos teus filhos. Acaso o Júri do Prémio,
esquecido de que a tua mendicidade buscava algo muito mais valioso, entendeu o
teu conceito de poesia? Tu, com a tua coragem marginal, há muito que fazias da
vida poesia!
A poesia não é de todos nem para todos.
A poesia incomoda. A tua muito mais __ ela está
sobretudo no teu atrevimento, na bofetada que soubeste dar na cara da vida. E
esta sentiu-se incomodada, ofendida com a coragem poética que irradiava de um
andrajoso vagabundo. Não admira, pois, que, num acto de cobardia, te tenha
presenteado com a morte por atropelamento. Afinal, a vida gosta de coisas
prosaicas.
Tu não morreste, amigo! Enquanto houver
coragem, haverá sempre uma alba...
Jornal da Mealhada, 379,
07.11.2001
CRÓNICA (10)
O S A B O N E T
E
Nessa manhã, quando
cheguei a casa depois de uma viagem de trabalho, ansioso por um banho
reconfortante, encontrei um vazio à minha espera. Em cima da mesinha, à
entrada, um bilhete manuscrito testemunhava o adeus definitivo da minha última
companheira. Senti-me invadido por um sentimento sem definição, nem alegria nem
tristeza, talvez indiferença misturada com uma ponta de estranheza por essa
relação amorosa ter terminado sem troca de palavras, sem qualquer justificação.
Confesso que essa ruptura, pela forma como se consumou, encheu-me de
interrogações durante alguns segundos. No fundo, concluí que essa estratégia de
despedida, não sendo original, tinha a vantagem de evitar cenas mal
representadas.
Despi-me e entrei na
casa-de-banho, cantarolando uma ária qualquer, da qual só conhecia a expressão
la dulce vita. Reparei que havia vestígios de banho recente. Ar mais quente e
um aroma macio de mulher. Pus-me debaixo do chuveiro, accionei um jacto de água
e fiz o gesto de apanhar o sabonete.
Achei a saboneteira vazia.
A mulher nem sabonete me deixou...
No dia seguinte, fui de
propósito ao hipermercado (eu moro mesmo próximo) comprar uma caixa de
sabonetes. É verdade: uma caixa de sabonetes! Homem prevenido não mais ficará
sozinho sem sabonete.
Cheguei junto à estante... Azar! Quantidade de sabonetes não havia. Um só exemplar me esperava, e pensei que muito amor se estava lavando neste mundo. A marca era Lux, coisa de que eu precisava mais do que nunca.
Cheguei junto à estante... Azar! Quantidade de sabonetes não havia. Um só exemplar me esperava, e pensei que muito amor se estava lavando neste mundo. A marca era Lux, coisa de que eu precisava mais do que nunca.
Nesse instante, quando me
preparava para pegar nele, uma outra mão o disputou, colhendo-me de surpresa.
Era uma mão nívea, feminina de encantar. Mas o que eu procurava, a sério, era
um sabonete. A mão podia vir depois...
Sabonete molhado escaparia
aos dois pretendentes; assim, seco e embrulhado, só podia dar espuma de
conversa.
«Desculpe», disse
delicadamente, «eu peguei primeiro.»
«Desculpe», respondeu ela,
«pegámos juntos. E uma senhora tem prioridade.»
«Só quando se apresenta
pela direita.»
«Aqui não tem direita nem
esquerda; isto não é um acidente de viação.»
«Eu vi primeiro o
sabonete», retorqui, sem largar.
«E quem pensou primeiro?»,
teimou ela, sem largar.
«Ora», exclamei, «você não
tem mão de quem usa Lux. A sua marca é, de certeza, Nívea.»
Conversa puxa sabonete, sabonete puxa conversa! Em cinco minutos, chegámos a um acordo: partilharmos o sabonete em minha casa.
Conversa puxa sabonete, sabonete puxa conversa! Em cinco minutos, chegámos a um acordo: partilharmos o sabonete em minha casa.
Eu não vou contar como fiz
esse fim feliz. Isto que estou escrevendo não é um Manual do Sedutor.
Meus dias futuros passaram sorridentes e perfumados a Feno. Eu desconhecia esta fragrância em sabonete. E também em corpo de mulher. Era como fazer amor em pinhal aberto, com os poros da natureza exalando a essência do feno.
Meus dias futuros passaram sorridentes e perfumados a Feno. Eu desconhecia esta fragrância em sabonete. E também em corpo de mulher. Era como fazer amor em pinhal aberto, com os poros da natureza exalando a essência do feno.
Quando regressava do
trabalho, e me encontrava com ela, nós logo corríamos para o banho,
inundando-nos de espuma. Eu estava a viver uma magia de amor nunca
experimentada. Por fim, tinha encontrado o sabonete certo. Ele era de tamanho
gigante e resistente à água. Felizmente...
A companhia dessa mulher fez-me perder a noção do tempo. Graças ao sabonete! Os verbos viver e amar estavam bem conjugados.
A companhia dessa mulher fez-me perder a noção do tempo. Graças ao sabonete! Os verbos viver e amar estavam bem conjugados.
Um dia, depois de muitos
dias iguais, cheguei a casa e encontrei um bilhete. Só mudara a caligrafia; o
conteúdo da mensagem era o mesmo de antigamente. Dessa vez fiquei aborrecido.
Não tanto pelo abandono, mais pela falta de inventiva.
O melhor, nessa situação,
é tomar um banho de esquecimento. Fui lá. Sabonete não havia; gastara-se até ao
fim.
Só me restava ir ao
hipermercado.
Jornal da Mealhada, 374,
03.10.2001
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