Comecei a ver no dia em que os meus olhos nasceram nos teus. Frase bonita para uma declaração sentimental. E de sentimento se trata, realmente, mas de uma espécie desconhecida pelos dicionários e pelos tratados das paixões da alma. Já procurei a definição deste sentimento. Debalde. Talvez exista apenas em mim. Talvez um dia consiga inventar o nome certo para ele.
Moramos em cidades distantes, nunca falámos, nunca nos vimos olhos nos olhos, nem sequer ao longe. Não sabes que eu existo. Eu sei que tu existes. Desde o dia em que te descobri, os meus olhos nasceram nos teus. E com os teus olhos comecei a ver o que os meus não alcançavam.
Os teus olhos estão em minha casa, fechados no descanso duma prateleira. Escolhi para eles o sítio mais perto de mim, quando no sofá do escritório me sento para ler. É só estender os dedos, sempre que me apetece ver com eles. Abrem-se brilhantes na minhas mãos os teus olhos e pestanejam antes de novas ideias e imagens me darem. Fico preso a eles, encantado e esquecido do tempo que à minha volta flui. Por eles vejo todas as vidas que o mundo nem imagina ter. Terá o mundo consciência das vidas que possui?
Os teus olhos conhecem as vidas que fazem o mundo! Dão-me a ver vidas tão diferentes: vidas medíocres, vidas banais, vidas gloriosas, vidas singulares. Os teus olhos mergulham nessas almas evidenciando com mestria as suas grandezas e misérias. Os teus olhos são magníficos; até conseguem ver uma vida a três dimensões!
Certo dia, com os teus olhos, percorri um labirinto humano que eu nem sonhava existir. O conhecimento profundo dessa realidade inimaginável deixou-me deprimido durante uma semana. Os alicerces da minha existência tremeram e interroguei-me seriamente acerca da condição humana, do destino trágico do ser humano. Como é doloroso conhecer a alma da vida!
Todavia, há ocasiões em que os teus olhos são uma paisagem colorida. Como se mudasses de lentes de contacto, apagas a escuridão dos teus olhos para neles colocares tanta luz. Apesar do desencanto, vês que ainda é possível acreditar, e contigo eu também aprendo a acreditar.
Por que sabes tanto da vida? Como consegues ver beleza na tristeza e indiferença na alegria? Talvez já tenhas passado além da dor e agora tens a serenidade do olhar que o amadurecimento consente. Sabes?... Desde que descobri os teus olhos, estou a aprender a olhar a vida com outros olhos, com a coragem que faz de um espinho a rosa florida!
Às vezes sou invadido por súbitas interrogações. Desconfio que os teus olhos são puro fingimento. Que os olhos com que vês o mundo não são os teus verdadeiros olhos. Que esses olhos são roubados a pessoas anónimas que passam na rua, para as quais inventas biografias insólitas. Que vais buscar esses olhos a mortos e a vivos, a qualquer espécime humano que te horrorize ou encante.
Tenho de te confessar: Nos últimos tempos, quando vejo com os teus olhos é como se me visse ao espelho. Chego a pensar que vejo e sinto com os meus próprios olhos. Pode ser ilusão da minha parte, mas pressinto que os olhos com que vês o mundo já são os meus olhos quase. Quase porque percebo que há uma pequena diferença entre eles: os teus atingiram um entendimento superior da vida; os meus ainda não.
Quando os meus olhos se fundirem completamente com os teus, com que olhos verei realmente o mundo?
Jornal da Mealhada, 451, 07.05.2003
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