Fogo

O velho tem rosto e ele não sabe que rosto tem. Há muitos anos que deixou de se ver ao espelho. Esqueceu o rosto. Por vezes sente a tentação de imaginar o rosto, de o configurar a partir de bocados do seu passado. Mas logo sacode a ideia num meneio de cabeça. Mesmo quando visita o riacho, para nele se banhar ou aprovisionar as necessidades domésticas, mesmo nesse riacho que se espreguiça a pouca distância do casebre, ele fecha os olhos para não se ver reflectido no espelho de água fragmentado. Desinteressado do rosto, deixou-o cobrir-se por umas barbas que o invadiram como um silvedo em terra agreste. Se acaso o velho visse o rosto, ele veria apenas dois olhitos baços e continuaria sem saber que rosto dormia sob aquele manto disforme. O velho não sabe que rosto tem. Ninguém sabe que rosto tem o velho. Há muitos e muitos anos que ali vive sozinho, no alto da serra, da serra que ele vê, do nascer ao pôr-do-sol, vestida de verde.
Na noite quente de Agosto, o velho está sentado numa pedra, encostado à parede da casa. Gosta de estar assim, imóvel como a pedra onde se senta, imóvel como a noite que o envolve, escondido no negrume das suas barbas. Escuta. Absorve odores nocturnos. Escuta a polifonia que a natureza liberta e atribui um nome a cada som com um sorriso. Quando um som desconhecido surge na noite, ele apura a audição e regista-o na pauta da memória. Reconhece com facilidade as fragrâncias que passeiam pelo ar. A cada som e a cada odor deu um nome. Um nome para cada coisa invisível, para cada coisa sem rosto. Sabe-se agora por que razão não gosta de contemplar as estrelas.
Súbito na noite, em simultâneo, olfacto e audição captam na lonjura da serra dois indícios que o velho instintivamente associa. Um cheiro a lume e fumo sobe pelas cavernas do nariz e os ouvidos murmuram-lhe um ténue crepitar de chamas. Demora uma fracção de segundo a ignorar esta ocorrência, tão banal no seu quotidiano nocturno. E o velho sem rosto, esquecido da persistência destes sinais, volta a mergulhar na noite sem rosto.
Por pouco tempo. O cheiro a fumo começa a acomodar-se na roupa e névoas de fumo passam pela cara. O crepitar do lume aproxima-se num crescendo de volume. O velho levanta os olhos para o cume da serra e sereno continua perante a realidade já pressentida. E vê uma comprida cobra de fogo, faminta e enraivecida, a devorar tudo à sua rápida passagem, avançando na direcção da casa.
O velho não se assusta. Permanece sentado na pedra, de olhos fixos na voragem das chamas. Conhece muito bem o fogo. Lidou com ele desde garoto. Aprendeu a combatê-lo, a dominá-lo e a extingui-lo. O fogo é o ex-libris da sua vida.
Assim estando, sentado na pedra junto à velha casa, o velho revê-se menino a saltar à fogueira pelos santos populares. Era no tempo em que a rapaziada construía presépios na rua e pedia aos transeuntes um tostãozinho pr’ó Santo António. E à noite havia arraial. Talvez tenha começado nesse tempo a sua sedução pelo fogo. A coragem de o arrostar, de o conquistar. Depois, já adulto, foi a sua prestação dedicada como soldado da paz. Aqui, uma luta de gigantes, nunca se deixando surpreender pela manhosice diabólica das chamas.
Uma vida à volta do fogo, acendendo e apagando o fogo do coração também. Gostava, na adolescência, de cantarolar «amor é fogo que arde sem se ver». Incendiou paixões e em paixões ardeu.
O velho continua sentado. Sabe que não tem pernas para fugir ao lume que o persegue nem braços para lhe fazer frente.
O ar começa a tornar-se irrespirável, o fumo envolve tudo e o calor aumenta. À sua frente um mar vermelho alastra sobre si. Já galgou o riacho. E, neste instante, acende-se-lhe na memória o fogo que durante a sua vida lhe queimou a alma, o fogo que lhe queimou o sorriso dos lábios, o fogo que lhe cobriu o rosto de cinzas.
O velho sabe que vai morrer mas espera a morte com serenidade e indiferença.
Quando o seu corpo for encontrado, ninguém saberá que o velho, antes de morrer carbonizado, já há muito tempo ardera completamente por dentro.

Jornal da Mealhada, 464, 03.09.2003

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