Agora que estou calmo e resignado ao que de mais evidente nos traz a vida, agora que consigo reencontrar-me contigo para um diálogo que só nós dois entendemos, sei por que razão decidiste morrer ontem. “Hei-de morrer no dia em que bem me apetecer e esse dia terá um significado especial”, dizias-me tu, avô, amiúde, e eu ficava perplexo com a tua certeza sobre um desígnio tão absurdo. “Serei eu a morrer, eu, a morte não terá o poder do seu livre arbítrio sobre mim.” Nunca poderias suicidar-te porque eras contra todas as formas de suicídio. “Isso é dos fracos, menino. Todo o homem que é homem, com os tomates no sítio certo, nem ideologicamente se suicida”, afirmavas tu fazendo desse lema o sentido da tua vida. E eu, já irreverente, influenciado pelas leituras de autores que me aconselhavas, ou por alguma propensão genética, provocatoriamente te questionava acerca do sentido da vida, se valia a pena o sacrifício ideológico quando afinal um homem só vive uma vez, a sua vida e a sua morte, e entre o princípio e o fim tudo se resume ao instinto de sobrevivência. Pegavas na palavra sobrevivência para a aprofundares filosoficamente e explicavas que sobreviver, nesse campo de reflexão, tinha um alcance diferente: “sobre viver ” o mundo e as pessoas no sentido de posse e gozo. Que este era o sentido errado da vida. E eu, entusiasmado: “Avô, qual é então o sentido verdadeiro da vida?” Sorrias condescendente. Mandavas-me fechar os olhos, eu fechava-os cheio de expectativa, e perguntavas: “O que vês?” Eu nada via, só escuridão, e tu peroravas: “Ainda não estás preparado para ver o verdadeiro sentido da vida”.
Este nosso diálogo aqui no velório, neste espaço frio de capela mortuária, sentado à tua beira, não o imaginam os teus poucos bons amigos. Nem os teus inimigos declarados e dissimulados, que param junto a ti, olham para o teu rosto envelhecido e pálido, mas ainda com um inapagável sorriso intimidatório, e de ti se afastam com ar de alívio. Ai o que tu lhes dirias neste momento se acaso o pudesses fazer! Mas eles sabem que pela primeira vez podem afirmar o sentido da vida deles sem que tu os incomodes.
Na realidade, avô, passaste toda a tua vida lutando pelo teu sentido da vida, levando-o a lugares desconhecidos, dando-o a pessoas que não o queriam. No fundo, só querias ver este mundo mais perfeito, onde cada homem pudesse cumprir o destino com inviolável integridade de valores. A condição humana que buscavas e que impunhas a ti próprio e à sociedade era apenas a da verdade. “Isto sim”, proclamavas, “é o que define um homem e o torna livre”.
Lembro-me, avô, de um projecto que me revelaste numa das tardes de conversa à sombra da nossa secular glicínia. Querias criar um mundo novo à semelhança dos teus ideais, pioneiro numa experiência que designavas por “A Nova Pasárgada”. Com um grupo de pessoas defensoras da mesma causa, idealizavas partir para uma aldeia deserta nos confins deste país, para aí vivenciar o modelo de uma sociedade perfeita. Viveste apaixonado por esta aposta durante um ano, expondo detalhes de uma utopia que eu não ousava destruir. A ela não aludiste mais, a partir de certa altura, e eu pactuei com o teu silêncio para que permanecesses intacto na grandeza do teu sonho.
Também à sombra da velha glicínia me davas a ler as tuas crónicas publicadas no semanário local. Eram textos com um expressivo recorte literário, marcados por uma característica recorrente, a tua marca de água: a ironia cáustica. Implacável, zurzias a actualidade nos seus diversos quadrantes, terminando todas as crónicas com uma frase emblemática: “Por favor, parem o universo. Quero apear-me.” Esta façanha granjeou-te uma estrondosa fama sem fronteiras, na pior e melhor acepção da palavra, visto por alguns como um homem corajoso, visto por muitos como um inimigo. Corrigir a sociedade, expondo verdades e acusando mentiras, semeando a coragem e apagando o medo, propondo soluções sem interesses ocultos, reclamando justiça e humanismo, era, enfim, o teu propósito, o sangue que te dava vida. Nunca por um minuto vacilaste perante as inúmeras tentativas de te comprarem o silêncio. E assim foste proscrito mas hipocritamente respeitado pelo poder acobardado.
Sabes, avô, na semana anterior ao teu falecimento pressenti em ti um olhar vago e pasmado, uma quebra de vivacidade nos teus olhos. À sombra da glicínia inquiri-te acerca desse semblante, o que te ia na alma. “Estou a germinar a minha última crónica”, disseste com espontaneidade, como se esse fosse o facto mais natural da vida. Num tom de brincadeira perguntei qual seria o título derradeiro da tua escrita jornalística. “Por favor, parem o universo. Quero apear-me.” Achei graça. “Ora, avô, só podes estar a brincar. Queres que eu acredite que és homem para ficar parado a desfrutar inocentemente a sombra da glicínia?” E, logo de seguida, deste-me a conhecer o primeiro parágrafo, que já bailava na ponta da língua: «Agora que estou para me despedir de tudo e de todos, sinto que há idades bonitas para morrer.» Depois, puseste o braço sobre o meu ombro e paternalmente esclareceste: “Vou morrer na próxima semana”. Estremeci com surpresa incrédula. “Ai, avô, que sentido de humor. Há muito tempo que não vinhas com esta tolice.” Alinhando no jogo perguntei: “E o dia, já sabes?”. “Sim. Será no dia do meu aniversário.”
Quiseste assim que a tua existência fosse um círculo, nascendo e morrendo no mesmo dia do mesmo mês, na simetria coerente de 88 anos de vida. À face da terra cumpriste o teu destino, lutando contra tudo e todos, insubmisso, reduzindo inclusivamente a morte à sua insignificância, celebrando o triunfo da vida na representação simbólica da data de nascimento. Na tua convicção só fazia sentido nascer para renascer permanentemente, nunca nascer para morrer. Por isso, ao faleceres no dia do teu nascimento, escreveste que os teus ideais não morreram contigo, que alguém já nasceu ou vai nascer para continuar a luta pela verdade.
Fecho os olhos, na capela fria do velório. Olho para dentro de mim e não vejo escuridão.
Contemplo-te no repouso eterno e rememoro a tua silhueta física e o teu rosto que preencheram largos anos da minha vida. Mas sei que a imagem mais forte, a que nunca se desvanecerá da minha memória, será a “ideia” que te definia como homem.
Avô, julgo que não deves estar surpreendido com a quantidade de pessoas que de ti vêm despedir-se neste dia. Pessoas que se riam de ti, que tentaram silenciar-te, e que agora aqui estão, em pequenos grupos a cada canto, elogiando a memória de um homem que ao mundo soube dar um nobre exemplo de vida.
Ai, avô, receio que a meio do funeral te levantes e grites: “Por favor, parem! Quero apear-me”.
1º prémio nos Jogos Florais dos Amigos de Torres Vedras/2010
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