A noite era de breu e de chuva torrencial. As ribeiras transbordavam e confundiam-se com os campos alagados e com a noite escura. Quando os relâmpagos acendiam um archote no negro céu, as árvores pareciam fantasmas aterrorizados e viam-se dois cavaleiros rasgando o temporal, curvados sobre as cavalgaduras cansadas, aproximando-se das portas de Alvaiázere.
Havia horas que cavalgavam, vindos de Coimbra, de onde partiram mal as primeiras gotas de chuva tocaram o Mondego. Tinham abençoado os sinais de tempestade, a viagem seria mais segura, pois dificilmente alguém teria a coragem de sair do conforto de um tecto para se aventurar numa perseguição incerta. Mas aquilo que era desejado como uma simples tarde de Janeiro, tarde chuvosa igual a tantas nesta época do ano, transformou-se imprevistamente numa perigosa viagem, ficando os cavaleiros indefesos às partidas da natureza. A confiança na sensata decisão tornara-se, do dia para a noite, num sentimento de medo, maior do que aquele que os fizera empreender tamanha acção.
Os relâmpagos iluminavam-nos de pavor mas também de esperança, de tocha necessária para não trocarem os passos e desembocarem na voragem de uma ribeira ou perderem-se no rumo sem fim dos caminhos. Um novo relâmpago aproximou deles o espectro de um casario, a centenas de metros dali.
Um dos cavaleiros levantou o braço e esticou-o para a frente:
— É ali, senhor? — perguntou rápido antes do rugido do trovão.
O outro concordou com um cabecear. Era mais velho, o dobro da idade. O corpo enregelara, os dentes rangiam de frio, se falasse seriam palavras tremidas.
Pouco depois entraram no burgo, seguros no piso rijo da rua principal da vila. Eram 10 horas da noite. Não existia vivalma por ali, toda a gente recolhida, nem mesmo um cão vadio ou caseiro se atrevia a ladrar ao toque-toque das ferraduras contra a calçada.
— Será nesta rua, senhor?
— Uma casa com brasão — informou o outro com palavras sincopadas, poucas o suficiente para não gastar a réstia de energia que lhe sobrava.
Encontraram a casa antes de a rua terminar no largo da vila. Bateram à grande e pesada porta com uma pedra apanhada do chão, a força da mão contra a espessa madeira não acordaria sequer um cão vigilante, quanto mais o empedernido sono da noite pesada e escura. Bateram três vezes e três vezes esperaram encostados aos animais. Começavam a pensar que aquele solar já habitantes não tinha e um sentimento de desespero começou a apoderar-se deles. Haviam vencido gloriosamente uma longa e perigosa jornada, seria triste e lamentável a sorte deles acabar ali na valeta, como dois mendigos, debaixo de beirais, juntos a um largo brasão estampado na parede da habitação. Num gesto de raiva, o mais novo arremessou a pedra contra as ferragens da porta e um estrondo ecoou no interior do solar. Algo despertou na noite quieta e calada, primeiro uns sons difusos, talvez ensonados, depois um subir de ruídos, passos, vozes de pessoas e animais à mistura, até que uma chama tremelicou numa das janelas do primeiro andar. Um homem com touca de dormir enfiada na cabeça examinava-os por detrás da cortina, receoso e indeciso.
— Dom Serpa e Oliveira… — gritou o homem mais velho, arrancando uma força desconhecida de dentro de si.
Aquela voz não era estranha aos ouvidos do dono da casa. Não se lembrava dela mas ganhava confiança nos desgraçados que lhe apareciam numa noite infernal. Sabiam o seu nome e só Deus sabia o motivo desta visita a horas tão impróprias; talvez uma aflição, talvez uma desgraça.
— Dom Serpa e Oliveira… — repetiu agora o outro viajante, mais novo, mais enérgico.
O homem despertou do sono e das reflexões. Subiu a janela de guilhotina e gritou:
— Por quem sois?
— Por Cristo, pelo Rei e pelo parentesco e amizade que nos une, dom Serpa e Oliveira. Sou Diogo Lopes Pacheco, não me vedes?
— Como queirais isso a uma hora destas e aí todos encapuzados?
— Abri depressa, por amor de Deus. Estou mais morto do que vivo.
Veio um criado, homem feito, abrir-lhes a porta. Pegou nos cavalos e foi com eles para a cavalariça, depois de indicar com o braço a direcção da cozinha, onde os esperava o fidalgo à volta da lareira que crepitava um lume reacendido naquele instante.
— Ide vestir estas roupas secas, depressa — atirou logo, evitando o incómodo dos cumprimentos molhados.
Obedeceram sem palavras. E voltaram breves, secos e ávidos pelo calor do lume que crescia, onde o criado colocava perto mochos e uma mesa baixa com broa, chouriço, azeitonas e vinho tinto. Comeram e beberam, ainda tiritando, calados, com o beneplácito do hospedeiro. Pouco depois, dom Diogo arrotou e limpou os beiços às costas da mão. Era o sinal de satisfação, que estava finalmente pronto para a explicação esperada por dom Serpa e Oliveira.
Eram primos afastados. Dom Serpa e Oliveira fora amigo e companheiro de armas de dom Lopo Fernandes Pacheco, pai de dom Diogo. Combateram juntos na Batalha do Salado. Afastara-se da corte para gozar os últimos dias na pacatez do solar de Alvaiázere, que herdara de um tio-avô sem descendência directa, mas manteve no coração um grande orgulho pelos feitos do seu primo dom Lopo, conselheiro do rei D. Afonso IV, embaixador, e já sepultado para sempre na Sé de Lisboa. Deste seu filho, que ora o visitava tão sem aviso e numa noite de loucos, sabia que herdara a importância política do pai, pois era alto conselheiro de el-rei.
— Creio que tenhais boas razões para mas apresentardes a uma hora destas e tão sem aviso — solicitou o velho fidalgo, depois de sacudir o criado que ali ficara especado a um canto.
— Estamos de fugida para Castela e rogo-vos, meu primo, o favor de nos recolherdes em vossa casa, o tempo suficiente para darmos seguimento a esta nossa empresa.
— E quem é esse que vos acompanha?
— Um escudeiro meu, leal servidor.
Dom Serpa e Oliveira ficou pensativo, passou a mão pelo queixo onde a barba despontava branca:
— Imagino que coisa grave deve ser para um digníssimo conselheiro de el-rei fugir a sete pés numa noite de temporal. Debaixo de que saias vos metestes, dom Diogo? Com essa idade, ainda vos atreveis a tanto? — e soltou uma risada.
Dom Diogo tinha 50 anos e sentiu-se melindrado com a provocação do velho. Se fosse um problema de saias, ele saberia resolvê-lo bem sem tirar um pé da cama.
— Dom Pedro, o herdeiro da coroa, tem algozes à minha procura. Quer capturar-me, à revelia de seu pai, para saciar a sua sede de vingança.
O senhor de Alvaiázere mudou de feições, o caso era muito sério.
— E porquê?
— Porque cumpri, meu caro primo, o meu dever de patriota.
— De patriota? Quereis dizer que dom Pedro é o quê então?
— Se ele coloca o futuro do Reino em perigo por causa de uma paixão insana por uma mulher, que é o pomo da discórdia política, então ele é um traidor e eu um herói.
— E quem é essa mulher?
— A muito bem conhecida Inês de Castro, aia da rainha, por quem ele se apaixonou e se ligou.
— E qual é o problema?
— O problema é que ela é filha de nobres castelhanos rivais da família da ex-rainha, e a sua união com dom Pedro pode comprometer a paz de Portugal.
Dom Serpa e Oliveira percebia inteiramente o problema político, só não sabia ainda a implicação do primo na história, dado que o seu cargo junto de dom Afonso IV lhe garantiria toda a protecção.
— Afinal, por que fugis?
— Dom Afonso IV, aconselhou-me a isto. Entendeu que o refúgio no estrangeiro era a melhor forma de segurança. Para mim e para Pêro Coelho e Álvaro Gonçalves.
— Afinal, por que fugis? — insistiu o fidalgo.
— Tirámos a vida a Inês de Castro.
O fidalgo de Alvaiázere estremeceu:
— Albergo então em minha casa um assassino.
Dom Diogo fez um esforço para conter a súbita ira que lhe pôs o sangue a ferver.
— Assassino não, meu caro senhor. Sou um patriota que cumpriu o seu dever. Um conselheiro que sabiamente viu que o amor ao Estado é superior ao estado do Amor.
Dom Serpa e Oliveira calou-se e mergulhou num silêncio profundo.
— O que faríeis vós no meu lugar, português dos quatro costados e fiel servidor de el-rei nosso senhor? — inquiriu dom Diogo.
— Tendes o sangue de vosso pai. São os nobres desta raça que tornam esta nação independente e imortal. Eu teria feito o mesmo, no vosso lugar. Honra e glória vos sejam reconhecidas.
Dom Diogo levantou-se e abraçou efusivamente o seu primo. Era o primeiro abraço fraternal naquela noite. O segundo e último ocorreu ainda de madrugada, quando ao cantar dos galos na manhã aliviada de chuva os dois cavaleiros se despediram de dom Serpa e Oliveira, trotando em direcção a terras de Castela.
Um mês depois, em plena tarde de sol, alguém bateu à porta de dom Serpa e Oliveira. Foi abrir a porta o criado e deparou-se com o escudeiro de dom Diogo Lopes Pacheco, o qual regressava de terras castelhanas, com uma mensagem secreta para el-rei D. Afonso IV. Pedia asilo ao senhor da casa por uns dias, o suficiente para ferrar a cavalgadura e ele próprio descansar o corpo, fruindo os ares de Alvaiázere. Acedeu o nobre ao pedido do escudeiro, indicando-lhe o palheiro nuns anexos dentro do muro da quinta, depois de ter recebido novas e abraços do seu primo dom Diogo.
Acomodou-se o escudeiro no palheiro, outra benesse não esperava ele. Ao menos sabia que ia ter cama e comida, não era uma estalagem, mas a cavalo dado não se podia olhar o dente. À noite mordiscou uns torresmos na companhia do criado e, depois de bem bebido, atirou-se para cima da palha, onde ressonou toda a noite.
Acordou a meio da manhã ao som de uma cantoria que dali perto subia no ar. Era uma melodia que lhe fez mexer as orelhas de curiosidade, não pela letra ou musicalidade, nada de especial, diga-se em abono da verdade, mas por ser uma voz feminina, graciosa e juvenil que se enroscava nos seus ouvidos como um convite. Espreguiçou-se e, já cheio de manha e de propósito, levantou-se e foi ao encontro dessa voz que lhe despertava instintos de macho adormecido. Parou por detrás da moça, extasiado com o encanto feminino que os seus olhos viam. Num tanque cheio de água aquecida, era uma princesa linda de morrer que a seus olhos lavava a roupa do solar, talvez a única alma feminina que ali tinha entrada. Ai, fosse ele o criado de dom Serpa e Oliveira, outro galo cantaria para ele todas as manhãs.
Inês interrompeu o canto quando sentiu passos atrás de si. Usava uma trança loura e as mangas arregaçadas puxavam a imaginação do escudeiro, que uma lavadeira assim tão apetitosa nunca os seus olhos haviam visto na corte ou em lugar algum. Ela olhou o homem atrás de si: barba com oito dias, cabelo desgrenhado, olhos raiados de sangue, um aspecto de assustar a mais inocente criatura ao cimo da terra.
— Podeis dizer-me qual a vossa graça? — meteu conversa com um sorriso nos lábios.
— Inês. E quem sois vós? — perguntou receosa.
Ele achou graça ao nome. Estranha coincidência, outra mulher bela e com o mesmo nome. Mas esta… ele queria-a bem viva… para si.
— O vosso príncipe encantado — respondeu ele com artimanha, convencido de que pouco bastava para iludir uma saloia aldeã.
— Esperai sentado e achar-vos-eis velhinho.
— Sou escudeiro de dom Diogo Lopes Pacheco, conselheiro de el-rei D. Afonso IV — esclareceu, para que ela tomasse conhecimento da sua importância e da sua influência.
— E eu sou filha de meu pai e minha mãe, e dona de mim própria. Ide tomar banho juntamente com as pulgas e deixai-me em paz, antes que grite por meu amo.
O escudeiro percebeu que a rapariga era uma pedra dura, que só a força e o medo a poderiam partir em lascas até se desfazer em pó nos seus braços. E, chegando quase ao ouvido dela, sibilou:
— No fim desta semana vou levar um recado do meu senhor a el-rei. Depois regressarei aqui acompanhado por três soldados e com uma ordem do nosso senhor Dom Afonso IV para que me presteis vassalagem em todo o serviço. Sereis minha, ou sereis morta… como Inês — e largou um sorriso ameaçador.
— Pois sim… — rematou ela, embora sentindo algum receio de que isso pudesse efectivamente acontecer.
Inês foi para casa preocupada. Vivia com uma velha tia desde que ficara órfã de pais e sozinha neste mundo. Desabafou com a tia o caso que lhe aconteceu, não conseguindo segurar as lágrimas. A velha mulher consolou-a e sossegou-a dizendo que para grandes males havia grandes remédios.
O resto da semana foi sentido pelo escudeiro como uma vitória antecipada. Inês mostrava-se segura mas dócil, conversadora, menos esquiva, sugerindo promessas de amor. E ele, perdido de sorrisos e de sonhos, dizia para os seus botões que quando uma mulher não vai com palavras vai sempre com pancada.
Na hora da partida do escudeiro, Inês procurou-o para se despedir dele, desejar-lhe uma boa viagem e oferecer-lhe um cesto de maçãs para ir roendo pelo caminho.
Envaideceu-se o escudeiro com esta gentil e amorosa dádiva, sinal inequívoco de que a rapariga o aceitava já e até lhe ofertava maçãs, nas quais ele via promessas de saboroso prazer. Eles seriam, sem dúvida, Adão e Eva.
— Esta fruta é de Maçãs de Dona Maria — referia-se ela a uma terra ali perto de Alvaiázere.
— Para mim — respondeu ele sem perceber a informação — são maçãs de Inês, as mais saborosas do mundo.
— Também estais certo. Quando as comerdes lembrar-vos-eis do meu nome e não de Dona Maria.
— Mortinho estou eu para as provar — disse melífluo, com segunda intenção.
— Agora não, por favor. Estão guardadas para a viagem, para não vos esquecerdes de mim. Quero que as proveis pelo caminho.
— De caminho as comerei, podeis ter a certeza.
— Sim, podeis comê-las em Maçãs de Caminho. Uma aldeia por onde tendes de passar na vossa viagem.
— E porquê aí?
— Porque diz o povo que quem comer a maçã do amor em Maçãs de Caminho, de caminho verá os seus desejos satisfeitos.
E com esta lengalenga de palavras partiu o escudeiro com a certeza de que no regresso teria Inês nos seus braços, numa fofinha cama, fosse ela palheiro ou colchão de nuvens.
Chegado a Maçãs de Caminho, abriu o saco de maçãs e gozou a caminhada deliciando-se com elas. Eram mesmo saborosas, estas maçãs de Dona Maria. E pensando em Inês, não resistiu a trincar mais uma.
Ainda o cavalo mal tinha mexido as patas, sentiu um súbito ardor de estômago, uma faca que o abria por dentro, o chão que se afundava aos cascos do cavalo. E no momento em que o seu corpo descaía do animal, teve ainda um lampejo de consciência.
3º lugar no Prémio de Conto da Câmara Municipal de Alvaiázare/2010
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