Santo André

O meu velho não queria.

Era assim que os meus olhos viam o meu pai: velho e gasto como uma ferradura de tanto bater no chão da vida, apesar dos seus cinquenta anos. Talvez não fosse assim tão velho (que sabia eu da velhice?), mas para mim era velho e eu imaginava-me muito mais velho do que ele quando atingisse essa idade.

O meu velho não queria.

Aliás, sempre quis que eu fosse como ele. E teimoso, martelava. Todos os dias a mesma teimosia. Todos os dias a mesma cantilena de sons metálicos a furar os ouvidos da aldeia. Eu era a ferradura entre o malho e a bigorna. O meu velho não queria que a minha vida fosse um navio no mar alto. E eu não queria ser ferrador, o filho feito à imagem e semelhança do pai.
A minha mãe ia atrás da conversa dele como facilmente as vacas a seguiam pelo pasto. Pachorrenta e obediente, enchia de razão a voz do marido quando à ceia eu me atrevia a pôr no caldo uma pitada de sonho. Eu a martelar. Teimoso como o malho contra a bigorna fria. Riam-se, primeiro, sempre o mesmo riso escarninho, silencioso, com a repetida frase a faiscar nos olhos… 

 Lá vem o raio da conversa!

 Surdos aos meus argumentos, vinha o ralhete, o malho sobre a ferradura.

Que sabes tu da vida?

Cala-te, mas é, antes que emborques um estalo.

E a ceia terminava com a bênção materna.

Ai este André! A quem sai o raio do cachopo?

Sair do Bunheiro era o meu sonho. Regressar a Bunheiro, de longas em longas temporadas, fazer desta terra o porto de descanso do marinheiro, era o meu desejo. Sou filho desta aldeia, nela cresci e amo esta paisagem e esta gente humilde. A ria é o meu berço de alegria. Esta água que molha os meus pés e me banha o corpo nas tardes quentes de verão é um beijo suave e uma carícia que me encanta. Aqui poderia ser moliceiro ou pescador fluvial. Poderia… se um bote e uma cana, ou uns metros de rede, fossem instrumentos suficientes para construir a minha vida. Esta ria, que os meus olhos alcançam até à distante linha de água e sabem onde o mar começa, é um aquário que me afoga. Mas o mar… ai o mar… O mar é a minha cama de felicidade! Esse mar alto e largo lá longe onde navego o meu futuro é todo o sal da minha existência. Esse mar aberto onde um pescador se olha inteiro no espelho azul.
Nasci para o mar nos bancos da escola. Quando o professor falava dos Descobrimentos, eu lançava âncora às suas palavras e por elas fazia viagens longínquas e misteriosas, por elas eu era Pedro Álvares Cabral, Bartolomeu Dias e Vasco da Gama, eu era todos os navegadores do meu imaginário. Quando o mestre-escola falava de aritmética, eu era um desaparecido em mares nunca dantes navegados.
Desse tempo de escola, inspirado pelos episódios que ávido ouvia da boca do professor, certa tarde fui narrador e personagem de uma história quinhentista. E a história que escrevi ficou-me gravada na memória como as ferraduras em fogo que o meu pai chegava às patas dos cavalos.
Nesse momento eu fiquei a saber o que queria ser: pescador de alto mar.
O meu pai, escutando a minha vontade, mergulhava a ferradura incandescente na água e, encoberto por uma nuvem de vapor que se libertava da pia de pedra, atirava-me uma resposta curta e seca, que me atingia como um coice de cavalo.

Pescador coxo, terra à vista.

Era então este o meu destino: preso à terra, preso à forja de ferrador para toda a vida, recebendo do mar apenas a ideia, recebendo a ria como consolo.
Calei-me. A minha vida nunca haveria de ter a forma de uma ferradura.
O meu pai mandava-me segurar o jumento com rédea curta, e eu, no instante em que ele erguia o martelo para espetar o cravo na ferradura, fazia cócegas na orelha do animal. Este mexia-se, irritando o ferrador.

Tá quieta, besta!

E as cargas de pancada caíam sobre o lombo do burro.
Curvar a ponta do cravo, para que este não penetrasse na carne, era outra das minhas pequenas tarefas. De vez em quando aldrabava o serviço, e o resultado era ver o pobre animal escoiceando dores, atirando o meu pai ao chão.

Ai o raio da besta! Tens o demónio no corpo ou quê?

E as marteladas caíam sobre o lombo.
Mais tarde, cansou-se de descarregar a fúria nos inocentes animais. Era eu que recebia agora a pancada. Atirava-me um pontapé ao traseiro, apanhando-me distraído, e acusava…

Coxo de merda!

Conseguira provar a minha falta de vocação para ferrador.
Pura ilusão! Ele, muito zeloso do meu futuro, entendeu-se com um lavrador abastado, proprietário da Casa do Prado. Era uma casa térrea em forma de U, coisa que não me agradava por ver nela o formato de uma ferradura. Mas a sua localização era magnífica, próxima do mar, do pinhal e da ria. Uma paisagem mais sedutora do que a oficina.
Sedutora de imagem era também a filha do dono. Moça adolescente como eu, com a imaginação à flor da pele, mas muito raquítica de letras, lerda como uma galinha. O pai, sabendo da minha ilustre instrução primária, poupou-me ao peso do trabalho agrícola, esperançado em aumentar a sua vaidade paterna com a aprendizagem escolar da filha, talvez convencido de que assim poderia valorizar este património humano, cuja única utilidade seria casar com algum fidalgote.
No intervalo das lições, sentávamo-nos no pátio, à sombra de uma parreira, e ela pedia que lhe contasse histórias. Com umas pinceladas de invenção, contava-lhe as peripécias de um ferrador. Ria-se muito com as cenas descritas e pedia logo outra história de ferradores. Nunca se cansava de histórias de ferradores como as galinhas não se cansam de esgaravatar o chão. A certa altura o reportório esgotou-se e então lembrei-me de lhe contar os episódios dos navegadores portugueses. Narrei histórias que me faziam viver por dentro, mas o meu rosto era uma parra sombria porque o mar era um sonho impossível.
Numa tarde de chuva chamou-me aos seus aposentos. Era a primeira vez que eu entrava no quarto. Sentia-se aborrecida com o tempo, queria ouvir uma história minha no quentinho dos lençóis. Tenho a certeza de que foi a história mais linda que inventei até hoje. Tenho a certeza porque me surpreendeu no fim com uma pergunta.

Queres levar-me para dentro dessa história?

Leva-me a conhecer esse mundo maravilhoso!

E onde vamos nós arranjar um mar?

Não acordou do sonho, tão embalada nele como eu.

Esta cama não é mar bastante largo?

E alisou a colcha com a mão delicada.

É! E embarcação, onde a vamos arranjar, menina?

Achas que esta barca aguenta?

Afastou o cobertor e exibiu o corpo.
Fiquei pasmado! Nunca tinha visto uma rapariga quase despida. A custo consegui soletrar…

Com essa barca vou até ao fim do mundo! O pior é o barqueiro.

Não consigo descrever o que se passou entretanto. Creio que perdi a noção da realidade, ofuscado pelo esplendor do seu corpo.
Subitamente, a moça soltou um grito de garnisé que se espalhou por toda a casa. E a viagem foi logo interrompida pela chegada de gente adulta. Hoje ainda me interrogo se esse grito fazia parte da história.
Fugi dali a sete pés para fora da Casa do Prado. Uns chuviscos molha-tolos embaciavam a tarde. Na rua, peguei numa bicicleta encostada ao muro da quinta e pedalei com toda a energia que o medo gera, sem destino, sem destino…
Parei. Era o fim da terra e o princípio do mar. O sol tardio sorria para mim por entre névoas. Estava no cais da Gafanha da Nazaré. Na tarde já sem chuva adormeci a contemplar as muitas embarcações ali atracadas e os bacalhoeiros que viajavam durante meses por esses mares de terras frias. Um deles era um sonho azul, com os seus setenta metros de comprimento. Quando acordei, ainda me sentia dentro desse navio. Hesitava no rumo a tomar… Fugir para onde?
Meia hora depois entrava no bacalhoeiro que estava prestes a partir para a sua viagem inaugural, com destino à Terra Nova.
E foi assim que, em 1949, fui saciar a minha sede de mar a bordo do Santo André.


3º prémio nos Jogos Florais da Murtosa 2011


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