apresentação do livro A ODISSEIA DO ESPÍRITO SANTO (2)
Apresentação do livro “A Odisseia do
Espírito Santo” de António Breda
Estamos hoje aqui para assistir à
apresentação do livro de António Breda, “A Odisseia do Espírito Santo”. O livro
é um romance histórico. Tem como base um outro livro, escrito por mim,
intitulado “Um buraco no Inferno. João Pinto, o lavrador heresiarca e a
Inquisição”.
Tratando-se de um romance histórico, a
narrativa segue as liberdades criativas que são naturais a uma obra de ficção.
Mesmo tendo em conta que segue e se inspira numa obra historiográfica. Esta,
por sua vez, sendo produto da investigação histórica, vê-se obrigada a
cingir-se à realidade que nos é transmitida pela documentação existente.
Se estou aqui a falar das diferenças
existentes entre obras de ficção ou historiografia, não é com nenhum intuito de
exaltar uma, qualquer que ela seja, para diminuir a outra. Isso seria
absolutamente ridículo. Nada mais enfastiante do que os zelotas que quando se
vêm confrontados com uma obra de ficção histórica começam logo a enumerar as
picuinhices de preciosismo histórico, que pouco acrescentam à nossa felicidade.
Também não deve ver-se, nesta
afirmação, a posição diametralmente contrária. Ou seja, a exaltação da
liberdade criativa absoluta, alheando-se completamente do contexto histórico em
que se insere, levando inevitavelmente ao anacronismo.
É interessante verificar que a obra de
António Breda consegue este equilíbrio de uma forma muitíssimo interessante.
Antes de mais, o texto surge-nos na forma de uma sucessão de monólogos. Cada
capítulo é um monólogo levado a cabo por cada um dos personagens. Essa é uma
estrutura narrativa que não é muito comum e que resulta muito bem. Depois a
abordagem à linguagem popular, uma linguagem que surge como uma reminiscência,
com terminologias arcaicas, produto de um mundo fechado como era o do Minho (ou
de qualquer outro na maior da Europa de meados do século XVIII). Estes são
sintomas claros de que o autor, querendo manter as suas prerrogativas
literárias e artísticas, não se esqueceu de que estava a escrever sobre homens
e mulheres que viveram numa época concreta, com circunstâncias concretas.
Em jeito de observação rápida,
permitam-me apenas que enumere ainda mais dois momentos que me ficaram do texto
e que denunciam bem essa preocupação do autor relativamente à realidade
histórica. A referência, algures no meio do livro, ao caso de Arcângela do
Sacramento e do padre oratoriano António da Fonseca, por um lado. E a descrição
do caminho para o Santo Ofício de Coimbra, quando os membros do apostolado, já
detidos, eram para lá conduzidos.
No entanto, esta dicotomia entre obra
de ficção e obra historiográfica leva-nos mais longe. Leva-nos ao ponto onde eu
hoje me proponho chegar. E o que me proponho hoje é, muito simplesmente,
explicar a história de João Pinto, figura central deste livro, desde os dias em
que ele formou o seu apostolado, algures em 1758, até ao dia de hoje, 1 de
Março de 2019.
João Pinto aparece descrito seu
processo inquisitorial como um “lavrador” de 37 anos que sabia ler. Era oriundo
da região do Bouro e viera para a aldeia de Vilarinho, perto de Mondim de
Basto, para vir exorcizar uma mulher possuída por um espírito. Durante as suas
sessões de exorcismo, um espírito começou a falar pela boca da mulher, expondo
uma estranha doutrina e dizendo que ali se deveria fazer uma congregação de
apóstolos.
Não irei aqui expor em detalhe a
doutrina exposta pelo espírito. Em meados do ano 2000, quando me deparei com
este volumoso documento da inquisição de Coimbra, existente na Torre do Tombo,
em Lisboa, nunca me teria passado que se tratava sequer de uma doutrina.
Parecia-me mais um delírio, o produto de uma febre religiosa, de tal forma o
discurso que perpassava dos documentos era incoerente e disparatado.
Existiam vários documentos relativos ao
assunto nos arquivos da inquisição de Coimbra. Quase exclusivamente processos
inquisitoriais, de João Pinto e dos restantes membros da congregação. Uma das
ideias chave do carismático líder da seita era que o Espírito Santo deveria
encarnar três vezes. À semelhança da sua doutrina, também João Pinto teria três
encarnações, no que diz respeito a textos publicados sobre si. Este, de António
Breda, é o terceiro, uma encarnação sob a forma de romance histórico. Vou
passar a contar a história dessas três encarnações.
Em 2000, no decurso de uma pesquisa
para uma tese mestrado, comecei a estudar vários livros de autos. Os livros de
autos são volumes encadernados onde estão listas infindáveis de nomes de
indivíduos condenados pela inquisição. Normalmente aparece apenas o nome e à
frente a tipologia do “crime”. Normalmente são registos muito breves, e a
tipologia mais comum é claramente “judaísmo”.
Subitamente, no meio dessas listas
enfadonhas surgiram nomes cuja tipologia não se restringia apenas a uma breve
referência de “judaísmo”, ou “feitiçaria”, ou “bigamia”. Apareciam pequenos
textos em que os inquisidores teciam considerações, que saltavam à vista em
contradição com a secura monocórdica das categorizações dos crimes tipificados,
característicos da inquisição. Falavam de um “apostolado”.
Fui ver os nomes e as circunstâncias
das pessoas indicadas, e pesquisei se haveria processos em seu nome. Sorte!
Havia! Fui consultá-los. Comecei pelo chefe, João Pinto. Confesso que não
compreendi uma parte substancial do que ali se dizia. Falava-se um “espírito
santo divino escolhido”, que “antes se chamava João”, numa vara da Senhora da
Graça que deveria furar o “oitavo inferno” e retirar todas as almas. E que “o
Padre Eterno andara pelo mundo”, padecendo, e que agora estava no céu a
vingar-se dos demónios que o tinha atormentado antes.
O texto era absurdo. Havia, no entanto,
alguma lógica que não se conseguia explicar. Não era um discurso de um bêbado
ou de um louco. Parecia sugerir uma espécie de dualidade radical entre corpo e
espírito, que aparecia sugerida em várias partes do processo, sem contudo
surgir de forma expressa. Ainda assim, os processos eram extremamente ricos em
informações sobre a vida de uma aldeia do norte de Portugal em meados do século
XVIII, dos mecanismos da inquisição e da sua presença em pontos mais remotos do
país, das formas de sociabilidade e de controlo social. Ou seja, o facto de
haver muita documentação concentrada sobre um só caso, com depoimentos de
pessoas em que a vida social, económica, cultural e religiosa era longamente
descrita, permitia que se escrevesse uma obra de história cultural e
sociológica. E esta foi a primeira encarnação de João Pinto, com a minha tese
de mestrado, intitulada “Um buraco no inferno”, o livro que terá inspirado António
Breda para a sua “Odisseia do Espírito Santo”.
Durante vários anos nunca mais pensei
em João Pinto. Um dia, no âmbito de uma outra investigação, deparei-me com a
heresia de Prisciliano, um famoso herético do noroeste de Portugal do século
IV. O priscilianismo foi uma heresia importante na península ibérica na fase
final do império romano. O aspecto que me chamou a atenção foi a forma como
Prisciliano descrevia a forma como se desenrolava a reencarnação das almas, com
subidas e descidas, sendo perseguidas por demónios e entrando e saindo dos
corpos. Aquilo que os priscilianistas diziam era tão semelhante à descrição que
João Pinto fizera da Odisseia do Espírito Santo, que eu fiquei a perguntar-me
onde é que eu já tinha lido algo de semelhante.
Quando percebi que tinha sido no
processo de João Pinto, reparei também que a área geográfica era exactamente a
mesma, embora tivessem cerca de 1400 anos a separá-los. Era uma coincidência
extraordinária. No entanto, era também um período demasiado longo de tempo para
que se tratasse.
No entanto, esse foi um momento que
abriu uma pista que se revelaria determinante. O priscilianismo era uma heresia
que tinha uma base gnóstica. Era um dos vários ramos dessa família, o
gnosticismo, que mergulhava as suas raízes nos mistérios da antiguidade e no
platonismo e que atingira o seu apogeu fundindo-se com o cristianismo nos
primeiros séculos da nossa era.
Como se de um puzzle se tratasse, comecei
a olhar para as palavras de João Pinto, ou do “espírito” que falava nas sessões
de exorcismo, com outros olhos. Como se de uma heresia gnóstica se tratasse.
Aí, as peças foram encaixando umas nas outras. O oitavo inferno, e os “infernos
que estavam daí para baixo”. As referências à reencarnação. As ideias de
espiritualidade aristocrática que estavam subjacentes a todo o discurso. A
ideia de um deus que se formara de um outro deus. O gnosticismo era a chave que
era necessária para descodificar aquelas palavras.
Mas havia, no entanto, uma parte
significativa do discurso de João Pinto que permanecia indecifrável. Porquê a
vara a furar o oitavo inferno? O que significava a ideia do Padre Eterno “que
antes se chamava João”? Porquê o Padre Eterno a caminhar pelo mundo? O que
significava o ritual, referido a meio do processo, em que os “apósotolos” se
deitavam e esperavam que as suas almas que estavam no céu viessem reclamar os
corpos?
Na parte final da minha pesquisa sobre
gnosticismo fui à melhor biblioteca que eu conheço sobre história religiosa, a
da Universidade Católica. Aí fotocopiei tudo o que encontrei sobre o assunto, e
levei esse material todo comigo para Alcobaça, onde me dediquei ao seu estudo
exaustivo. Entre esse material encontravam-se os interrogatórios dos cátaros,
que tinham sido feitos pessoalmente pelo inquisidor Jacques Fournier no século
XIV.
O catarismo era mais uma das muitas
heresias gnósticas. Viria, contudo, a ter um grande sucesso entre os séculos
XII e XIV, na região do sul de França. O meu interesse pelos cátaros prendia-se
com o facto de se tratar de uma heresia gnóstica. Apenas isso. Na altura era
apenas mais uma das seitas que partilhavam aquelas características do
gnosticismo com tantos outros grupos, e que surgiam também no caso da
congregação de Mondim de Basto.
No entanto, quando comecei a ler os
interrogatórios dos cátaros, começaram, um após o outro, a surgir os elementos
que permaneciam insolúveis no processo de João Pinto. A vara, a caminhada do
Padre Eterno a padecer pelo mundo, os rituais em que as almas vinham chamar
pelos corpos, etc. Não se tratava de semelhanças ocasionais, mas de uma
sobreposição perfeita de aspectos muito singulares e específicos.
Inicialmente pensei que nada haveria de
especial nessa circunstância, e que João Pinto teria lido esses elementos
algures. Depois de uma apurada pesquisa descobri que os elementos que estão nos
interrogatórios dos cátaros não existem em mais lado nenhum. Mais, descobri que
esses interrogatórios só viriam a ser descobertos no Arquivo do Vaticano, e
posteriormente publicados, no final do século XIX, um século e meio depois de
se ter dado o caso de Mondim.
Tinham sido levados para Roma pelo
próprio Jacques Fournier, o homem que conduziu os interrogatórios aos cátaros.
E aí tinham permanecido, obscuros e ignorados, durante mais de quinhentos anos.
Fournier viria a tornar-se Papa em 1334 sob o nome de Bento XII.
A questão que se colocava era: como é
que isto é possível? Como é que um lavrador de Mondim teve acesso a um texto
secreto (porque é disso que se trata) que só veio a ser descoberto século e
meio mais tarde? Quando acabei a minha pesquisa e reuni todas estes factos,
decidi escrever um artigo para a prestigiada revista científica “History of
Religions”, da Universidade de Chicago. Era uma publicação muito selectiva, que
já me tinha recusado artigos. Mas desta vez, pensava eu, o material que eu
tinha era de tal maneira importante que o artigo seria publicado. E não me
enganei. O artigo saiu em Novembro de 2017. Trata-se de um trabalho de
características puramente científicas. Foi esta a segunda encarnação de João
Pinto.
Em finais de Outubro do ano passado
recebi uma mensagem via Facebook de uma pessoa que me perguntava se eu era o
autor de “Um buraco no inferno”. Era o António Breda, que à falta de melhor
local, tinha andado à minha procura no Facebook. E funcionou.
Pedia-me para apresentar o seu livro “A
Odisseia do Espírito Santo”, uma obra de ficção com base em factos históricos.
Foi esta a terceira encarnação de João Pinto.
Feita esta breve resenha da história de
João Pinto e das suas várias encarnações, impõe-se agora falar do livro que
hoje é apresentado, e do seu autor.
António Breda já ganhou vários prémios
literários. Quando se abre o livro percebe-se porquê. A escrita é
irrepreensível. A forma é original, como já referi atrás. Não há diálogos. Tudo
se passa através de monólogos e cada capítulo é um monólogo de um dos
personagens ligados à história da congregação de Mondim. Até a Senhora da
Graça, uma figura que surge também implicada na doutrina salvífica de João
Pinto, contribui com dois monólogos.
A forma de monólogo acaba por impor ao
livro um tom introspectivo e quase confessional. As reflexões são ruminadas
através de uma linguagem simultaneamente popular (nota-se aqui profunda
pesquisa do autor) e cuidada.
É interessante esse tom confessional,
porque me parece que ele traduz uma vontade do autor de, depois de ler a
história original, tentar entrar na cabeça dos indivíduos que a protagonizaram.
E essa é uma aspiração legítima tanto da escrita ficcional como da
historiografia, obedecendo, bem entendido, a formas e lógicas diferentes. É
assim que António Breda explora a ideia de uma espécie de “pecado original”, um
caso de adultério entre Maria José, a mulher que era, juntamente com João
Pinto, figura central da congregação, e um sapateiro seu vizinho, que não
existe na história original.
Procura, a partir daqui, compreender as
ansiedades e desejos das pessoas comuns, das motivações que terão levado as
pessoas a aderir à seita congeminada pelo lavrador. O campo, o tédio, a
novidade, a repressão, as fraquezas humanas, tudo isto se compõe para formar
esta “Odisseia do Espírito Santo”, uma história em que pessoas comuns dão corpo
a uma história que é tudo menos comum. A dada altura, António Breda coloca na
boca de Maria José, falando de João Pinto, as seguintes palavras: “devo-lhe a
vida que já tinha perdido, renasceu-me o gosto de ver o nascer e o pôr do sol,
somos dois a trabalhar para os três mistérios como se fôssemos testo e panela
longe da fogueira do inferno, e juntos nos costuramos na cama” (p. 170). Julgo
que muito do que se passou pode ser explicado por esta ideia de fuga a um
quotidiano entediante e, em alguma medida, opressor.
Mas não se trata apenas disso. Importa
reflectir um pouco sobre estas três encarnações de João Pinto. Trata-se da
interacção entre vários elementos. Essa faceta poliédrica de João Pinto é
fulcral. Existe o elemento popular. Mas existe também o elemento letrado. A
famosa “odisseia” do Espírito Santo, por exemplo, tem muitos elementos que ele
retirou de um livro que tinha lido e que tinha forte divulgação nas cidades,
vilas e campos do país, o “Báculo Pastoral”: “não escapou da água do rio para
onde foi atirado e por onde ele foi na correnteza até uma ilha do mar, a morada
dos bem aventurados, mais conhecida por alfândega de todo o regalo, onde a
beleza embebeda os olhos, assim disse João Pinto depois de falar do bosque
cercado de rosas e jasmins e dos regatos que cantam afinados como os fiéis oram
na missa” (p. 155)
É, portanto, verdade que João Pinto
retirou algumas coisas do que disse dos livros que leu. Mas é também excessiva
a ideia, que surge num dos monólogos do sapateiro, dizendo que João Pinto
“avariou-se dos miolos com o que aprendeu nos livros que dizem ter lido, tanto
de assuntos religiosos e de espíritos malignos que não chegam ao entendimento
de todos os homens letrados” (p.120).
Na verdade, apenas uma parte deste caso
vem dos livros. Uma parte também importante dele vem do contexto popular. O
maior exemplo é o caso de possessão, em que João Pinto praticava sessões de
exorcismo para que o alegado espírito falasse pela boca de Maria José. Também o
é a ideia de João Pinto de que Maria José deveria conceber miraculosamente e
dar à luz um messias, que seria a terceira encarnação do Padre Eterno. A
possessão e a gravidez miraculosa andavam ligadas a um complexo religioso
imemorial, de que existem diversos exemplos nos arquivos da inquisição
portuguesa para os séculos XVI e XVII, e até para o século XVIII. Nesta altura
esse complexo religioso ancestral estava já em desestruturação, e as
referências que nos chegam através da documentação inquisitorial são apenas
vestígios de um passado muito remoto.
Finalmente, o núcleo duro da sua
doutrina, um mito gnóstico em que o Padre Eterno deveria sofrer três
encarnações, sendo que o seu terceiro nascimento deveria marcar a consumação do
mundo material e o nascimento de um mundo espiritual, puro e imaculado. Esse
mito gnóstico, transmitido já não em contexto popular, mas através de um antiga
tradição ligada a círculos herméticos mais ou menos fechados, terá chegado a
João Pinto através das lojas maçónicas, que tinham chegado à Galiza cerca de
vinte anos antes. É o próprio João Pinto que afirma que quem lhe ensinou aquela
misteriosa doutrina tinha sido um clérigo galego que era exorcista. Isso
corresponde perfeitamente ao perfil do eclesiástico maçónico que era apanágio
das primeiras lojas da maçonaria galega. O próprio processo inquisitorial
apresenta inúmeros indícios nesse sentido. É essa permanência ligada a uma
tradição secreta que explica o mistério de João Pinto andar a ventilar um mito
gnóstico que só viria ao conhecimento dos historiadores século e meio depois do
caso de Mondim, aquando das primeiras aberturas do arquivo do Vaticano aos
investigadores, nos finais do século XIX.
Assim, e para concluir, o que estas
três encarnações de João Pinto, que o livro de António Breda vem encerrar, nos
dizem é que o caso de João Pinto tem várias faces. É um verdadeiro poliedro. É
isso que lhe confere complexidade. E é isso que faz com que, na minha modesta
opinião, o seu processo inquisitorial seja um dos mais fascinantes documentos
que a história de Portugal nos legou.
Apresentação do livro A ODISSEIA DO ESPÍRITO SANTO
Ex.mo Senhor Dr. António
Breda de Carvalho, digníssimo vencedor da quinta
edição do Prémio Literário Carlos de Oliveira
Ex.mo
Senhor Dr. António Ribeiro, aqui presente para
fazer a apresentação da obra
Ilustres Convidados
Minhas Senhoras e meus senhores
Sejam bem-vindos à entrega do Prémio Literário Carlos de Oliveira ao autor de “A Odisseia do Espírito Santo”,
livro vencedor da quinta edição do concurso cujo patrono é obviamente
homenageado com esta sessão.
Se me permitem, começo por saudar o Dr. António Breda de Carvalho, assinalando
o facto de ter nascido e residir no vizinho concelho da Mealhada, o que
constitui motivo de satisfação acrescido relativamente à atribuição do
prémio.
Entretanto, agradeço-lhe desde já o seu testemunho sobre o livro e a
experiência de escritor, dando a conhecer um pouco do modo como construiu a
narrativa que o júri decidiu premiar entre as obras concorrentes.
Tendo em conta que essa narrativa se baseia em factos históricos abordados numa tese de mestrado do Dr.
António Ribeiro, o facto de a apresentação de “A Odisseia do Espírito Santo” estar a seu cargo é seguramente uma
mais valia importante no enquadramento da obra face ao estudo do contexto que
lhe deu origem.
Muito
obrigado, Dr. António Ribeiro, pela sua disponibilidade em vir aqui hoje
partilhar connosco a leitura que faz de uma ficção construída em torno de
factos que conhece em profundidade, no que será também certamente uma lição de
história sobre realidades marcantes do quotidiano das comunidades no século
XVIII.
Sobre a “A Odisseia do Espírito Santo” deixo apenas algumas breves notas, começando por destacar os fundamentos que justificaram a atribuição do Prémio Literário Carlos de Oliveira.
Faço notar que o júri invocou para o efeito “o original dispositivo narrativo que faz com que a história seja contada na primeira pessoa alternadamente por todas as personagens”, a “capacidade de efabulação” e “a riqueza da linguagem, que oscila entre a reconstituição do léxico do século XVIII e o dos nossos dias.”
É sem dúvida uma excelente síntese dos
aspetos que tornam o livro tão cativante, nomeadamente a caracterização das
personagens e os seus testemunhos num registo coloquial em que emergem os
pontos de vista sobre as situações que confluem para o cerne da narrativa.
E depois o léxico em que sobressaem
inúmeras palavras caídas em desuso e que o autor utiliza de modo
particularmente bem conseguido, algumas ainda familiares de muitos de nós,
outras nem tanto, ao ponto de justificarem a opção do autor em publicar um
glossário no final.
Em “A
Odisseia do Espírito Santo” percebemos
o quanto a língua é um sistema linguístico dinâmico que não só apropria novos
vocábulos em função da evolução das sociedades e da sua adaptação a novas
realidades, como deixa que outros se percam no tempo, à medida que os
referentes se tornam ausentes da vida das pessoas.
Percebemos também como a literatura os
pode recuperar e neste caso, a meu ver, recupera-os muito bem, no sentido em
que eles se revelam cruciais para o tipo de ambiente social que o Dr. António Breda de Carvalho reconstitui
à medida que vai evoluindo a trama do romance, sempre contada na primeira
pessoa (por cada personagem interveniente).
O autor evidencia efetivamente uma extraordinária
capacidade para recriar o contexto histórico em que se movem as personagens e para
retratar a sua mundividência e a sua linguagem característica.
Trata-se
de um universo fechado, povoado dos fantasmas próprios de um período longínquo,
mas que em alguns casos se arrastaram por muito tempo, um universo que visto à
luz dos conceitos de agora não é compreensível, mas que reflete bem a natureza
de algumas das condicionantes da vida em comunidade, o que confere ao livro uma
apreciável dimensão pedagógica.
Destas
considerações genéricas emerge a minha curiosidade sobre as motivações que
levaram o Dr. António Breda de
Carvalho a escrever este romance histórico no registo em que o fez e qual o seu
enquadramento no âmbito da sua obra.
Dr. António
Breda de Carvalho
Ilustres Convidados
Minhas Senhoras e meus senhores
Face
ao motivo que nos traz aqui hoje, esta é uma ocasião em que faz sentido
reiterar a aposta do Município de Cantanhede no Prémio Literário Carlos de
Oliveira, no âmbito de um processo de intervenção cultural em que se preconiza
a criação de condições favoráveis à intensificação do estudo e da divulgação da
vida e obra do escritor.
A autarquia continua
efetivamente empenhada no desenvolvimento de ações para motivar públicos de
vários níveis etários e diferentes expectativas académicas e culturais,
sobretudo os jovens, para a compreensão de um universo literário distintivo que
tem também um precioso valor documental pela forma como desperta para uma
realidade sociocultural característica do nosso território num contexto histórico
específico.
A Gândara que surge nos seus
livros diz respeito a uma realidade sociológica marcada por vidas sofridas, sujeitas
às maiores adversidades, uma realidade de que já só subsistem algumas
referências etnográficas, mas o indiscutível valor literário da sua obra
narrativa e poética esse mantém-se intocável para além da evolução social que
felizmente ocorreu.
Daí que a Câmara Municipal encara a promoção do legado de Carlos de
Oliveira, como um dever no quadro daquelas que são as suas competências ao
nível da dinamização cultural, processo em que, lembro, contámos sempre com o
estimulante apoio da saudosa Dr.ª Ângela Oliveira e também das suas sobrinhas,
Dr.ª Paula de Oliveira e Dr.ª Margarida Oliveira.
O nosso compromisso é o de continuarmos a honrar o legado de um autor
muito justamente aclamado como um dos mais proeminentes escritores portugueses
do século XX, potenciando o valor simbólico de uma literatura umbilicalmente
ligada ao nosso território e acentuando nele, aos mais variados níveis, as
referências aos lugares e aos contextos sociais que surgem na sua obra.
Acredito que essa é a melhor
forma de honrar a memória e o valioso legado de Carlos de Oliveira.
A terminar, felicito o Dr. António Breda de Carvalho pela
conquista do Prémio Literário Carlos de Oliveira, agradecendo a presença de
todos e manifestando o meu mais vivo reconhecimento ao Cantemus – Coro Juvenil
do Município de Cantanhede e ao maestro Augusto Mesquita a sua preciosa atuação.
Muito obrigado!
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