Pois
eu lhe digo, minha menina, que tenho muito orgulho em pertencer à raça dos
campinos, a essa classe de homens que têm o dom de saber a linguagem dos
touros. É uma tradição de família, vem dos tempos esquecidos do avô do meu avô,
segundo ele me contava nas tardes calmas de lezíria, e ainda continua no meu
filho e no meu neto. Foi sempre assim e assim será enquanto houver homem macho
na família e o destino quiser, que isto de tradição já não é como antigamente,
agora os caminhos da vida são outros, as modas são diferentes e o que é hoje já
não é amanhã.
Pois
vem aqui à tasca do Minotauro, que de tasca só conserva o nome porque agora é
um café, conversar comigo a propósito da homenagem que me querem fazer nesta
festa do Colete Vermelho. Teve sorte em me encontrar com esta fatiota toda
bonita, barrete verde, jaqueta castanha, colete encarnado, calção azul, cinta
vermelha, meia branca e sapato de bezerra. O seu azar é eu não ter menos uns
anitos em cima do lombo porque dançava-lhe aqui um fandango que até revirava os
olhos e não sabia de que terra é. Ri-se?...
Pois
quer então uma entrevista para o jornal Lezíria do Tejo e eu começo por
lhe dizer que disse cem vezes não a esta homenagem, já no ano passado teimaram comigo
e eu fui mais teimoso do que eles. Este ano apanharam-me num momento de distração
quando eu disse sim a outro copo e eles tomaram isso como um sim à homenagem, e
depois como eram muitos contra a palavra de um velho culpei o resultado
democrático dos copos e da companhia, e já não volto com a palavra atrás porque
nunca fui de voltar as costas a um touro. Sabe, é que tinha prometido a mim
próprio nunca mais querer saber de touradas nem entrar numa praça de touros
desde aquela tarde, aquela tarde em que este aqui, este que está à sua frente,
disse nunca mais e assim foi. E assim será hoje porque na cerimónia cá fora
ainda me apanham, mas lá dentro nem guiado por vacas.
Pois
está morta de curiosidade? Que pressa tem esta gente nova, quer chegar ao fim
sem conhecer o princípio, até parece que cheguei a velho sem ter sido novo. Se
tiver paciência fique aí sentadinha a ouvir e a escrever, de perna traçada por
debaixo da mesa, fica-lhe muito bem essa saia, parabéns, e vai ver que leva
daqui um monte de escrita que lhe dá para uma página inteira de jornal.
Pois
como já disse, sou descendente de campinos, passei a vida na lezíria desde a
meninice. Lembro-me do meu avô viver numa cabana junto aos touros à sua guarda,
onde passava toda a semana, saindo só uma vez para ir à aldeia comprar a ração
necessária ao sustento. Ao pé de salgueiros e choupos, não fosse o diabo
deixar-me desprotegido a meio do descampado, comecei a medir forças com os
touros atirando-lhes pedradas quando eles se tresmalhavam, isto quando os campinos
andavam ocupados com outros afazeres. Cresci no meio do sossego e dos touros,
longe da civilização, o que me fez de poucas falas e de poucos amigos, agora
falo pelos cotovelos, não resisto ao seu encanto, menina, por isso aprendi mais
a linguagem dos animais do que a dos homens, e olhe que não estou arrependido
porque a linguagem deles nunca me enganou. Aprendi também a conhecê-los pelos
nomes, sabia qual o sangue que lhes corria nas veias, conhecia-os como à palma
da minha mão, os que tinham nobreza e bravura, e os que nada valiam como muitos
homens que andam por aí. Mas a vida, dos touros, entenda-se, é engraçada: os
bravos são sacrificados na arena e os mansos levam com a canga em cima, nas
terras de cultivo, o que quer dizer que para o touro só há dois destinos
possíveis, morte ou escravatura. Mas deixemo-nos de filosofia porque afinal
trabalho na vida já eu tive e agora só me resta esperar pela morte.
Está
quase a dormir, menina? Quer que lhe dance um verde-gaio? Ah, dormiu mal a
noite! Compreendo perfeitamente, escusa de explicar.
Pois
vou contar-lhe o primeiro susto que eu apanhei nesses tempos em que andava
crescendo em liberdade pela lezíria. Foi de tal ordem que mal dormi a noite.
Uma tarde, um touro com a mania de que havia de treinar as marradas no meu
corpo apanhou-me desprevenido. Quando dei por mim tinha-o à minha frente, a uns
vinte metros, a preparar a investida. Olhei em redor e nem ponta a que eu me
agarrasse. Ponta havia mas essa era apenas a dos cornos do touro e nela não
estava interessado. Tinha eu por essa altura já uns dezassete anos bem altos e
elegantes, feitos de uma leveza e agilidade que me tornavam capaz de fazer
acrobacias de circo. Quando ele se atirou contra mim vi o seu corpo
agigantando-se e pensei: adeus vida. Mas de repente, não sei que ideia me subiu
à cabeça, desatei a correr ao seu encontro e quando quase chocávamos saltei em
voo sobre ele… Ele fez um meneio de cornadura rente à minha barriga e aterrei
do outro lado deixando-o assarapantado. Ah pernas para que te quero! As minhas,
é claro. Acho que nesse dia nasceu um futuro forcado.
Acha
graça, menina? Acha que poderia ter nascido um artista de circo? Pois ainda vai
a tempo, é nova, tem um longo futuro à sua frente.
Mas
voltando à vaca fria, que neste caso é um touro. Eu só quero que perceba que
não é só nascer ribatejano e ter o bichinho dos bichos entranhado no sangue. É
preciso ter fibra superior à dos touros bravos para dizermos à gentalha a
grandeza do nosso nome. Dormi mal nessa noite, mas no dia seguinte, pela
madrugada, dei por mim a tratar os touros por tu.
Ora
vamos lá molhar o bico que esta conversa precisa de rega. Está a olhar para o
relógio? Só tem mais vinte minutos para mim? Ninguém lhe pediu para vir ter com
um velho, com esta idade demora mais um bocado. Mas prontos, vou tentar
apressar a coisa. Foi então uma outra vez, e é aqui que começa a história que
lhe quero contar, não a história que quer ouvir. Um danado de um touro feito
com 400 quilos, três aninhos de musculatura e toda a nobre perfeição dos cornos
às patas para ser enxovalhado em praça pública. Chamava-se Diabo, é verdade, tinha um risco vermelho nos olhos, um em cada
olho, e quando estava de mau humor, que era sempre, pareciam duas faíscas no
meio de duas nuvens brancas.
Pois
esse sacana também um dia… Mas por esse tempo era já eu um moço a roçar os
trinta, forcado da cara batido de fama por essas praças do Ribatejo e da raia
espanhola pelas pegas corajosas e seguras que eu impunha aos touros, e pelo
divertimento de fazer saltos mortais sobre as cornaduras deles. Eu tinha a
alcunha de Garrote Voador.
Não
percebe? Então faço-lhe um desenho. Garrote porque das minhas mãos nenhum touro
fugia e Voador porque voava sobre eles como um golfinho do ar.
Estava
eu a dizer que esse sacana do Diabo
um dia também me apanhou desprevenido junto ao rio. Atrás de mim a água, mas
ainda a uns bons cem metros. À minha frente, já sem espaço de manobra, o diabo
em forma de touro a ganhar velocidade sobre mim. Senti-me apavorado e não era
caso para menos. Este era um touro especial. Ele destacava-se na ganadaria pela
sua força viva e pelos muitos trabalhos que dava aos campinos. A sua vocação
era galgar a cerca como um cavalo de equitação galga obstáculos. O patrão,
quando tomou conhecimento do bicho que lhe saíra na rifa, esfregou as mãos de
contente e exclamou que este animal lhe ia dar festa brava.
Pois
ele vinha então direitinho a mim. Com cabeça fria olhei em volta à procura de
uma estratégia para me salvar. Sabe, para vencermos a força bruta do touro
temos de ter velocidade de pensamento. Tinha um salgueiro à minha ilharga e
postei-me a seu lado. Tirei a jaqueta e incitei o touro com ela mantendo-a à
frente do tronco da árvore. Fiz-lhe um capeamento de mestre. Imagina o que lhe
aconteceu? Claro que não imagina. O Diabo
embateu com a cornadura no salgueiro e estatelou-se no chão meio zonzo.
Fica-lhe
muito bem esse riso, menina.
Foi
um milagre! Minto. Dois milagres. Eu explico. Milagre ter escapado vivinho, e
milagre porque o touro passou a ser meu amigo. Parece mentira mas é verdade. Se
ele estivesse vivo podia perguntar-lhe, assim tem de acreditar em mim. O que é engraçado é
que o bicho não amansou, não perdeu a fibra rija. Na manada era rei absoluto,
não havia rival que se atrevesse a disputar-lhe os prazeres. Com os campinos
era uma força da natureza, um vulcão, um trovão, uma tempestade em terra, tudo querendo
dizimar. Comigo era um pobre coitado, um lambe-botas, só me faltava cavalgá-lo
como um toureiro. Nada como uma boa tareia para fazer um amigo, já dizia o meu
avô.
Bom,
sei que está com pressa, cansada de ouvir este velhote, o que lhe interessa é
colher uns dados da minha vida: nome, nascimento, idade, troféus, praças
percorridas, e alinhavar meia dúzia de linhas à volta da minha foto toda
janota. Uma escrita sem alma, menina, como se de um defunto estivesse a falar.
Mas vamos adiante que se faz tarde e você quer sair cedo. Pois fomos grandes
amigos, eu e o Diabo, lá isso fomos, e
isto durou ainda um anito, até ao dia em que fatalmente o destino nos separou: ele
para cumprir a sua condição de touro de lide, eu como campino e forcado amador
de Vila Franca. Só nos faltou dar um abraço de despedida.
Ah,
pois quer saber quando foi a minha última pega, só dispõe de cinco minutos. Ou
então está a achar a minha história piegas, ou então não acredita nela. É engraçado,
era mesmo aí que eu ia pegar, não no rabo do touro, mas na minha última pega de
forcado da cara, porque é aí que toda esta história vai desembocar como o Tejo
no mar. Pois foi em Salvaterra, essa terra destinada à desgraça desde o tempo
do nosso saudoso Marquês de Pombal, que tudo aconteceu, pouco tempo depois da
partida do Diabo. Na praça, o touro
tinha dado trabalhos até à barba do cavaleiro, o famoso Ruben Puentes. É
natural que nunca tenha ouvido falar dele, e poucos são os que ainda o têm na
memória.
Zinco,
assim se chamava o touro, parecia que cortava o ar como uma lâmina com a sua
corrida veloz e repentina. E manhoso. O cavalo saiu da arena a coxear depois de
ter levado uma cornada de flanco. Nem a correria nem os ferros cravados naquele
pelo luzidio o haviam cansado. O pior estava para vir, e eu já tremia de alto a
baixo, pressentindo que a minha primeira derrota taurina estava ali à minha
frente. O mar de gente que enchia a praça amansou de expectativa quando eu e os
membros do grupo ficámos prontos para fazer a pega.
De
repente ficou um rio de silêncio interrompido apenas pelo rugido ameaçador do Zinco, de olhos cravados em mim, eu que
era o cabecilha do grupo. Ao segundo rugido espumoso ouviu-se, vindo do
corredor onde o último animal aguardava a sua vez de entrar em arena, num
recinto feito de madeira à altura de um homem, uma resposta de touro ainda mais
assustadora. Esse touro mostrava-se irrequieto, forçando a barricada, exigindo
para si o centro da arena. O mundo parecia ter parado, só os forcados e os
touros davam sinal de vida. Por fim, olhei o touro nos olhos, enchi-me de
coragem e avancei uns passos desafiando-o a vir ao meu encontro: Eh touro! Eh
touro!
E
então, já muito avançado no terreno, longe demais do segundo forcado, o Zinco esgravatou duas vezes o chão
poeirento, fandangou o rabo e arrancou veloz para mim. Parecia uma seta a
rasgar o ar e, quando inevitavelmente nos tocámos, enganou-me com tamanha
cabeçada que logo fui projetado como um menino. Nesse momento, a multidão
despertou com um alarido ensurdecedor, não sei se de medo se de entusiasmo, e
enquanto eu rolava no ar apercebi-me da fuga rápida dos meus companheiros. Caí
no chão e dali não consegui mover-me, tolhido de medo e dores. Olhei e reparei
que o Zinco, à falta de novo alvo, se
preparava nesse momento para voltar à carga e dar-me a estocada final. Vi a
morte à frente dos meus olhos e confesso que naquele instante já me sentia um
morto a assistir com resignação à minha própria morte.
E
foi então que um novo e estrondoso rugido se soltou no ar, ao mesmo tempo que
um touro ágil e musculado voava sobre a cerca que o separava da arena e nesta
aterrou com toda a fúria da lezíria. Lembro-me de ter pensado na minha triste
sorte, que um só touro bastava para me levar desta vida. Mas, espanto dos
espantos, o touro invasor correu em direção ao outro, que já próximo de mim
estava, e enrolaram-se numa luta sangrenta nunca antes presenciada. A multidão
delirava. E eu, aproveitando o espaço aberto pela luta, afastei-me a custo dali
salvando assim a minha vidinha.
Pois
o espetáculo era outro. Os animais lutavam de igual para igual, retribuindo
marrada com marrada e ferida com ferida. Foi doloroso assistir ao que se
desenrolava naquela arena. Por fim, ambos sucumbiram de morte.
Pois
voltei à arena, queria ver de perto o animal que me tinha salvado, fazer-lhe
uma festa de agradecimento, que era o mínimo que eu podia fazer. Debrucei-me
sobre ele, comovido, e pude ver nos seus olhos ainda semi-abertos um risco
vermelho.
2010
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