Quando a notícia se
espalhou rápida como o vento pela vila, coisa banal numa terra pequena e dada a
mexericos, faltavam seis minutos para Germano fechar a loja e ir almoçar as
pataniscas de bacalhau, bem regadas com um jarro de vinho da pipa, que todas as
quintas-feiras o Zé do Pipo guardava para ele, assim como a mesa no canto da
tasca, o melhor sítio para ver e ouvir as notícias da TV. Mal ele soube o nome
da falecida, não esperou nem mais um minuto. Isto foi dito por quem conversava
na rua com um amigo e que, por acaso, é sempre por acaso que estes rumores se
espalham, olhava para a loja naquela altura. Era óbvio que o Canga (já veremos
o motivo desta alcunha), apesar de envelhecido, se apressara a fechar a agência
porque já ganhara o dia. Vivia da morte, era o seu ganha-pão. Esse mirone só
estranhara, diga-se a verdade, uma expressão pouco habitual no seu rosto, algo
de estranho como se aquela morte anunciada lhe pertencesse também. Há gente
assim, gente prodigiosa que consegue ler textos onde não há palavras escritas.
Quem isto dizia, com tal
intuição, poderia ter chegado mais longe na interpretação destes pequenos
sinais, destes textos sem palavras, se tivesse conhecido Germano há perto de
cinquenta anos, quando este chegou à povoação para montar o seu negócio de
cangalheiro. Não o conhecera nesse tempo, e disso não tinha culpa, pois nem
sequer era ainda pensado, mas era capaz de contar com mestria as estórias que o
Canga construiu a partir de si próprio. Vem isto a propósito porque, ao
comentar o que observara nas feições do dono da agência funerária quando se
apressou a fechar a porta, também este anónimo observador aproveitou a
oportunidade para desenferrujar alguns episódios dos do Canga, quando este os
narrava no café, muitas vezes na tasca entre dois copos e umas iscas de fígado
com cebolada. E Germano jurava sempre a pés juntos, por alma dos fregueses, não
os da tasca mas os dele, que as estórias eram todas tiradas da realidade, tão
reais como os caixões que fabricava.
De onde ele viera, nunca
ninguém conseguira tirar estes nabos da púcara, nem por copos a mais. Germano
respondia apenas que nascera entre quatro tábuas, que aprendera mais tarde esta
arte com um grande mestre e que a esta vila viera lançar a sorte. Dada a
simpatia e o humor permanentes que irradiavam da sua conservação, os copos que
teve de pagar para consolidar essas qualidades, e ainda em particular o toque
especial que dava aos caixões por si construídos, Germano depressa cativou a
vila. Deste modo, a sua loja nunca estava vazia: ora era procurada por clientes,
nas horas tristes de quem vê os entes queridos partir, ora era visitada por
amigos que procuravam alegrar a vida com as suas estórias a cheirar a mortos.
Germano prime o
interruptor da luz eléctrica, sinal de que vive numa época de modernidade, não
de candeias, que estas estão enferrujadas na prateleira dos velhos tempos que
já lá vão e que ninguém quer de volta.
Na verdade, longe vai o
tempo em que ali entrava quase às escuras, sem tropeçar em qualquer objecto,
com a chama da candeia a torcer-se de medo. Era jovem, os olhos cinzentos, de
gato, ajudavam-no nessas ocasiões. Conhecia nesse tempo os cantos ao armazém, o
sítio exacto das coisas que pareciam estar perdidas no meio de tanta tralha, e
o espaço onde os caixões aguardavam a ordem de saída. Hoje essa boa vista é
apenas uma recordação e uma saudade. Ficou a memória e dá graças a Deus por não
sofrer de Alzheimer. Ainda se recorda de tantas urnas que nasceram das suas
mãos. Muitas levaram gravadas na madeira parte da sua vida e casos secretos que
só ele conhecia. Coisa estranha: quem havia de dizer que a vida de um humilde
cangalheiro é um caixão de surpresas?
Olha o espaço quase
vazio, apenas dois esquifes jazem inertes à espera das vidas mortas que lhes pertencem;
mas a sua memória vê aquele espaço cheio de urnas, bem nítidas no tempo que
rememora, tal como algumas mulheres que nelas couberam.
Germano continua
estático, a mão presa ainda ao interruptor, chegando a um passado onde se acha
a loja deserta por largo tempo, aberta ao bulício da vila. Alguém, à entrada da
agência, o chama sem obter resposta. A porta de acesso ao armazém está aberta e
por ali segue o cliente, ou talvez um simples amigo, na esperança de o
encontrar entretido no seu ofício. Não voltará a assustar-se, pensa Germano. O
cliente caminha pelo armazém. Nada... Ao fundo da oficina vislumbra um esquife
aberto. Aproxima-se, empurrado pela curiosidade, e lança repentinamente um
grito do seu tamanho. Germano dormia a sesta deitado no caixão. Uma sesta
destas revigora inteiramente o mais moribundo dos humanos.
Mas os episódios famosos
não cabem todos numa mão cheia.
Foi no tempo em que um
homem começa a cismar com a ideia de uma companheira a seu lado para adoçar
mais a vida. É que, caramba, um homem não é de pau e esta vida acaba sempre
dentro de quatro tábuas. Mas a sorte não queria nada com ele, apesar de se
achar bem-parecido. Germano sabia muito bem que o problema era a sua profissão.
A Aninhas, meio quilo de gente, que sim se fosse carpinteiro; a Maria, coxa, que
dava azar casamento com cangalheiro; a Rosa, ai não me toques, que não queria
passar a vida a cheirar a mortos; e a Armanda, essa sim, um pedaço de mulher,
que nem morta o queria. Por causa disto, as pessoas mais chegadas à sua confiança
iam gozando...
«Então as cachopas,
Germano? Quando lhes pões a canga em cima?»
Ele prometia em tom de
ameaça:
«Cá calharão todas, nem
que seja de cangalhas!»
E com esta brincadeira
ganhou a alcunha de Canga.
O padre da vila, homem
não muito idoso e com pouco humor, num dia em que se achou inspirado, quis dar
um ar da sua graça:
«Então Germano, quando te
decides a juntar os trapos com alguém digno de ti?»
«Ora, ora, senhor
Prior... Enquanto eu souber juntar quatro tábuas, não quero outra coisa.»
«Ah homem dum raio! Ainda
te hei-de fazer o funeral e tu solteiro!»
Germano respondeu, de
caixão à cova:
«Pois esta urna que tenho
em mãos há-de servir perfeitamente a Vossa Senhoria.»
E serviu mesmo.
É mergulhado nestes
pensamentos que Germano se aproxima agora de um caixão, ao fundo do armazém.
Olha para ele e não vê o pó que o cobre; as mãos da memória contam as urnas construídas
ao longo da sua existência. É certo que passara a vida a fabricar o agasalho
dos mortos e que, graças a este negócio, fez fortuna. Mas também granjeou fama
de negociante interesseiro por mostrar um raciocínio frio e aparentemente
insensível nas horas do luto. Quando pressentia que a última hora de algum
habitante da vila estava próxima, tratava logo de calcular as medidas do futuro
defunto. À hora da morte, a urna estava pronta para seguir viagem. Onde as
pessoas viam frieza e calculismo, ele via diligência e profissionalismo. O
padre, certa vez, ainda o aconselhou a disfarçar este pragmatismo, mas Germano
respondeu que a sua felicidade era servir bem os mortos. O padre encolheu os
ombros e desabafou, já a caminho da rua, que era por esta e por outras que
nenhuma cachopa o queria.
Apesar de tudo, mesmo sem
casamento, a sua vida teve alguma magia. E para isso bastavam quatro simples
tábuas que só ele sabia manejar, às quais dava forma de etérea cama almofadada.
Muitas vezes lhe serviram de suporte a momentos felizes, momentos inesquecíveis,
pessoais e intransmissíveis. Estórias nunca contadas e que iriam morrer com
ele. De olhos fechados, esquecida do leito mortal, qualquer mulher acreditaria
estar a desfrutar de um dossel nupcial. Esta era a arte cujo autor era
repudiado pelas mulheres mas sem terem coragem para deixar de recorrer aos seus
serviços.
A notícia, certa tarde,
espalhou-se pela vila mais depressa do que os lamentos do sino da igreja, mais
rápida do que o vento. Falecera a Maria, coitada, ainda tão jovem, vitimada por
doença súbita. O viúvo, de lágrimas nos olhos, chegou à agência do Canga e foi
recebido com um abraço de sentida dor.
«É a vida, amigo!»,
consolou Germano.
«Na flor da idade.»
Soltou um soluço. Ganhou ânimo e continuou: «Venho encomendar o que tu sabes.
Está pronto, não está?»
«Ainda não, amigo! A
morte dos entes dos meus amigos também me diz respeito. Não tive coragem
ainda...»
Penetraram no armazém.
José indicou uma urna:
«Esta parece-me bem.»
«Essa não lhe serve.»
«De certeza?»
«Claro!»
«E esta?»
«Essa está vendida.»
Continuaram a percorrer a
fila onde se amontoavam as urnas. Germano parou e apontou uma de madeira exótica.
Abriu-a, mostrou o interior ricamente almofadado, onde pontilhavam estrelas e
minúsculos anjos.
«Levas esta.»
«Esta?», estranhou José.
«Tão cara?»
«És meu amigo, faço-te um
preço normal.» Ajeitou uma estrela, ligeiramente deslocada. «Além disso, a Maria
merece. Ficará contente, garanto!»
«Se insistes...»
Germano, na sua
recordação, vê-se a fechar o caixão e a despedir-se do amigo. José acaba de
sair da agência. O rosto da jovem Maria não pára de lhe sorrir, ali mesmo à sua
frente. Estende a mão, como quem oferece uma carícia. Quase a tocar-lhe, a
imagem de Maria apaga-se.
Outras mortes especiais
lhe ocorrem à memória, mortes que foram acontecendo nos muitos anos da sua
profissão. Mas a morte de hoje, a de Rosa, a que não queria passar a vida a
cheirar a mortos, faz-lhe evocar outros nomes de mulheres que o rejeitaram
publicamente. A Aninhas e a Armanda, coitadas, também não tiveram muita sorte
nesta vida. Tanto quiseram fugir à morte que acabaram por encontrá-la quando
menos esperavam. Também no armazém ele recebera os maridos desgostosos e os
consolara com palavras amigas. Também a estes amigos indicara o melhor caixão
da sua fábrica ao melhor preço.
«Ela merece. Ficará
contente, garanto!»
Germano, deambulando pelo
armazém, chega agora à larga porta que dá saída para as traseiras, para um beco
abrigado dos olhares curiosos. Abre a porta. A tarde cai envolta em nuvens
escuras. O vento, diluindo os sinais fúnebres que se espalham sobre a vila,
anuncia chuva. Fica encostado ao portal, a pensar. Dentro de si, a porta do
armazém abre-se e fecha-se furtivamente, de tempos a tempos. São momentos
breves mas inesquecíveis. Na penumbra do armazém, sobre quatro tábuas almofadadas,
a fragrância da vida abafa o cheiro da morte. É o instante em que a vida anula
o espectro da morte. Depois tudo volta à serenidade dos vivos. E à paz dos
mortos. O portão abre-se novamente. Germano espreita, antes de o fechar. Já na
dobra do beco, vê um vulto feminino, fugidio...
Fecha a porta. Sente que
fechou outras portas dentro de si. Menos pensativo, reconhece agora, dentro do
armazém, que lhe restam apenas duas urnas. Uma é para a Rosa. Tal como ele,
tivera a sorte de chegar longe na idade. E solteira, como ele. Em breve, algum
familiar virá pedir um caixão.
Restará o outro. É o
último feito pelas suas mãos. Não será vendido a ninguém.
Germano prime o
interruptor da luz.
Publicado na revista Sol XXI, 1997
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