NO BUÇACO


                                                                               Convento de Santa Cruz (Buçaco - séc. XIX)


Vim ao Buçaco reavivar as minhas impressões doutros tempos, quando, sozinho e devorado por teorias romanescas, eu percorria estas alamedas, fincando o meu bordão de forasteiro na terra mole das últimas chuvadas de novembro.
(…)
Naquele Natal chuviscoso de 85, eu tinha vindo ao Buçaco, para casa do Gayo (que assim ficou chamada, desde que o terníssimo romancista do “Mário” viveu lá), sequestrar do convívio efémero dos amigos as grandes tristezas do meu coração ferido por inconfessáveis e recônditas amarguras. Para um camponês da minha índole, aquela véspera de Natal, desterrada de banquete de família, depois da missa do galo, na minha aldeia do Alentejo, ainda mais reverdecia a melindrosa doença moral que me desmantelava e confrangia; e eu via a noite cair das árvores, toucar de crepe os cocurutos do Calvário e Santo Antão, com o pavor dum sonâmbulo que sente os gatos-pingados pregarem-lhe por cima da cabeça a última aduela da tumba, e quer gritar e não consegue, e querendo mexer um braço sente o braço paralisado.
Nenhum aficionado da mata, naquele mês desabrigado, ousaria vir ali divagar pelas tebaidas derruídas, nem o próprio Silvestre Bernardo de Lima, que é na hierarquia dos fanáticos do Buçaco o deão daquela catedral soberba de verdura.
(…)
Padre Maurício, octogenário calado, que é há trinta anos prior do conventinho, mandou tocar à missa do galo, apenas meia-noite foi dada no lúgubre sino da Cartuxa.
A floresta naquele tempo quase que não tinha polícia.
Meia dúzia de soldados guardavam as portas durante o dia.
Três ou quatro couteiros passavam a vida nas alamedas, deitados ao sol pelas clareiras, sem a intendência inteligente dum chefe, no outono, trincando as avelãs que caíam das árvores, no inverno fazendo magustos de castanhas dentro das tocas das grandes carvalheiras. E à meia-noite eu saí de casa sem lanterna, embrulhado num varino, e com o meu bordão de romeiro na mão direita, de cujo pulso pendia o saquitel do livro de Horas. No mirante tomado da portaria, defronte no chalé onde agora fica o hotel, a vista descortina toda a Bairrada, num soberbíssimo Ieque de montanhas e campinas, e as dunas brancas da Figueira e Costa Nova; e sobre o pano desdobrado desse leque, aguarelas em pálido, num fundo anil mui caprichoso, trinta ou quarenta povoações esmaltam a monotonia da paisagem, formada na emurchecida luz das tardes hibernais.
O Buçaco é para assim dizer o botão terminal para cujo eixo convergem as varetas todas dessa maravilhosa ventarola a aguarela, e o foco acústico de quantos rumores se esgarcem por qualquer ponto daquela enseada formosíssima de vinhedos e couvais.
Meia-noite dada, os apelos de quarenta campanários de paróquias rústicas, chegaram, chamando à missa, ao mirantezinho quadrado da portaria, e por todas as quebradas do vale, luzes errantes, vagas como pirilampos, começaram a mover-se, em diversíssimos sentidos, deixando os casais caminho dos presbitérios, sob a neve diáfana de dezembro, como uma emigração de almas em busca da celeste bem-aventurança.
Com o meu bordão eu apontava e conferia o repique festival daqueles sinos, desde os lugarejos bisonhos de Botão e do Paço, até às paredes brancas de Grada, Anadia, Vila Nova e Vacariça: e em espírito recompunha as cenas emotivas dessa hora sagrada no catálogo das alegrias de família, em cada um daqueles casalitos enterrados na fuligem da noite, por cujas janelas brilhava aos mendigos das estradas o olho benéfico do candeeiro de três bicos, aceso ao centro da mesa ornamentada para a ceia do Natal.

Fialho de Almeida, In “Pasquinadas”, Jornal dum Vagabundo, Porto, 3 ed., s/d.

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