O texto aqui reproduzido é uma condensação do que foi lido expressivamente por João de Oliveira.
Da esquerda para a direita:
apresentador, diretor do Agrupamento de Escolas da Mealhada, eu, professora bibliotecária
Mas quem é este
autor? Já o conhecem.
Foi ele, António
Breda Carvalho, que me deu a honra de criar estas vagas textuais de
apresentação do seu romance, que não é o primeiro em sua lavra.
É costume, nas suas
obras, dar a cara, a um certo nível revelar-se, de uma certa forma expor visões
de mundos, ideias, até de conceção literária. Das obras que já li do autor, de
pequenos a mais espraiados textos, ABC sempre mostrou propensão para as viagens
no tempo, interrogações diversas ou de figuras individuais ou de formas
colectivas, poisados em lugares sociais, políticos, regionais, intelectuais,
religiosos, familiares e outros, enfim, de um Portugal cheio e particular.
Eis mais uma
contenda, de pesquisa histórica, de investigação minuciosa, de pessoas, lugares,
nomes, datas, transportes, casas, mares e naufrágios, barcos e terras, flores e
cheiros, jornais e notícias, luzes e escuridão, cheias e mortes, sons e imagens
da ilha e da não ilha.
A sua imaginação
ficcional não teve parança, e complementou, desanuviando, a necessária apologia
da verdade histórica, que por vezes condiciona e constrange os autores.
Na ausência de
censura própria, na libertina entrega aos afazeres de escrita doméstica, na
escrita de O Fotógrafo da Madeira, o
autor é volante num vai e vem de vagas insulares entre factos e devaneios.
Estamos na história e vivemos um romance, contado com afetos e reflexões por um
narrador, onde personagens se apresentam com toda a dimensão humana, própria do
século das transformações, o século XIX. Há sensualidade, há sabores, há
sentidos, uns mais consentidos do que outros, tudo em evocação descritiva,
senão a pormenor, quase à míngua.
“O Fotógrafo”
apareceu, assim, na mesa-de-cabeceira, de forma clássica. Letra miúda, em maço
de folhas, um volume e tanto, espesso. Já premiado. Caminhou nas primeiras
lidas pelas vagas do Realismo. Em algum levantamento de mar o vapor da minha
leitura era salpicado por um romantismo salgado. Por ali entrei de golfes. Naveguei
submerso num faz de conta, num passado que se tornou presente, numa realidade
ficcionada, onde mínimos abusos históricos serviram como sinais de recobro de
atenção, - olha que isto é um romance…!
- e aí me tornei atlântico, também habitante de uma ilha, durante vários dias.
É um romance de
personagem, está claro. Da importância que tem o que pensa, e faz, ou do que
leva a que pensem e façam, para além do nada que possa acontecer. Somos, todos
nós, responsáveis pelo que se passa à nossa volta. Pelo que fazemos, pelo que
não fazemos, e pelo que deixamos que se faça ou não.
Que história, ou
histórias, se propõe contar?
De uma personagem,
Afonso Elias Ayres Drumond, foco do narrador, das suas experiências objetivas e
subjetivas, à volta de necessidades, carências, falhas e suas consequências; histórias
de uma cidade, Funchal; de uma ilha, Madeira; de uma época, a metade do século
XIX e suas circunstâncias.
Já estive na
Madeira, em breve passagem de trabalho, mas aquela que me foi dada viver nesta
ficção está plantada, claramente, e até por vezes explicada, à laia de um
contabilista, em sapatas históricas, seguras, e levemente cinemáticas. A
contextualização social permite fazer viajar o protagonista para o exterior e
reconhecer aí as verdades necessárias e suficientes para um relacionamento do
seu ser com os outros, ora no espaço, meio social, ora no tempo, época em que
vive.
É aqui, na relação
entre o indivíduo e a sociedade que surge a aflição dramática.
Alguém
regressa à ilha da Madeira vinte anos depois, e querendo conhecê-la e
transformá-la, vê-se a braços com o jogo das impotências. Será que o consegue?
Ao tentar, ele faz
parte de atmosferas, emotivas umas, psicológicas, frias e mecânicas, outras,
sociológicas. Torna-se eternamente responsável por tudo o que cativa a partir
daí.
Há também um certo
nível mítico abordado neste catálogo de imagens. Capaz de mudar o individuo,
mas mais pérfido por se instalar nos inconscientes coletivos. Aqui damos conta
das revelações mutáveis à volta do destino humano, ou melhor, da jornada do ser
humano. O ser humano, tal como o protagonista, passa pelo mundo, em corredores
que se abrem, possíveis, mas manipuladores. O lado oculto quando se revela tem
tendência para se tornar mais desfavorável à condição humana, e serve sempre de
ligação entre personagens, do indivíduo à sociedade e desta ao nível geral da
existência humana. Assim é neste romance.
Um romance
tradicional, de drama social. De relações humanas, físicas e de mentalidades.
Não é uma história
passiva, é implicativa, é acima de tudo reflexiva ao ponto de ter laivos de
actualidade.
Com algum tempo de
exposição, como se de um trabalho fotográfico de revelação se tratasse, entramos
no enredo.
Ao narrador-guia
damos as mãos, e pelas insinuações das personagens, pelas referências soltas de
lugares, de ambientes sépia desenhando a ilha, o Funchal, as gentes, as colinas
sociais, as ruas íntimas, a ética e a moral, a falta de ambas, amores e usos, e
uma fortaleza a guardar o mar revolto, chegamos à ilha e aos ilhéus.
Na obra está assim
inscrito um convite a uma estadia, não tanto para fins terapêuticos mas para um
turismo de habitação, socialização, e descobrimento…
Visitamos várias
crises conflituantes, da britanização da ilha, da exploração de seus recursos,
nomeadamente do vinho, do abuso da massa operária, da gente simples, da
religiosidade e da política, de seus poderes sempre despudorados, da pobreza de
um povo e da sua emigração, de confronto de mentalidades, de uma cidade que é
campo e tarda em ser cidade, de um mar sem porto de abrigo para receber
dignamente um mundo que sabe que uma ilha flutua enquanto vive na ordem e no
progresso. Fora disso ela afunda-se em conflitos internos, próprios de cada
personagem, sépias ilustradas daquele e deste tempo.
Por outro lado,
para além da condição de visitante, também experimentamos a arte da fotografia,
e somos vagamente retratistas. Também tiramos retratos, a pessoas, a lugares e
a um tempo. Com um aspecto macio e rico, com linhas indefinidas, com detalhes
apagados e enevoados, a ficarem pendurados na curiosidade do leitor, os
calótipos da ilha lembravam os desenhos artísticos do protagonista, à espera de
serem vislumbrados de perto.
E quanto à
estrutura, perguntais vós?
Aqui falaremos de
enredo. Sequência temporal de eventos e de interacções entre personagens.
A estrutura
narrativa coloca-nos perante a ideia da jornada do herói.
A ligação do
protagonista ao ambiente geral, da ilha, permite uma situação dramática
dinâmica, em primeiros momentos vagarosa para depois, de forma mais eficaz,
abrir-se a alternativas mais cadenciadas de revelação dos acontecimentos. Mas
estamos na época do vapor, das carroças a cavalo, das corsas, na ilha, puxadas
a bois. O andamento da narrativa é compatível com esta existência social e
evolutiva do mundo.
O romance tem
implícita uma construção estruturada de guia turístico, indelével, mas ativa,
com um cicerone, o narrador, cheio de memória, de omnisciência, e com uma
vontade enorme de contar o que sabe. Abre caminho à cumplicidade com o seu
autor, para uma fluência narrativa prolixa, de palavras muitas, próprio de
António Breda Carvalho, quem o conhece de outros textos que o compre, narrativa
onde não lhe faltam vocábulos precisos, frases pujantes, indícios de
acontecimentos, reflexões de salvados…
O Romance, onde a
narrativa pauteia o perfil das personagens, o cenário dos lugares, o relógio do
tempo, e a acção comedida dos momentos, está nas mãos do poder de quem conta. E
ABC sabe contar.
E se a importância
deve estar no como as coisas
acontecem, para pensarmos nos porquês e nos para quês, é pelo narrador que,
dominando a sapiência, acompanhamos o desenrolar dos acontecimentos e é pela
sua bitola que somos esclarecidos. Ele é o autor do postal ilustrado dos
entrechos «bordados a ouropel», palavras do autor.
A velocidade do
contar, pois é um romance claramente narrativo, dá-nos o tempo para a leitura.
E se falássemos dos
diálogos, como são?
A ilha é uma
redoma, criadora de virtudes mas também viciadora de desvios. As personagens
assumem pelos diálogos o que é ou deixa de ser. Os diálogos são esclarecedores,
e ativos, não fortuitos e menos ainda fúteis. Precisam-se.
Algo maquiavélica,
a ilha revela-se, aos atropelos, de um não olhes para o que eu digo e sim para
o que eu faço, porque somos seres moldáveis, no raciocínio, e pelos aromas
tentadores dos sentidos.
As personagens são
o que fazem mais do que o que dizem. Torna-se portanto também, um romance de
acção. Melhor, de acções. De causas e consequências, mais desta última do que
da primeira, pois são por vezes as palavras mais causadoras de acções futuras
do que as próprias ações.
E já agora, sobre
a arte e a técnica, o que dizer?
Que princípios e
regras estão aqui a defender a marca de água artística de ABC?
Provavelmente o
que gosta, o que lhe toca, o que aprecia, aprova como leitor, trans-sua para o seu texto como criador.
A qualidade literária bebe-se na leitura de uma obra de forma sôfrega, ou de
outra maneira, aos goles, pausados, sem soluços.
Entramos nesta
diegese, por vezes em frases longas de tirar a respiração. Outras vezes,
fazemos parte dela no mais simples narrar dos acontecimentos. Momentos houve em
que me deitei com as palavras nos diálogos e apartes textuais, a fecharem-me os
olhos da reflexão. Não foi fácil, admito, e desconcertante foi, porque exigente
de atenção. Há parágrafos e parágrafos…
A narrativa, pausada,
desbasta lentamente o tempo, o espaço, e a própria acção da história. Num tempo
de gestação, nove meses, acompanhamos o feto madeirense das intrigas até ao
parto final.
O autor consegue,
e mérito lhe seja outorgado, mostrar para além de dizer, que à força do
exercício das pulsões culturais, políticas, religiosas e individuais, do século
XIX, o Funchal, enfim, a ilha, determinam, o que são, apesar de poderem ou
deverem ser outra coisa, mais que não seja na opinião liberal da personagem de Afonso
Drumond.
A ilha é um estado
dentro de outro estado, do estado anímico e pensador dos seus habitantes.
Temos uma leitura
demorada, numa cadência rítmica de quem tem tempo para esperar, mas corrida, em
fio de água, para recebermos a revelação, em nove meses, de um retrato de uma
sociedade, à luz de olhos abertos, talvez demasiado abertos, pois colhem pólenes
e areias que os ares atlânticos fazem esvoaçar. E tudo muda porque muda o ser
humano.
Num esfregar de
olhos querendo clarificar, deixamos de ver muita coisa que entretanto acontece.
Preciso é estar
atento à leitura. Não se lê tudo de uma vez. Há águas mais profundas debaixo
das palavras.
A linguagem assim
o descreve. Bom gosto e bom senso na escolha dos termos, julgo eu. O que é
sintomático está à flor da pele, o que é implícito veste-se de uma certa armadura,
o que não tem que ser evidente, o estilo cobriu para mais tarde explodir.
Não parece ficar
nada pendurado, senão o que lhe é próprio, uma qualquer cartola que não serve à
narrativa senão de esplendor. Pura decoração.
Não se incomodam,
nem a ficção nem a história, a cansar o leitor. Antes, porém, se encontram a
ladear a narração, como se de uma moldura se tratasse, e puxam, paulatinamente,
para dentro da ilha. Para dentro do entendimento, da alegação de significados e
justificação de escolhas.
O enredo, de uma
leveza profunda, porque toca suavemente, o viver de todos, toca, no entanto,
vincadamente a cultura, os hábitos, os costumes, a religião, a luta ideológica
de seu tempo, de liberais e absolutistas, enfim, a sociedade atlântica da ilha
da Madeira da primeira metade do século XIX.
Entendem-se
gestos, compreendem-se as palavras, vislumbram-se os jogos de bastidores ou de
cama, retratos da cidade do Funchal que nos projectam para aquele século.
O romance é um
registo histórico bem contado, uma colecção de imagens, calótipos, de uma
realidade com nomes verdadeiros à mistura com os ficcionados que bem podiam ser
verdadeiros, terem existido, dada a sua caracterização.
Não é uma obra
intimista senão mais social, mas, provida sim, do que uma sociedad
e tem no seu
íntimo. As personagens sabem-no e dizem-no, o protagonista e o narrador pensam
nelas.
Este romance coloca
o seu protagonista numa teia de reconhecimento, de uma nova vida com nova
gente, de uma nova terra, vinte e poucos anos distanciada de memórias, de uma
nova sociedade, distanciada da que Afonso Ayres tem de hábitos e costumes, mais
a da sua reflexão e educação.
À medida que ele
se vai revelando, revela-se também tudo à sua volta, num calótipo fotográfico,
cujo processo primitivo faz obter gradualmente traços, e pontos, matizes
sociopsicológicos de um tempo e de um espaço que é a Madeira desse tempo. Só a
Madeira?
O quando, dá-se à
saliência, pois é tempo, como um gancho que prende, o que vai acontecer e como.
Agarrados a uma
certa viagem da reconstituição histórica, prendemos os dedos da leitura a
ficções de uma ficção bem tramada. Mais uma vez, a deferência do autor à
temática da fotografia, implica-se na construção do contar.
Muitos momentos de
trechos que são lidos, parecem ser amostras das experiências de laboratório, à
espera que os negativos revelem as imagens fotografadas, de que fazem parte, à
mistura, as palavras, os períodos, parágrafos, linguísticas diversas, como
líquidos e matérias necessários à revelação. Pois esse é o estilo. Se não foi
intenção do autor, o acaso bateu-lhe à porta. E bem. Se pelo contrário, pensou
em tentar fazê-lo, o acaso bateu-lhe à porta da intenção, e parece-me que muito
bem. Não há autores sem tentativa e erro. E este, tentou, cobriu erros e ganhou
estilo.
Parece-me, em
final de abundância, de boa índole, saudar o autor pelos anos de tentativa, e pelo
prémio de ter suplantado os seus erros.
Eis uma obra de
muitas, mas outra, e se fosse inimigo da sua pessoa, rogava-lhe uma praga:
Quantos mais anos
de vida lhe restarem, mais obras deverá ver-se obrigado a cumprir.
Para amigos, conhecidos
de longa data, o desejo de bom sucesso, pois muitas são as vezes, que para tal
existir, vastos são os amargos de boca, e sonos mal adormecidos.
João de Oliveira
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