QUE ESTÁS A VER?


Vejo uma criança, não tem mais de sete anitos, diz-me o aspeto franzino e a curiosidade brilhante a saltar dos olhos.
Do outro lado do biombo, a irmã é um corpo de sons a despir-se na penumbra do quarto. Todas as noites o mesmo ritual: a irmã, muito mais velha, abre o biombo e tapa as nesgas visíveis. Despe o pequeno, querubim nas mãos meigas, veste-lhe o pijama e aconchega-o sob os lençóis. Depois apaga a chama do candeeiro e esconde-se no outro lado do biombo, junto à sua cama. Só os movimentos dos sons configuram a presença no quarto. O miúdo fica acordado, a cismar... Os corpos são diferentes? Que segredo haverá por dentro das roupas? O que tem a mana e as outras pessoas que eu não possa ver? Que esquisitos os adultos! Ainda no outro dia, andava com o pai a sachar na horta e reparou que ele se pôs de costas para fazer um simples chichi. E a mãe, sempre atafegada nas roupas, desbobinando reparos: «Filha, aperta-me o botão dessa blusa! Parece que estás com os calores, mas eu tiro-tos com duas estaladas bem assentes nas bentas. Tira-me essa saia que está muito acima do joelho. Filha minha não há de andar nas bocas do mundo!»
Vejo a criança na escola, ao fundo da sala, pasmada com a descoberta de mulheres nuas nas páginas de uma revista. Era este então o mistério que a irmã lhe não queria revelar! Era disto que as pessoas morriam de vergonha?
Pressinto a professora desconfiada com os sorrisinhos dos garotos.
«Que estás a ver?»
«Que estás a ver? Que estás a ver, avô?»
É o meu neto que me sacode com as mãos, que me afasta o passado longínquo do pensamento. Quer saber o programa que passa na televisão. Digo qualquer coisa sem nexo, que satisfaz a curiosidade do garoto. Corre à cozinha, a contar a novidade à mãe, que o avô está a ficar xexé, não diz coisa com coisa. Ouço a minha nora explicar que a idade faz destas coisas às pessoas. Encolho os ombros. Até me dá jeito esta aparente senilidade. É o biombo da velhice. Nem sequer é preciso apagar a luz. A mãe muda de assunto e avisa o filho de que está na hora do banho. Não quer tomar banho sozinho. Vai esperar que o pai e a irmã regressem da praia. Tomarão banho os três na banheira grande.
É um fim de tarde de verão, a brisa marítima entra pela varanda aberta da nossa casa de férias. Levanto-me do sofá e vou até à varanda. Fico de mãos apoiadas na grade de ferro a observar os veraneantes que começam a abandonar a praia. É gente de todas as idades. Possivelmente vêm todos satisfeitos por terem gozado mais um dia de férias. E as jovens... essas devem estar com o ego todo bronzeado. Estendidas sem pudor na areia, ao sol, pouco ou nada coberto no corpo. Mas ninguém lhes dá importância. Até a juventude passa à ilharga com indiferença, como se elas fossem peças de roupa a corar ao sol.
O meu neto grita que chegaram o papá e a mana. De tão distraído que estava nem dei pela sua passagem na rua. O miúdo apressa-se a contar a novidade: o avô está xexé, não diz coisa com coisa. Eles confirmam, que me acenaram da rua e não os reconheci. Mais uma vez encolho os ombros. O garoto convida-os para o banho na banheira grande. O pai responde que podem ir indo, que já vai lá ter. Os meus netos afastam-se com alvoroço.
Faz-se silêncio na cozinha. Talvez estejam a beijar-se, se isso ainda tem algum significado para eles. Escuto agora vozes mais baixa. Pressinto que o meu filho vem espreitar a sala. Finjo-me distraído, entregue à minha senilidade. Voltou à cozinha. Entro na sala e sento-me na cadeira junto à porta. Minha nora fala em lares da terceira idade com bastante convicção. Meu filho argumenta que eu não lhe perdoaria, e que ele ficaria com problemas de consciência. E os nossos filhos, diz enérgica, ficarão marcados por uma morte dentro de casa. Pode ser prejudicial para o seu desenvolvimento. E além disso dá cá uma trabalheira! Caixão dentro de casa, na sala grande, velório, cheiro a velas e a flores, e os miúdos a verem tudo. Ninguém suporta a ideia da morte dentro de casa. Os velórios em casa acabaram — é interrompida, mas continua rematando: — Temos de pensar no lar o mais depressa possível.
Volto à varanda. Está um pôr-do-sol igual a tantos outros. Também a minha morte será um acontecimento tão banal como o topless de uma mulher. Atirado para o silêncio frio de uma igreja far-me-ão o funeral com suspiros de enfado até respirarem de alívio após a cremação evidenciar que nesta vida tudo se resume a cinzas. A memória de mim terá o tamanho de uma pequena gaveta com o meu nome gravado. E as crianças longe das exéquias porque a morte incomoda. Ficarão em casa a ver um filme, talvez vestidos de cores alegres, porque as cores não têm sentimentos, diz a minha nora. E à noite, a minha neta terá ainda a possibilidade de saudar a vida na discoteca mais próxima.
Contemplo o pôr-do-sol. Vejo a mesma criança, um pouco mais crescida, a espreitar a sala cheia de pessoas vestidas de preto. Há lágrimas a correr pelas faces como a cera derretida das velas. Ao centro da sala um caixão aberto mostra o rosto serenamente pálido do avô.
A mãe descobre o pequeno à entrada da sala. Faz-lhe um sinal e ele obedece. Depois pega-o ao colo, aproxima-se do caixão, e diz-lhe para dar um beijo de despedida ao avô. Nesse instante, a avó solta um grito cheio de dor.
O funeral começa. O caixão chega à rua e a avó lança os últimos gritos, mais fortes. Não acompanhará o marido à última morada, por falta de pernas, mas as pessoas levarão a certeza da sua dor.
Volto à sala e sento-me no sofá. Finjo que estou bastante interessado na televisão. Meu filho sentar-se-á a meu lado, abrirá o jornal e comentará algumas notícias pedindo-me a opinião. Quererá saber, sub-repticiamente, se estou senil. Não sei como vou reagir. Confundi-lo com provas de infalível lucidez? Propor-lhe pessoalmente a minha ida para um lar? Não sei!
Os garotos reclamam a presença da mãe. Uma lufada de ar invade a sala. Regresso novamente à varanda. O panorama modificou-se. A praia está deserta. O sol afundou-se no horizonte do mar. Nem um navio sequer. Gostava tanto de ver uma luz a bailar no crepúsculo do mar!
«Que estás a ver, pai?»

 
1994

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