A
tempestade assolava toda a região. O
vento rodopiava com fúria. A chuva derramava-se em torrentes diluvianas. Os
relâmpagos rasgavam o manto negro da noite com espadas resplandecentes,
iluminando por breves momentos a estrada inundada.
Parado
na berma da estrada, os mínimos acesos do automóvel pareciam ao longe dois
olhos de gato presos na noite intensa. Dentro da viatura o viajante encolhia-se
de frio e medo. Havia duas horas que o carro avariara. Esperava com paciência
de Noé que outro automóvel anunciasse à distância a sua passagem.
Precipitava-se
para a estrada e gesticulava preces ao fugaz andamento de cada viatura rompendo
a negridão da noite. Debalde. Tão rápido como saía, refugiava-se no auto-
móvel, açoitado pelas vergastadas de água que lhe colavam a roupa ao corpo
frio.
«Que
mundo desumano! Já ninguém acredita nas pessoas», pensava, enquanto acendia um
cigarro animador. Por instantes, a chama do isqueiro iluminava o São Cristóvão
na placa do tabliê:
CARLOS AMARAL DE DEUS
SANTARÉM
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Depois
de uma hora de angustiosa solidão, o bailar de luzes no espelho retrovisor
anunciou-lhe a passagem de outra viatura. A noite continuava rasgada de
intempérie e ele, adivinhando o insucesso, hesitava em abrir a porta. O automóvel
aproximava-se lento, e a lentidão enervava-o. Não se decidia. Ficar? Sair?
O
carro aproximava-se cada vez mais, tão vagarosamente que...
De
repente, saltou para a estrada, quase no mesmo momento em que o automóvel se
cruzava consigo. Por pouco não foi atropelado. Correu para o condutor e gritou:
—
Por amor de Deus... Preciso de boleia. Tenho o carro avariado.
—
Entre rápido.
Tivera
sorte.
Entrou.
E com ele a interrogação: o gesto piedoso fora voluntário ou forçado?
O
automóvel arrancou novamente.
Um
silêncio inventado instalara-se no interior da viatura. Ambos sabiam que
estavam a estudar-se mutuamente pelo canto do olho. A indumentária, a
fisionomia, as mãos: tudo isto é a expressão da alma humana?
—
Você está em péssimo estado. Dispa esse mar de água e agasalhe-se com aquele
cobertor — disse o condutor, indicando o banco traseiro.
Agradeceu.
A
viagem prosseguiu.
—
Mau tempo este, hem?... — observou o condutor.
— É
verdade. Parece o fim do mundo.
Um
trovão sacudiu a noite.
—
Ouviu? É a resposta à sua observação. Deus não dorme. Não haverá fim do mundo.
Calou-se.
Não valia a pena teimar. Pouco depois, o condutor quebrou a mudez.
—
Acredita no Advento?
—
No vento? — O ecoar de um novo trovão abafara as palavras.
— NO
ADVENTO!
—
Quem acredita na Bíblia...
— E
no segundo Advento? — O condutor quase parava o automóvel.
— Só
conheço um.
O
pregador sorriu:
—
Pois conhece! Mas prepare-se para conhecer o próximo, não tarda muito.
O
homem mirou-o. Estaria doido ou a querer gozá-lo?
O
pregador insistiu:
—
Acredita em Deus?
Acreditava.
— E
se Deus enviasse o seu filho à terra pela segunda vez?— continuou.
— É
uma hipótese bonita. Estamos sempre à espera do que há de vir — disse animado,
mais confortado com o calor da manta.
O
pregador pareceu não gostar da resposta. Sacudiu a cabeça e disse:
—
Também você é como os outros. Acredita na ideia de Deus e, no entanto, se Ele
lhe aparecesse, corporizado, negava-o.
—
Teria de fazer um milagre para eu acreditar Nele.
— A
história repete-se: você é o São Tomé da era moderna — exclamou com voz
exaltada. — Todos dizem acreditar em Deus. Todos rompem muralhas em nome de
Deus. Mas, se Ele aparecesse corporizado, escarnecê-lo-iam. Flagelavam-no,
crucificavam-no, porque ousara afirmar-se como filho de Deus. Acreditam na
ideia mas não acreditam na forma.
—
Talvez a fé os cegue. Talvez precisem de acreditar no invisível.
—
Deixe-se de filosofias, que você também o há de renegar — rematou bruscamente.
O
condutor acelerava o andamento. A tempestade morria de cansaço. A sua voz
exaltada tomava-se mais nítida.
— É
desta região? — Mudou de assunto.
—
Não. De Santarém.
—
Bem longe. Conheço perfeitamente. E já agora... como se chama?
—
Deus! — E deixou escapar um sorriso.
O
condutor quase deu um salto.
—
Deus?!... Está a gozar comigo? — Corou, de olhos cravados no viajante.
—
Não. — respondeu muito sério. — Sou mesmo Deus. Em carne e osso.
O
pregador emudeceu de espanto. Nervoso, começou a sentir uns calafrios infernais
a percorrer-lhe o corpo.
«Podia
lá ser Deus?!... Ah, mas havia de pagar pela blasfémia, o atrevidote! Queria
ver a sua arrogância divina em público. Qual Deus, qual carapuça!»
A
noite ia largando o manto negro do temporal à medida que o automóvel se
deslocava para Oeste, quase, quase a entrar no Buçaco. Ganhava velocidade, a
galgar a estrada sinuosa num ímpeto de indignação.
«Com
que então Deus?!...»
Cego
de raiva, com os olhos pousados no seu Deus, nada via na condução tresloucada.
2º prémio nos Jogos Florais da
Quimigal/1990
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