A LEVEZA DO OUTONO
É uma
tarde de sábado. O homem deambula pelos campos. Caminha devagar, ao acaso,
contemplando a paisagem. O tempo não convida a passeios. É um dia cinzento,
mansamente tocado pela aragem fria. Mas o homem sente-se bem. No espaço aberto
à sua volta, pode recolher-se dentro de si. É o que mais anseia.
A
saudade invade-o. Entra-lhe na alma como a humidade da tarde nos ossos do
corpo. O chão que pisa é o do passado. O tempo em que a sua vida tinha o
tamanho de uma tarde campestre sem relógio. O tempo do sonho e das convicções
que não maculavam a sua existência. O tempo da inocência.
A
medida da sua felicidade resumia-se à indiferença por coisinhas das quais
depende a estruturação social e a afirmação de cada indivíduo. Não tinha clube
de futebol; mas gostava de apreciar num jogo o espectáculo desportivo, sem
aderir a discussões clubísticas marcadas pela fanática parcialidade. Não tinha
partido político, mas acompanhava com atenção as movimentações partidárias, e
na hora das eleições o seu voto era esclarecido e consciente. Não tinha a
certeza de ter amigos, mas sabia que tinha a sua vida e os seus sonhos. Não
precisava de mais nada para ser a expressão de si próprio.
O
homem passou um pequeno silvado e avança por entre giestas. Os seus passos o
aproximam de um extenso vinhedo orlado de macieiras e pereiras bravas. Pára. O
fundo cinzento da tarde exibe a natureza sem cor. As hastes das videiras,
despidas de folhagem, parecem gritos agredindo o ar. As árvores, em volta,
esqueletos vivos chorando as últimas folhas ressequidas. O cenário é triste e
desolador. A morte corrói a vida.
O
homem veio à procura da vida. Foge da urbe. Desde que nela entrou, quis
conhecer a engrenagem do seu funcionamento. Aprendeu a ter um clube de futebol
e a ter um partido político. Aprendeu, no fundo, a ser igual entre os iguais.
Com tudo isto, ao fim de não muito tempo, aprendeu a conhecer o rosto da
inimizade e da falsidade. E aprendeu a conhecer os enganos que as certezas
impõem. No mundo das insónias, não havia lugar para o sonho. Cansado,
carregando dentro de si a sombra, regressou ao espaço do passado.
Ao
homem, de repente, assoma um sorriso à flor dos lábios. Inspira fundo, sorvendo
o ar à sua volta. O que ele vê, agora, é o milagre da vida. Ele quer fundir-se
com aquela natureza. Ele quer, à semelhança das videiras e das árvores, deixar
cair o peso da folhagem sem qualquer préstimo. Ele quer sentir-se nu, despojado
até à raiz da alma. Ele quer ser a leveza do outono para se cobrir de uma nova
liberdade.
Jornal
da Mealhada, 333,
15.11.2000
(sem atualização ortográfica)
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