Avô Tó


Avô Tó olha a tarde de calor presa no pátio da casa. Abre o portão, espreita a rua deserta, o sol transpira fogo volátil. Fecha rapidamente o portão de chapa metálica que morde lume nas mãos.
— Que tempo! — exclama.
Procura a sombra morna da parreira do pátio. Está um mocho à sua espera e um toldo estendido sob o enredo de um monte de feijões por debulhar.
Olha amiúde o velho relógio de bolso, perscruta o sol oxidado por cima dos telhados. As costas das mãos lambem-lhe o suor do rosto, com este calor só consegue pensar num copinho de vinho na fresquidão da adega. Separa os feijões debulhados, levanta-se, o trabalho realizado bem merece a bebida. Na adega saboreia o copo de vinho a fervilhar de frescura. Agora sente-se bem melhor.
Volta ao trabalho, faz um trejeito ao ser bafejado por uma onda de calor. Não passaram ainda quinze minutos, a garganta é um forno aceso. «A culpa é deste tempo», pensa. Levanta-se, resoluto, abre a porta da adega, apaga o fogo na garganta com outro copo de vinho.
Volta ao trabalho, o sol deixou a tarde arrefecer um pouco, mas Avô Tó não pensa assim. Ele é que está mais fresco graças ao vinho. Recomeça a tarefa, a debulha estala esquiva nos dedos. Passaram mais dez minutos, considera que o trabalho não avança, talvez seja culpa do tempo parado. Quanto mais pensa no calor mais se lhe acende a sede na boca. Pensa em beber outro copo de vinho fresco. Por instantes, hesita.
«Talvez seja melhor beber um púcaro de água do cântaro. Também está fresquinha.»
Zanga-se com a ideia. Beber água até lhe fica mal, ele que trata o vinho por tu, conhece-lhe a alma, toda a vida passada no campo a trabalhar, sempre o primeiro a começar e o último a acabar de beber. Um garrafão só para ele. Bons velhos tempos! Está velho, bem sabe, já não pode com um garrafão, mas uma garrafa é coisa fácil. Agora abençoa a ideia. Com uma garrafa ao pé de si, evita o constante levantar. Olha o monte de feijões, parece-lhe cada vez maior, enche-se de coragem, já está na adega.
Senta-se de novo no mocho, a garrafa do vinho metida num balde com água. Entre o crepitar da debulha, vai beberricando goles de vinho. Está feliz, vê-se a flor do contentamento a boiar à tona do vinho. O trabalho corre-lhe bem, era tudo uma questão de sede, a garrafa quase vazia é testemunha.
O sol desenferrujou-se na perseguição do poente, a folhagem da parreira estremece com o roçagar da brisa que se aproxima. Avô Tó não se apercebe. Continua com calor, a cada dose de refresco duplica-se a temperatura, não só do corpo mas do espírito também. Para ele, a tarde continua na pancada do sol.
— Tarde infernal — amaldiçoa os feijões que lhe fogem das mãos. — Parece que estão vivos!
Então, ao pronunciar as palavras, aquieta-se pensativo. O cheiro do calor que lhe foge da boca é deveras conhecido. «Estarei bêbado?» Julga que é efeito do sol, não protegera a cabeça com um chapéu.
— Bêbado!... — exclama, aborrecido. — Eu, o campeão das tabernas! — Num gesto exemplar, pega na garrafa e emborca o resto do vinho.
Pouco depois, as ideias flutuam-lhe na névoa quente da visão. Um mar de felicidade espraia-se em ondas sinfónicas. Apetece-lhe entoar a velha quadra brejeira que tantas vezes ouvira quando era garoto. Como era?

O velho mais a velha
Foram beber água à bica,
O velho caiu para trás
E a velha cortou-lhe a pica.

Acha graça e ri-se muito. A cor do vinho começa a aflorar no rosto. Continua a rir-se, bate com as palmas das mãos em cima dos joelhos. Apetece-lhe mais um copinho.
Só mais um para terminar.
Procura a garrafa, encontra-a vazia a seus pés. Levanta-se. Não chega a dar um passo. O portão da rua abre-se e vê entrar o filho que regressa do trabalho.
O filho para à entrada, ainda não fechou o portão, mira por instantes o pai e esboça um sorriso.
É por este sorriso que Avô Tó sabe que vai ser repreendido como uma criança.

Naquele domingo de uma tarde de setembro acalorada, Avô Tó chegou à taberna do Quim Magro mais cedo. A taberna ficava no largo, mesmo em frente à fonte de pedra.
Quim Magro, que estava a ler «A Bola» por detrás do balcão com tampo de mármore manchado de tons violáceos, espreitou sobre o jornal na direção do cliente que acabara de entrar.
— Já? Tão cedo? — perguntou, sem esconder a surpresa. Avô Tó era sempre dos últimos a chegar.
— Pois «atão»! — respondeu secamente. — Havia hora marcada para a consulta?
O taberneiro ficou sem resposta por momentos, ao mesmo tempo que os seus olhos claros escureciam. Era um homem quarentão de corpo atarracado com abundantes cabelos reboliços a saírem da camisa às riscas amarelas aberta no peito.
— Claro que não! — respondeu, vincando bem as palavras. — Claro que não!
Era notório que Avô Tó não estava bem-disposto. «O que vale é que tem bom vinho», pensou Quim Magro com o sorriso gratuito que atirou para o cliente.
Avô Tó sentou-se num banco de madeira comprido, bem junto à janela aberta para a fonte.
— Vai um copo? — arriscou o taberneiro.
Não era preciso perguntar, ele sabia pedir.
Quim Magro encolheu os ombros e retomou a leitura do jornal. Era visível que estava para implicar.
Avô Tó ficou pensativo, à janela, de cabeça virada para o largo mas de olhos virados para dentro de si próprio. Desde a tarde em que o filho decidira proibi-lo de beber vinho a rodos, sentiu-se, de repente, como pássaro de gaiola. Tudo quanto era vasilha de vinho na adega passou a estar fechado por uma torneira especial cujas chaves o seu filho guardava. «Vinho só às refeições. Por indicação do médico», dizia o filho com ameaças paternalistas. Recorda-se então que até à morte da sua Belmira passara o mesmo martírio com o matraquear das suas quezílias: «Não tens vergonha nenhuma. Bebes vinho como um camelo a beber água.» Agora, que Deus a tinha, ficara o filho, fraca imagem do pai, a substituir o demónio da sua mulher, desculpando-se com a ordem dos médicos. Felizmente ainda tinha uns tostões amealhados que davam para as estroinices de domingo. Nascera do vinho, havia de morrer com o vinho.
O tilintar das campainhas de duas bicicletas despertou-o destes pensamentos. Dois colegas da pândega, quase da mesma idade, chegaram frescos do seu banho semanal, galantes na calça vincada, camisa branca e chapéu novo na cabeça. O domingo era sagrado. As agruras e o cansaço da semana ficavam enterrados na taberna do Quim Magro.
Avô Tó levantou-se do banco, contente com a chegada dos companheiros, coçando o bigode hitleriano.
— Três tintos! — pediu com uma palmada no balcão de mármore.
Era o sol madrugador que só ele conhecia bem dentro do seu reino. Desde muito cedo aprendera a ler no vinho o imperativo da vida. Sem vinho, sem a fruição do sabor do vinho em copadas de camaradagem, a vida perdia todo e qualquer significado num espaço onde viver se reduzia à mísera condição de cumprir um calendário sempre igual pregado na parede.
Avô Tó não saberia exprimir-se com este vocabulário nem intelectualizar o seu comportamento. O vinho era a forma que ele conhecia para explicar a vida, o bordão da sua existência. Se lhe perguntarmos porque gosta tanto de vinho, ele responderá sem hesitação: «Cá na terra, a pinga é a nossa segunda mulher». Estará ele consciente da profundidade desta simples frase?
Vou deixar Avô Tó entretido na taberna com os amigos. Muitos outros chegarão para se irmanarem em cânticos dionisíacos, à volta de um baralho de cartas ou de ouvido atento ao relato de futebol transmitido pela rádio.
Quando Baco fremir de êxtase, Avô Tó, o rei das tabernas, contará as anedotas por ele inventadas. Uma será a invenção da sua verdade, do dia em que foi observado pelo médico. Tremia de nervosismo, era a primeira vez que ia ao consultório. O médico, interpretando mal o tremor, perguntou:
«O senhor bebe muito?»
«Nem por isso, senhor doutor», respondeu. «Entorno a maior parte.»
Quando chegar a casa, tremerá perante o sorriso lacónico e incisivo do filho.

Às oito horas de domingo, altura em que o sacristão se preparava para abrir a porta da igreja, um grunhido rouco de morte, fugido do pátio do Avô Tó, bem perto do adro da igreja, trespassou o silêncio alvo da manhã. Os netos, duas crianças de oito e doze anos, acordaram sobressaltados e assomaram à janela virada para o pátio, observando com serena curiosidade o espetáculo corroborante de que até os suínos têm cu na iminência da morte, consubstanciado nas fezes com que nos presenteiam nos últimos instantes de imunda vivência.
Na banca de madeira preparada para a consumação de tão popular ato de matança, o reco estrebucha na agonia da morte com convulsões respiratórias a verter golfadas de sangue vulcânico para um alguidar de barro, que será aproveitado para confecionar o saboroso sarrabulho. Esticado o pernil, as sedas do porco são chamuscadas com feno ardente e, enquanto jaz morto e arrefece, o animal vê-se, de um momento para outro, despido de todos os elementos em que a mãe natureza e o pai humano se basearam para o batizar. O corpo é esfregado com água abundante, os chispes ficam descalços de tão grosseiros sapatos e as orelhas acossadas até aos pontos mais recônditos. A operação termina quando o reco estiver ferido de limpeza. Depois é transportado para a adega, onde é içado numa corda de focinho para baixo. Nesta posição, o corpo oferece-se ao magarefe que, em empíricos golpes exatos, o esventra para proceder à completa dissecação do animal. Então é chegada a hora de se provar uns couratos e umas febras na brasa, e de beber uns copos de vinho para restabelecer as energias perdidas.
Neste quadro de alegria familiar, Manuel Zé, o filho de Avô Tó, anuncia a novidade da manhã:
— Agora, como quero que a festa seja rija, porque um porco não se engorda todos os dias, vou abrir uma pipa de vinho que eu guardei para este dia.
Vozes de aprovação entusiasmaram-se com ansiedade.
— Vamos a isso — ordenou o matador de serviço.
— Vai-se embora, avô? — falou um neto, apercebendo-se da retirada do velho. — Não bebe com a gente?
Avô Tó virou-se para o neto e respondeu bem alto:
— Não. Só bebo às refeições.
Nunca perdoara ao filho o facto de ter ordenado a Quim Magro, o taberneiro, que não atendesse o pai em mais de dois copos ao domingo.
O filho, pensando que o pai queria demonstrar ser um homem com personalidade, respondeu com humor:
— Ó pai, chá só de parreira!
E, contente com a resposta inteligente, abeirou-se da pipa que, tal como as outras vasilhas, estava fechada à chave. Rodou o dispositivo de segurança, mas o copo continuou vazio à espera do vinho que não caía.
— Então esse chá, ó Manel? — zombou o magarefe, abafado por uma risada geral.
— Deve estar avariada — balbuciou Manuel Zé, enquanto rodava a chave da torneira em tentativas inúteis.
De repente, os seus olhos abriram-se num fogacho luminoso. Contornou a fiada de pipas. Na traseira da pipa especial, a certeza da conjetura abriu-lhe ainda mais os olhos de espanto e incredulidade.
— Sacana do velho! — murmurou.
Na parte posterior da pipa um espicho de verga vedava o orifício por onde saíra todo o vinho.
 
 
In Vino Veritas, 1990

 

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