Foi
a 24 de dezembro. Era um dia chuvoso e frio. A chuva caía forte, com descargas
diluvianas. Ficou na história dos invernos de má memória por causa das
inundações trágicas que afogaram dezenas de localidades. Hoje talvez já me não recordasse
desse dia triste. Mas ficou-me para sempre, mais por aquilo que de mim nele
aconteceu. Dizendo melhor: foi ela que me aconteceu nessa tarde de chuva e
frio.
Eu
chegava a casa depois de uma caminhada heróica debaixo de um frágil
guarda-chuva. As roupas molhadas colavam-se ao corpo, sobretudo às calças,
pesadas de água. Imaginava o conforto do lar, quente e doce, mal entrasse em casa. Levava comigo a
solidão e a leveza dos dias do meu contentamento, preso a uma rotina de vida
que não incluía qualquer outro ser no meu habitat privado. Opção de vida tomada
depois de sucessivos fracassos amorosos. Sozinho há seis anos. Por estranho que
pareça, nunca cheguei a sentir o sindroma da solidão, doença tão propalada pela
imprensa e por certos sociólogos. Convencera-me de que, afinal, soubera
reencontrar o meu próprio caminho, e essa convicção dava-me a sensação de plena
felicidade.
Naquela
tarde, porém, naquela tarde quase noite de Natal, favorável à união familiar debaixo
do mesmo teto, ela aconteceu-me. À entrada do prédio, abrigada no vão da porta,
ela estava encolhida contra o canto da parede. Tremia de frio e fome, com um
aspecto físico assustador.
O
meu primeiro instinto foi ignorá-la, com indiferença, e abrir a porta do
prédio. Nesse instante, ela mexeu-se e lançou-me os olhos como um pescador
lança a rede. Não sei o que dela entrou em mim. Nem sequer me lembrei, nesse
momento, de que era véspera de Natal e que, portanto, eu poderia estar imbuído
do espírito natalício que nos sentimos obrigados a manifestar, pelo menos uma
vez por ano, para tranquilidade da consciência. Só sei que lhe dei a mão. Só
sei que juntei o seu corpo molhado ao meu corpo molhado. E assim, unidos e
mudos, com palavras silenciosas que só os olhos e os gestos sabem dizer,
entrámos no meu humilde apartamento.
Cuidei
dela, acarinhei-a. Depois da quadra natalícia, com o corpo e a alma
completamente renovados, com a liberdade à sua inteira disposição, quis ficar
comigo. Adotou-me. Adotei-a.
Aprendi
a viver com ela, aprendi a reviver uma vida a dois. Ela sabia ocupar o espaço
que lhe pertencia e sabia respeitar o meu. Nessa base de entendimento, dei-lhe
o que de melhor estava ao meu alcance. Reconhecia a gratidão nos seus olhos que
aos meus se colavam como a água da chuva que nos uniu pela primeira vez. Nunca
pronunciou uma palavra. Nem sequer era necessário. Para comunicar, tínhamos os
olhos, as mãos e o coração. Não era uma relação estranha e absurda. Era uma
relação completa e perfeita, que só se consegue quando duas solidões concentram
à sua volta a sabedoria da vida. Era uma forma de amar que eu nunca havia
experimentado.
No
ano seguinte, o cíclico calendário trouxe outro Natal. Sem chuva, sem frio, com
uma meiguice de sol.
Ela
deu-me sinal, nessa tarde, de que sairia de casa durante alguns minutos. O
tempo convidava ao cumprimento de um hábito diário. Fui à varanda. Queria ver o
seu contentamento. Queria contemplá-la à distância, sentir a sua alegria de
viver.
Vi-a
atravessar a rua. Do outro lado, encostado ao vidro de uma loja, alguém ali
estava, parado na tarde. Parecia não ter objetivo traçado. Também parecia não
estar perdido. Ela chegou-se a ele. Percebi que o cheirava ostensivamente. Ele
fez o mesmo. Os olhos deles falaram rápidos. E rápido vi os dois partir, lado a
lado, juntinhos como na tarde em que a levei para minha casa.
Nunca
mais regressou. Nunca mais a vi. Durante algumas semanas, a minha solidão
ressentiu-se da falta dessa outra solidão. Mas os laços que se atam também se
desatam. A vida continua. E nesta vida, com ou sem Natal, há sempre uma cadela
capaz de trocar o seu dono por um cão qualquer.
Jornal da Mealhada, 431, 04.12.2002
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