As agruras de vida no século XIX na Madeira




As agruras de vida no século XIX na Madeira

João Abel de Freitas, Economista



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O Fotógrafo da Madeira de António Breda Carvalho é um grande livro, uma análise ampla e carregada de vida social, económica, política e religiosa do século XIX, com resquícios bem presentes ainda hoje, de que relevo sobretudo a intolerância.

Não pretendo ser um crítico literário, porque não sei. Mal distingo os géneros literários.

Então o que deixo aqui neste pequeno texto são impressões que colhi ao olhar para este livro e não análises de natureza estrutural ou comparativa, próprias do crítico.

O Fotógrafo da Madeira é um romance, assim o classifica o autor, “feito de ficção e de História” e acentua: “a ficção, pela sua própria natureza, dispensa qualquer aviso ao leitor. A História, por sua vez, entranha-se na ficção. Pertence à História o tempo, o espaço, alguns factos e algumas personagens. É aqui que entra o aviso ao leitor: não confundir personagens de papel com personagens reais.”

Apesar do aviso ao leitor para não confundir as personagens de papel com as reais, a História a sério da Madeira do século XIX, nos seus múltiplos desenvolvimentos, perpassa todo o romance e está bem entranhada no seu enredo, bem atractivo.

Uma História contada de forma aliciante que nos entusiasma. Bem mais rica e abrangente do que em qualquer compêndio. As personagens que a fazem desempenham papéis múltiplos na vida do dia-a-dia.

Assim se passa com a personagem mais em foco no romance, Afonso Elias Ayres Drumond, o madeirense estrangeirado, saído da Madeira aos 12 anos para estudar em França, por vontade de seus pais que não pactuavam com a intolerância reinante no ambiente madeirense: “não o quero ajoelhado à política desta ilha”, dizia o seu pai no diálogo com a mãe quando discutiram a ida do filho para fora da Ilha, reagindo assim ao ambiente antiliberal vigente e acerrimamente hostil às ideias que professavam. Eram marginalizados, só não o eram mais, por serem um casal de posses. Tinham a Quinta da Colina, de grande sucesso nos negócios do vinho Madeira.

Este madeirense, depois de uma vivência parisiense, permissiva e tolerante e com já algum nome na advocacia local, regressa aos vinte e poucos anos para gerir a Quinta da Colina. Regressa como cônsul francês para a Madeira, e com hobbies pouco habituais para a Ilha. É amante da fotografia (algo de novo na Madeira) e da pintura.

Depois de montar o consulado nele admitindo como sua secretária, a Laura, filha do encarregado da Quinta da Colina, o que choca a sociedade local (mulher num emprego de homem, mulher no emprego a sós com um homem), logo aqui não escapa a aleivosias num jornal do Funchal, o que leva Laura a abandonar o cargo por vontade própria. Mas Laura não fora admitida por favor. Tinha competência para o desempenho das funções. Tratava-se da filha do encarregado mas bem preparada. Tinha sido educada pela mãe de Afonso, deduz-se educada como se fosse sua filha. Expressou nela a ausência do filho.

Afonso Elias era uma pessoa dinâmica. Ao sair Laura do seu alcance e por não a querer perder, constitui a primeira casa de bordados virada para os mercados externos e entrega-lhe a gestão deste investimento inovador.

Mas Afonso Elias não fica quieto. Desenvolve outras iniciativas de carácter social e de promoção da Ilha. Entre elas a iniciativa dos postais sobre as belezas e actividades da Madeira, a partir da sua arte fotográfica de onde retira dividendos, aplicando-os nas iniciativas sociais.

Esta dinâmica desagrada às forças vivas da Terra. São ideias revolucionárias como insinuam. São influências de França, despropositadas no meio madeirense. Aliás, o cônsul pelo passado de seus pais é, desde o início, uma pessoa non grata, apenas tolerada.

É interessante como o livro se vai desenrolando. Para além de diversos ingredientes fortes do romance que envolvem a comunidade inglesa e o seu fechamento, o romance vai tocando todos os pontos importantes da sociedade madeirense.

É a economia onde o vinho e os bordados são tratados por contraste ao que predomina. Chegam elementos inovadores de mercado e produção. São as relações sociais de produção sobretudo no campo onde se contrasta a grande questão da colonia com as relações vigentes na Quinta da Colina, onde os pais do cônsul tinham dando um passo em frente com o estabelecimento das relações capitalistas - trabalhadores assalariados com vencimento fixo. É a emigração sobretudo para Demerara, a nova escravatura branca com os engajadores a ganharem fortunas. É o turismo onde os hotéis da cidade começam a surgir e onde se vinca a vontade de investimento no sector.

As forças vivas, “os políticos”, governador, presidente de câmara, bispo, apontam-lhe essas ideias de revolução, aliás insinuando que “quem sai aos seus não degenera”.

Mas o grande problema surge com a igreja, ou melhor com o entendimento (igreja-políticos) na perseguição a Robert Kalley, radicado na Madeira há alguns anos e defensor do calvanismo. É o cúmulo da intolerância e da malvadez.

Afonso Elias, que não praticava nenhuma religião, era tolerante com os seguidores de Kalley, até porque os pais de Laura e a própria Laura eram praticantes.
Havia arruaceiros comandados por um tal Cónego Teles de Menezes que “com o apoio tácito do governador” faziam batidas “a lugares reconhecidos como covil de protestantes” e os que não conseguiam fugir “eram espancados e apedrejados”.

Estes arruaceiros até cercaram a casa de uma súbdita inglesa não anglicana adepta de Kalley numa tarde em que um grupo, na maioria mulheres, estava reunido em oração. A súbdita apresentou queixa ao cônsul inglês que para não desagradar ao governador e à igreja madeirense nada fez.

A provocação desenvolve-se em crescendo até que chega o dia de São Bartolomeu madeirense, onde todas as arruaças foram cometidas, designadamente a invasão do Funchal com o ataque e uma grande mortandade de pessoas.

Muita gente conseguiu fugir da Madeira entre eles o pastor Kalley e Laura.

Afonso Elias não assistiu a esta tragédia pois tinha sido chamado a Lisboa pelo governo.













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