P A R A F O R
A, C Á
D E N T R O
Um passeiozito era mesmo o que vinha a
calhar, para descontrair os neurónios e esquecer os privilégios da minha
profissão. E o tempo não podia estar melhor, neste outono acolhedor. Tem de ser
um passeio por este Portugal português, à força de tanto ouvir na televisão «Vá
para fora, cá dentro».
Quinta-feira, 31 de Outubro. Estou então
de partida, com a mulher que me acompanha há muitos anos, rumo ao Alto
Alentejo. Já deixei para trás Tomar e Abrantes, Castelo de Vide é o destino
desta primeira etapa. Chego às 15 horas ao jardim da vila. Ainda mal comecei a
estudar o lugar com os olhos e já me surpreendo: uma placa indica-me o caminho
da Fonte da Mealhada. «Gente simpática», penso. «Como sabiam que eu vinha cá?».
Vou à Fonte da Mealhada, que é para onde me leva o coração. É diferente do
chafariz da minha terra. Prefiro o meu chafariz, mais pequeno, mais elegante e
bem enquadrado no espaço envolvente. Ah!, se eu pudesse trocar a água!...
Volto ao centro da vila. Dirijo-me ao Inatel.
Na recepção fico a saber que não há quarto disponível. É incrível: tanta gente
a seguir o itinerário escolhido por mim! Tenho de escolher outro sítio para
pernoitar. E com muita sorte, pois a última vaga esperava por mim. Aliás, viria
a ser assim até à última noite da viagem. Voltei, à noitinha, ao Inatel, para
jantar. Bem servido e mais barato. Bem instalado fiquei também na residencial.
E mais barato qualquer coisa. É a sorte de ser sócio do Inatel e de não ter
quarto disponível.
A tarde é pequena, anoitece cedo, não há
tempo a perder. Vou ao Posto de Turismo e recolho os percursos históricos. Pés
e máquina fotográfica a caminho do castelo. Ruelas estreitas e íngremes
revelam-me, entretanto, a presença de uma judiaria naquela terra. As pessoas são
afáveis. Até dá gosto falar português. Uma hora depois, regresso ao centro da
vila. Tenho de prestar culto à Igreja Matriz e de cumprimentar o sempre jovem
D. Pedro V, no alto da sua estátua, que também por aqui passou. O dia está
ganho. Castelo de Vide ganhou um amigo.
Sexta-feira, 1 de Novembro. De Castelo
de Vide a Marvão distam 13 quilómetros. Não há pressa, a manhã está por minha
conta. A meio do percurso começo a adivinhar a vila no alto do monte, escondida
dentro das antigas muralhas. À chegada, mal transponho a porta da cerca, há uma
rua estreita que sobe pelo branco das pequenas casas. Este percurso trilhado
por ruelas quer-se pedestre; ao fazê-lo, muitas vezes me vem à memória a
histórica Óbidos. Subo a uma das ameias do castelo e contemplo a vasta planície
que se perde na fronteira espanhola. E eis que compreendo a importância
geo-estratégica desta pequena povoação nos tempos remotos. Desço ao miolo da
vila, visito o museu e busco depois no Posto de Turismo um pouco da sua
história metida em meia dúzia de linhas escritas. Recebo uma separata da
revista IBN MARUÁN (do árabe: Filhos de
Marvão). Volto novamente a Castelo de Vide, agora em pensamentos, para
lembrar as inúmeras publicações culturais que vi editadas com a chancela da
Câmara. Tanta sensibilidade cultural por parte das edilidades locais basta para
fazer inveja a qualquer homem de letras que viva longe desta região. E, ainda
entretido com estes pensamentos, chego à porta da casa onde viveu Branquinho da
Fonseca durante largos meses. Estou predestinado a ter estes encontros
inesperados com as figuras literárias que deixei nas estantes de casa e que
queria esquecer absolutamente por quatro dias. Mas Branquinho da Fonseca
sussurra-me já ao ouvido a passagem do livro Caminhos
Magnéticos, onde, no conto "O Conspirador", descreve Marvão.
«Um
monte de casitas brancas em cima duma pedra gigantesca, uma pedra preta, que
parece um navio com costado de 300 metros de altura: é Marvão. A muralha
protege a povoação em toda a volta, para não deixar sair nem entrar nada. Não
deixar entrar a civilização nem sair o ar estranho e primitivo do burgo onde se
penetra por duas portas, ambas difíceis, com seus arcos sucessivos em zig-zag.
As ruas muito estreitas e torcidas, calcetadas com pedregulhos irregulares, emaranham-se
todas umas nas outras, em ângulos e esquinas imprevistos. Há casas
verdadeiramente incrustadas no monte: à frente têm três andares e atrás o
telhado toca no chão. É um labirinto de escadinhas toscas e vielas íngremes. As
habitações, muito caiadas, com buracos que são janelas e com portas medievais
em ogiva, roídas dos séculos, estão umas a cavalo nas outras, no alto do monte,
a olhar para Espanha. Torres, arcos, portas, contrafortes e trincheiras, num
conjunto de feroz estratégia, cercam o casario ingénuo que paira sobre a
paisagem imensa. Lá para baixo contempla-se o mundo em mapa de relevo a belas
cores: montes, rios, planícies, cidades, vilas, estradas, florestas.»
Com esta leitura abalo para Portalegre,
onde espero encontrar um almoço com sabor alentejano e a Casa-Museu de José
Régio, porque Branquinho da Fonseca me abriu os apetites literários.
É feriado, os museus estão fechados.
Pois fazem assim muito bem, que isto de ir para fora cá dentro não convém que
seja em fins-de-semana prolongados, por causa do grande afluxo de turistas
portugueses e espanhóis que podem desgastar os nossos museus e monumentos. Vou
às sopas, onde me tenho de contentar com umas lulas grelhadas, depois de buscas
infrutíferas por um ensopado de borrego, ou qualquer outra coisa que a nossa
publicidade turística tanto apregoa. Vá para fora cá dentro, e vá com Deus.
De sabor alentejano levo algum vinho
comigo, a quantidade certa para uma tarde de viagem. O destino é agora
Estremoz, com desvio por Crato, Alter do Chão, Avis, Fronteira e Sousel.
Descanso os olhos e a alma na paisagem. Apenas o coração se cansa neste
fatídico feriado nacional: igrejas e monumentos fechados. Salvam-se os folhetos
dos postos de turismo e a máquina fotográfica __ para mais tarde recordar o que não se pôde
visitar. Enfim, eis Estremoz, o meu poente nesta tarde de sexta-feira. À noite
comerei uma açorda que, sabê-lo-ei depois, me fará pensar na açorda da minha
tia.
Sábado de manhã. Deixo para trás
Estremoz. O itinerário promete ser muito mais interessante. Num salto de quatro
rodas, estou em Vila Viçosa, junto ao Paço Ducal. Junto-me ao grupo de pessoas __ perto de trinta __ que se prepara para visitar o interior do
Paço. Cada entrada, mil escudos. Encontrar um museu aberto tem os seus custos.
No fim da visita guiada, depois de me maravilhar com as riquezas que
materializam as gerações dos Duques de Bragança, não chorei o dinheiro e o
tempo gastos. Quis comprar uma colecção de postais, exposta na vitrina, que me
seduziu a vista. Estava esgotada. Olhei tristemente para o novo grupo de trinta
pessoas que se preparava para começar a visita. Cá fora, contemplei a vasta
fachada do Paço. E tirei-lhe o retrato, que será, certamente, o postal da
triste memória.
E subo agora ao castelo, onde o
cemitério me acolhe aos pés de Florbela Espanca, junto à sua última morada.
Despeço-me e ela agradece a visita:
Ó
minha terra na planície rasa,
Branca
de sol e cal e de luar,
Minha
terra que nunca viste o mar,
Onde
tenho o meu pão e a minha casa.
Finalmente, repousa em paz a sua dor.
Almoço em Elvas. Tempo de ver o
Aqueduto, o centro histórico e, ao longe, Badajoz à vista, onde irei
brevemente.
A tarde leva-me a Campo Maior. Visito a
Igreja Matriz e, ao lado, espreito o interior da Capela dos Ossos, pelo vitral
da porta fechada. São estes os ossos do turista, de ir para fora cá dentro.
Quero chegar a Portalegre ao anoitecer.
Fujo da estrada principal e aventuro-me pela Serra de S. Mamede, onde o passeio
culmina no Alegrete, pequena povoação.
Sábado à noite em Portalegre. Não há
cinema na cidade. Acenderam-se as luzes e apagou-se o coração. Uma volta
pedestre, nocturna, é o que me pede esta deliciosa açorda de marisco.
Domingo. Não posso partir sem visitar a
Casa-Museu de José Régio. Entro no reino de Cristo. São centenas de cristos que
o poeta foi coleccionando durante os anos em que foi professor de Português e
Francês em Portalegre. Sobre a secretária, no seu escritório, leio o original
do poema __ "Toada
de Portalegre" __ que a janela abriu sobre
a cidade.
Em
Portalegre, cidade
Do
Alto Alentejo, cercada
De
serras, ventos, penhascos, oliveiras e sobreiros,
Morei
numa casa velha,
Velha,
grande, tosca e bela,
À
qual quis como se fora
Feita
para eu morar nela...
Rumo à Beira Baixa. A paisagem vai-se
transfigurando, à medida que me afasto do Alto Alentejo.
Em Castelo Branco, visito o Jardim do
Paço e o Castelo. O almoço é a caminho de Idanha-a-Velha, onde me espera a
estação arqueológica. É uma povoação __ Civitas Igaeditanorum __ que sofreu a sobreposição de diferentes
civilizações. Importante centro no período romano, na linha da estrada Emerita (Mérida) __ Bracara
(Braga), assistiu à passagem das culturas visigótica e árabe, entrando em
declínio após a invasão muçulmana. Admiro a ponte e o arco romanos, a torre de
menagem dos Templários e a Sé, que testemunha nas suas pedras a presença de
povos milenares.
São quatro horas da tarde. É tempo de
calcular a viagem de regresso a casa. Mas não resisto ao apelo da vizinha
Monsanto, que lá no cume do monte, qual Olimpo dos deuses humanizados, me acena
com um sorriso feito de pedra.
E quando chego ao alto da povoação, fico
quedo e mudo de espanto. Aqui é a vida que se agarra ao chão como estes penedos
seculares. Penedos que resistem, teimosos, à erosão do tempo. O castelo é a
coroa de Monsanto, depois de um percurso íngreme. Do reino das águias, lá no
píncaro do monte, a planície rende-se à majestade de Monsanto.
São horas de regressar. Desço à povoação
e procuro a rua onde está a casa de Fernando Namora, quando neste lugar exerceu
medicina, deixando aqui alguns retalhos da sua vida de médico e colhendo a vida
de algumas personagens que recriou na literatura. É fado meu estes encontros
literários. A Nave de Pedra revela-me
um outro olhar sobre Monsanto.
«Por
aqui, dizia, se encontra Monsanto. Onde a fraga se torna pesadelo. De longe a
vi e a temi, um dorso de monstro a crescer para nós até tomar conta de quase
todo o céu, num tempo de já não sei quando e com uma personagem decerto
desaparecida, esse eu bisonho a eriçar-se de espinhos, ou de frouxidão
embuçada, no trato dos homens. Um eu que só tarde veio a reconhecer que é no
gesto sem medo, afinal o gesto que pedia e lhe pediam, que estava o segredo da
comunicabilidade.
Homens
e panoramas desta estremadura beiroa, de desconfiança em alerta, nos oferecem,
pois, a ideia de um viver tão duro quanto marginal. Curtido na servidão e por
isso amuado. (...)
Desço da pedra à terra, do alto do monte
à planície. Inicio a viagem de regresso a casa.
Um dia voltarei. Para fora, cá dentro.
Jornal da Mealhada, 220,
15.11.1996
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