C A R T A S
Todos os dias recebo correio. Montes e
montes de envelopes e outros quejandos que me atulham a insuficiente caixa de
correio. Quando a abro, parece uma máquina de casino a despejar moedas. Olha
uma revista! Olha um jornal! Olha uma carta publicitária! Olha uma carta
bancária! Olha uma carta da seguradora! Olha uma carta comercial! Olha...!
Mas aquele correio tradicional, sem
cheiro a papel de jornal ou a dinheiro, esse raramente os meus olhos o vêem. O
que eu gostava de ver, sempre que abro a caixa de correio, era aquela carta
escrita à mão que, nos tempos idos, me trazia ao coração a vida de familiares e
amigos ausentes. Era com emoção que abria o envelope, curioso por ler na
conhecida caligrafia pequenas e grandes coisas que fazem a vida. A caligrafia
é, confesso, um aspecto fundamental que me leva a preferir a carta tradicional:
a letra inconfundível dá-me a ilusão de que tenho na minha presença a pessoa
que escreve.
A carta de que falo foi bastante
importante enquanto meio de comunicação. Há registos do seu uso desde a
antiguidade. Na Bíblia encontramos famosas epístolas. Atravessou séculos e
séculos e chegou até nós com toda a vitalidade. Dela se serviram gente
desconhecida, pessoas simples e rudes rabiscando o melhor possível, e gente
ilustre, exibindo letra fina em papel de luxo.
Objecto imprescindível no quotidiano,
depressa alcançou o seu lugar na cultura e na literatura portuguesas. Romances
há, designados por epistolares, cujo universo ficcional é totalmente contituído
com cartas trocadas entre personagens. A música portuguesa, algumas vezes, a
ela recorreu. «Cartas de amor, quem as não tem?» e «Mandei-lhe uma carta em
papel perfumado», adaptação de um poema, são exemplos de cantigas entoadas por
muitas pessoas, bem recordadas de como conseguiram namorar à distância.
O hábito de coleccionar a
correspondência trocada e a sua forma material, preservando pela caligrafia a
marca autêntica do escrevedor, tornaram possível conhecer, hoje, o espólio
epistolográfico de um autor. Com este simples acto de guardar, parecendo
inútil, salvaram-se valiosos documentos que muito contribuem para um melhor
conhecimento de um autor, do seu pensamento e da sua obra.
É claro que, acerca dessa velha carta
escrita à mão, não estou aqui a chorar saudosismo balofo. Actualmente, com o
progresso tecnológico, há tantas novas formas de comunicar, mais rápidas, que
também nos deixam maravilhados.
Apesar da iminente extinção da carta a
que me refiro, nem tudo é motivo de tristeza. Em sua substituição, tornou-se
moda na minha terra um outro tipo de carta: a anónima. Dactilografada, assim é
a sua aparição, sem caligrafia, como convém a uma carta anónima que se preze.
Largada pelas ruas ou colocada debaixo das portas durante o sono da noite, ela
faz as delícias de um povo tenazmente preocupado com os assuntos importantes
deste concelho.
Contra algum cidadão, em particular,
dissecando a sua anatomia profissional e social, ou contra um político, expondo
as suas fraquezas e traições aos ideais que pretensamente representa, ela corre
de boca em boca. Durante largos dias reina uma animação geral. Os mealhadenses
despertam da letargia; esquecem as telenovelas, o Big Brother, o futebol.
Quando uma carta destas aparece, a vida na Mealhada acontece!
É com dissimulada expectativa que vão
aguardando a saída a público de mais uma carta. Tão interessante como o seu
conteúdo é a dúvida que se levanta relativamente à sua origem. Há nelas
subtilezas que levantam interrogações. Por este motivo, o povo exercita a sua
inteligência. Por quem terá sido escrita? Por uma pessoa? Por um grupo de
cidadãos? Por um partido? O que parece, é?
O meu pai, carteiro de profissão
(homenagem lhe seja feita), passou parte da sua vida a dar cartas. Os
energúmenos das cartas anónimas, não sendo carteiros, querem dar cartas ao Zé
Povinho. Este, por sua vez, agradece o divertimento gratuito.
E qual é, afinal, o resultado?
A vida continua...
Jornal da Mealhada, 370,
05.09.2001
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