C O R T E S
Numa tarde em que me achei com pachorra
para curtir um pouco de filosofia existencialista, deparei-me com o angustiante
problema de falta de tema. Enquanto vasculhava o cérebro à procura de um tema
que me não desse muito trabalho, aproveitei o tempo para cortar as unhas. Ora,
ao quarto estalido do corta-unhas, logo me estalou uma ideia cortante.
Descobri, afinal, que a vida é feita de pequenos e grandes cortes. Até o
nascimento do ser humano exige o corte umbilical. Daí para a frente são cortes
a torto e a direito.
Para ilustrar esta iluminada afirmação,
não vou discorrer a minha vida; decerto que o caro leitor ficaria desiludido.
Basear-me-ei, por conseguinte, nos exemplos de um amigo cuja vida foi um corte
de alto a baixo. Por ironia do destino, o seu apelido era Cortes.
Era já adulto quando percebeu, pela
primeira vez, que o seu apelido prenunciava um destino fatalmente cortante.
Sozinho em casa, aventurou-se a cozinhar
uma refeição difícil: batatas fritas, com ovo estrelado e salsichas. Uma estreia
corajosa nas lides culinárias que não teve seguimento. À primeira descascadela
de batata, um corte no polegar esquerdo. Um penso rápido, logo ali no dedo, e o
afã continuou. Porém, a lata das salsichas, talvez com inveja da batata, não
perdeu a oportunidade de o cortar quando ele tentou violá-la. Foi nessa altura
que se recordou de um outro corte sofrido no mesmo contexto culinário: ainda
garoto, desistira de cortar pão para barrar com manteiga porque metia sempre o
dedo no caminho errado.
Decidiu, portanto, seguir outros
caminhos na vida. Vejamos os mais interessantes...
Resolveu, desde logo, mudar de ares.
Trocou a sua terra (Cortilha) por outra, cidade onde pudesse ser cidadão
anónimo. Na sua vila estava farto de servir de pano para todo o corte. Em nada
podia estar, nada podia fazer. O resultado era sempre o mesmo: sofrer cortes
por trás e pela frente; nem os lados eram poupados.
Tentou, na nova localidade (Corte Real),
ser realizador de cinema. Carreira efémera, diga-se já. Era, para si, muito traumatizante
ter um trabalho que o obrigava a dizer constantemente: «Corta!... Corta!...».
Para azar seu, os cortes continuavam a
persegui-lo...
No tempo em que foi colaborador de um
jornal independente, sentiu na pele os cortes democráticos que o director do
jornal fazia aos seus textos. Contudo, não podia queixar-se da sua sorte;
outros escrevinhadores de opinião o acompanhavam na lista. O director ia
argumentando que o jornal que dirigia era totalmente transparente. Tão
transparente que ele nem se esforçava por disfarçar os cortes.
Dessa época conserva ainda nos lábios um
sorriso sardónico. Quando o director do jornal cessou funções directivas e
passou para o lado dos leitores, surgiu a ocasião de se provar que quem sabe
cortar também se corta. É verdade! Julgando que a dita independência do jornal
continuava de si dependente, o ex-director atreveu-se a uma qualquer peleja
verbal com um conhecido leitor. Saindo da guerra moribundo, o seu último
estertor foi queixar-se ao novo director do periódico que, em nome da
independência jornalística, o texto-resposta do seu "amigo" nunca
deveria ter sido publicado.
O meu amigo saltou, depois, para as
lides políticas. Foram longos anos de sucesso que o fizeram esquecer o
sofrimento de um destino traçado a cortes. Mas o Diabo não dorme, apenas
finge...
Quando tudo parecia correr de feição, de
velas desfraldadas sem ventos cortantes, eis que uma súbita tempestade interna
agitou as águas do seu partido. Como velho marinheiro, lendo os sinais
favoráveis, atreveu-se a remar contra a corrente. O arrais não esteve com meias
medidas: desferiu-lhe um corte de alto a baixo e expulsou-o da embarcação.
Há cortes que vêm por bem. O meu amigo,
restabelecido do último golpe, procura agora um lugar no Governo. Tem currículo
invejável para dar um bom ministro das Finanças. Eu, por mim, apesar de lhe
desejar todas as bem-aventuranças, só rezo para que isso não aconteça. Quem ia
querer mais um orçamento cheio de cortes?
Jornal da Mealhada, 368,
18.07.2001
Sem comentários:
Enviar um comentário