CRÓNICA (5)


B U R A C O S



Foi durante a minha primeira viagem de avião que tive oportunidade de reflectir acerca de um tema que nunca havia intelegido. É assim que o pensamento, na maior parte das vezes, desperta. Basta um clique exterior para que o nosso raciocínio se afadigue na compreensão de certos fenómenos.

Estava eu, então, no deleite de um remanso aéreo, deslumbrado pela sensação de estar parado a alta velocidade, quando fui surpreendido por uma súbita queda vertical do avião. Tão repentina que até o estômago me caiu no vácuo. A doce voz da hospedeira logo tranquilizou os passageiros, informando que tínhamos passado por um poço de ar. E, espreitando eu pela janelita do aparelho voador, fiquei descansado por não vislumbrar sinais de algum buraco negro que me quisesse sugar.

Ora, se pensei em buraco, num grande buraco me meti, pois a partir desse momento só tive pensamento para analisar alguns tipos de buracos que nos acompanham durante a vida. Não julguem que sou um poço de ciência; não sou nem uma pocita sequer. Tenho apenas a mania de meter o nariz em assuntos estranhos à minha competência. É por isso que, sem perceber pevide, até pareço uma abóbora de sabedoria.

O primeiro buraco em que me fui meter estava nas estradas da minha freguesia. Ali tão manhoso, dissimulado, à espera da minha viagem de estreia após ter comprado a carta de condução. Saltou de repente para debaixo dos pneus, antes de eu ter ensaiado uma travagem de emergência. Era um buraco com muita fome, porque os seus dentes aguçados devoraram-me o pneu num segundo. Fiquei chateado, mas, reconheço, sem razão. Na verdade, eu não dera atenção aos avisos do meu instrutor. Dizia ele, amiúde, apontando um velho cartaz na sala da escola de condução: «Isto é um carro; isto é uma estrada; e isto é um buraco.»

Deste buraco saltei para outros. Com alguma tristeza, lembrei-me de que tenho passado a vida a tapar buracos.

Uma vez, sonhei que havia de ser colaborador do jornal da minha aldeia. Apresentei-me ao seu director e ofereci os meus préstimos, exibindo um pequeno trabalho que me tinha consumido sete noites de inverno. Ele encheu-me de esperança. Aceitou o texto e disse que o publicaria quando fosse preciso tapar um buraco. Saí dali muito motivado e fui beber umas cinco cervejitas para comemorar o acontecimento.

Outro tipo de buraco que ando há muito tempo a tapar é o do empréstimo da casa. Começou por ser uma pequena dívida, um buraco fácil de tapar. Afinal, um dos muitos pequenos buracos que fazem parte da vida. Hoje, com o aumento da taxa de juro, o empréstimo da casa é um buracão. Por este motivo é que ainda não me suicidei. Viver com pequenas dívidas é, sem dúvida, um grande tédio.

Posso queixar-me da minha sorte? Coitado é do Governo, que volta e meia descobre cada buracão! Mas tudo se resolve por artes mágicas: divide-se o buracão por muitos buracos. Escava-se aqui, ali, além e acolá um pequeno buraco e, com o produto do dasaterro, vai-se tapando o buracão. E um buraquinho a cada português nada custa.

Por falar em buraquinho...

Ouvi dizer que o meu concelho está metido num grande buraco por pretender fazer muitos buraquinhos. Vinte e sete, segundo consta. Afinal, um quase nada comparado com os hectares de terreno que esses buraquinhos precisam. A ideia é, está visto, construir um campo de golfe.

Estou cheio de sorte. Com esta idade, as minhas pernas começam a correr para outro tipo de desporto: mais calmo, mais lento, menos cansativo e muito chique. Eu, que nunca estive nem com os calcanhares no Jet 7, poderei agora, num instante, estar no Jet 27. Ganho eu e ganha, obviamente, o concelho. Postos de trabalho são tantos que nem vão caber nos 27 buracos. Sendo um desporto elitista, de gente endinheirada e habituada a pisar qualquer buraco, todos os hóteis e todos os restaurantes, do mais nobre ao mais humilde, depressa sairão da crise económica em que estão mergulhados. E tudo graças a uma política social inspirada nos sociais princípios de bem servir a elite social.

Há um buraquinho que...

Ah! O que seria da vida sem buracos?!...



Jornal da Mealhada, 355, 18.04.2001 (sem atualização ortográfica)

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